INTRODUÇÃO
Neste artigo, tento estudar a evolução do dogma da Santíssima Trindade
ao longo da História. Pois bem. Poderia estar perguntando o leitor: “os dogmas
da Igreja evoluíram?”, ao que posso responder que, ainda que não tenham
evoluído quanto ao seu conteúdo (a verdade é a mesma ontem, hoje e amanhã),
evoluíram quanto à consciência que deles foi adquirindo a Igreja. Com efeito, o
tempo permitiu que a terminologia deste dogma central da fé cristã fosse se
enriquecendo, para expressar de uma forma mais precisa aquilo que a Igreja
sempre professou. Surge, assim, o termo “Trindade” como uma forma de definir o
mistério de que existe um só Deus em três
Pessoas distintas, as quais possuem a
mesma natureza ou substância.
Porém, este enriquecimento não ocorreu sem custo nem glória; muitas
heresias tiveram que ser combatidas e superadas pela Igreja ao longo da
História (e muitas dessas heresias ressurgiram novamente nos tempos atuais).
1. HERESIAS CRISTOLÓGICAS E TRINITÁRIAS
Existem numerosas heresias cristológicas e trinitárias, de modo que
tratar de todas seria deveras longo. Logo, nos focaremos principalmente nas
duas maiores e que ressurgiram hoje sob outros nomes e fachadas.
a) Modalismo
Também conhecida como Monarquianismo, Sabelianismo ou Patripassianismo.
Sustentava, nos séculos II e III, que em Deus havia uma só Pessoa e que o Pai,
o Filho e o Espírito Santo eram formas de se comunicarem com os homens ou de se
manifestarem. Era uma tentativa de afirmar a unidade de Deus sem negar a
divindade de Cristo nem a do Espírito Santo.
Hoje em dia há uma grande quantidade de denominações protestantes que
aderiram a essa heresia. Um exemplo temos na Igreja Pentecostal Unida, a qual
professa:
“A doutrina sobre a natureza de Deus se chama ‘Unicidade’. Esta palavra
significa ‘Qualidade do Único’. Esta se encontra claramente nas Escrituras e
afirma que existe apenas um só Deus, sem distinção de Pessoas e que em Jesus
Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Doutrina da Igreja
Pentecostal Unida da Espanha)[1].
b) Arianismo
Uma grande heresia que a Igreja enfrentou e que abalou a Igreja durante
o século IV. Da mesma forma que o Modalismo, queria defender a unicidade de
Deus, porém o fazia reduzindo Jesus Cristo a um ser criado. Para os arianos,
Cristo não era Deus, mas uma criatura subordinada criada por Ele, de modo que
houve um tempo em que o Pai existiu e Cristo não. Para eles, Cristo também não
tinha a mesma natureza ou substância do Pai. Entre os diferentes expoentes do
Arianismo ressurgido hoje, podemos citar os Testemunhas de Jeová; para ilustrar
um pouco a sua doutrina, mencionaremos um extrato de uma de suas publicações:
“Somente Deus é o Todo-Poderoso, o Criador, separado e distinto de
qualquer outra pessoa. Jesus – e isto se aplica ainda à existência que teve
antes de vir a ser homem – é também separado e distinto, um ser criado
subordinado a Deus” (Folheto “O que Diz a Bíblia sobre Deus e Jesus?”).
2. O TESTEMUNHO DOS ESCRITORES ECLESIÁSTICOS E
PADRES DA IGREJA ANTES DO CONCÍLIO DE NICÉIA
Existem fontes protestantes que afirmam que foi graças ao Concílio de
Nicéia que foram assentadas as bases para a doutrina da Trindade:
“O Concílio de Nicéia assegurou que Cristo era da mesma substância de
Deus, abrindo base para uma posterior teologia trinitária. Porém, não
estabeleceu a Trindade, pois naquele Concílio não se disse que o espírito santo
era a terceira pessoa de uma Divindade trina e una (…) Por muitos anos houve
muita oposição, com base bíblica, ao desenvolvimento da idéia de que Jesus era
Deus. Em um esforço para resolver a disputa, o imperador romano Constantino
convocou todos os bispos para Nicéia (…) Que papel desempenhou no Concílio de
Nicéia aquele imperador não-batizado? A Enciclopédia Britânica relata: ‘O
próprio Constantino presidiu e dirigiu ativamente as discussões e pessoalmente
propôs (…) a fórmula decisiva que expressava a relação de Cristo com Deus no
credo que o Concílio publicou, o qual diz que é ‘consubstancial com o Pai’. (…)
Pressionados pelo imperador, os bispos – com apenas duas exceções – assinaram o
credo, ainda que muitos deles não estivessem inclinados a fazê-lo’” (Folheto
“Como se Desenvolveu a Doutrina da Trindade?”).
Nesse folheto, em resumo, aponta-se que – segundo os Testemunhas de
Jeová – a doutrina trinitária seria produto de uma manobra política do
imperador Constantino, que acabou obrigando os bispos a reconhecer que Cristo
era Deus, quase que contra as suas vontades.
Nada melhor, então, que estudar o testemunho dos Padres anteriores ao
Concílio de Nicéia, para que possamos indagar o quanto há de verdadeiro nessas
afirmações e qual foi o real desenvolvimento da doutrina trinitária ao longo da
História.
É considerado um dos mais antigos escritos cristãos não-canônicos,
datado inclusive de tempo bem anterior a muitos escritos do Novo Testamento.
Estudos que assinalam uma data de composição não posterior a 160 d.C. são
recentes. É um excelente testemunho do pensamento da Igreja Primitiva e aqui o
mencionamos por trazer um testemunho do uso da fórmula batismal trinitária
usada pela Igreja Primitiva:
“Quanto ao batismo, procedam assim: depois de ditas todas essas coisas,
batizem em água corrente, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”
(Didaqué 7,1).[2]
O MARTÍRIO DE POLICARPO
É uma carta da Igreja de Esmirna à comunidade de Filomênio em que se
narra o martírio de São Policarpo, discípulo direto do Apóstolo São João e
bispo de Esmirna. É um escrito apostólico que faz uso de belas doxologias
trinitárias, expressando muito bem e claramente o dogma trinitário:
“A Ele [Jesus Cristo] seja dada a glória com o Pai e o Espírito Santo
pelos séculos dos séculos. Amém”.[3]
Classificado como um dos escritos dos Padres Apostólicos ainda que –
como assinala Quasten – pertença ao grupo dos Apocalipses apócrifos. Contém as
revelações feitas por duas figuras celestiais a Hermas:
“O Espírito Santo, que é preexistente, que criou todas as coisas, Deus o
fez habitar no corpo de carne que Ele quis. Pois bem. Esta carne em que o
Espírito Santo habitou serviu bem ao Espírito, caminhando em santidade e
pureza, sem macular absolutamente nada o mesmo Espírito. Como [essa carne]
tinha, pois, levado uma conduta excelente e pura, e tomado parte em todo
trabalho do Espírito e cooperado com Ele em todo negócio, portando-se sempre
forte e valorosamente, Deus a tornou partícipe juntamente com o Espírito Santo.
Com efeito, a conduta desta carne agradou a Deus, por não ter se maculado sobre
a terra enquanto teve consigo o Espírito Santo. Assim, pois, tomou por
conselheiro a seu Filho e os anjos gloriosos para que esta carne, que tinha
servido sem reprovação ao Espírito, alcançasse também algum lugar de repouso e
não parecesse ter perdido a recompensa pelo seu serviço, porque toda a carne em
que habitou o Espírito Santo, se encontrada pura e sem mancha, receberá sua
recompensa” (5ª Parábola, 6,5-7).[4]
Com base neste texto, Quasten explica:
“Segundo esta passagem, parece que para Hermas a Trindade consiste em
Deus Pai, em uma segunda Pessoa divina – o Espírito Santo – que ele identifica
com o Filho de Deus e, finalmente, no Salvador, elevado para fazer parte de sua
sociedade como prêmio por seus merecimentos. Em outras palavras, Hermas
considera o Salvador como Filho adotivo de Deus, razão pela qual se refere à
sua natureza humana”.
SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA (110 D.C.)
Foi consagrado bispo da Antioquia pelas próprias mãos de São Pedro e São
Paulo, segundo afirma São João Crisóstomo (embora as Constituições Apostólicas
afirmem que Pedro consagrou Evódio e Paulo a Inácio). Eusébio de Cesaréia
afirma (Hist. Ecles. 3,22) que [Inácio] sucedeu a Evódio (primeiro bispo de
Antioquia) e em sua “Crônica” aponta o tempo de seu episcopado entre o 1º ano
de Vespasiano (70 d.C.) e o 10º de Trajano (107 d.C.).
“Inácio, por sobrenome Téoforo [=portador de Deus], à abençoada em
grandeza de Deus com plenitude; à predestinada desde antes dos séculos para
servir para sempre, para glória duradoura e imutável, glória unida e eleita
pela graça da verdadeira Paixão e por vontade de Deus Pai e de Jesus Cristo,
nosso Deus; à Igreja digna de toda bem-aventurança, que está em Éfeso, na Ásia,
minha cordialíssima saudação em Jesus Cristo e na alegria imaculada” (Epístola aos Efésios 1).[5]
“Existe um médico, no entanto, que é carnal além de espiritual, gerado e
não gerado, Deus feito carne, filho de Maria e Filho de Deus, primeiro passível
e depois impassível: Jesus Cristo, nosso Senhor” (Epístola aos Efésios 7,2).[6]
“A verdade é que nosso Deus Jesus, o Ungido, foi levado por Maria em seu
seio conforme a dispensação de Deus, certamente da descendência de Davi, mas
por obra do Espírito Santo. Ele nasceu e foi batizado a fim de purificar a água
com a sua Paixão” (Epístola aos Efésios 18,2).[7]
“Inácio, por sobrenome Téoforo [=portador de Deus], à Igreja que
alcançou misericórdia na magnificência do Pai Altíssimo e de Jesus Cristo, seu
único Filho; à que é amada e é iluminada por vontade Daquele que quis que todas
as coisas existissem, segundo a fé e a caridade de Jesus Cristo, nosso Deus”
(Epístola aos Romanos 1).[8]
“Eu glorifico a Jesus Cristo, Deus, que é quem os tem feito sábios até
tal ponto, pois percebi muito bem de quão mergulhados estais da fé imutável,
como se estivésseis pregados, em carne e espírito, na cruz de Jesus Cristo”
(Epístola aos Esmirniotas 1,1).[9]
Para Santo Inácio, Cristo está acima do tempo e é intemporal, o que é
uma forma de dizer que existe desde toda a eternidade:
“Aguardai Aquele que está acima do tempo, o Intemporal; o Invisível, que
por nós se tornou visível; o Impalpável, o Impassível, que por nós se fez
passível; aquele que, por todos os modos, sofreu por nós” (Carta a Policarpo
3,2).[10]
Escritor eclesiástico sobre o qual Eusébio da Cesaréia, em sua História
Eclesiástica (4,3,3), afirma que era “um varão fiel na profissão da nossa
religião”. Deixou uma apologia da fé, a qual tinha sido perdido, até que em
1878 os Mequitaristas de São Lázaro de Veneza publicaram um manuscrito do
século X, correspondente ao fragmento armênio de uma apologia intitulada “Ao
imperador Adriano César da parte do filósofo ateniense Aristides”.
Posteriormente, em 1889, o sábio norte-americano Rendel Harris descobriu uma
tradução completa em siríaco desta apologia. Nesta obra, Aristides emprega a
fórmula trinitária, mencionando as três Pessoas divinas:
“Este teve doze discípulos, os quais, após sua ascensão aos céus,
percorreram as províncias do Império e ensinaram a grandeza de Cristo, de modo
que um deles percorreu aqui mesmo, pregando a doutrina da verdade, pois
conhecem o Deus criador e artífice do universo em seu Filho Unigênito e no
Espírito Santo, não adorando nenhum outro Deus além deste” (Apologia 15,2).[11]
Famoso apologeta cristão do século II. Atenágoras, mesmo sem empregar o
termo “Trindade” é bastante explícito ao definí-la. Também rejeita o
Subordinacionismo e a tendência que posteriormente seria adotado pelo Arianismo
ao considerar Cristo como um ser criado, como se deduz do seguinte texto
escrito por volta do ano 177 d.C.:
“E se pela eminência da vossa inteligência vos ocorre perguntar o que
quer dizer ‘Filho’, vos direi brevemente: o Filho é o primeiro broto do Pai,
não como ato, já que Deus, que é inteligência eterna, desde o princípio tinha
em si mesmo o Verbo, sendo eternamente racional, mas procedendo de Deus quando
todas as coisas materiais eram natureza sem forma e terra inerte, estando
misturadas as mais grosseiras com as mais leves, para ser sobre elas idéia e
operação” (Súplica em Favor dos Cristãos 10).[12]
Eis aqui a sua forma de explicar a Trindade:
“Assim, pois, suficientemente resta demonstrado que não somos ateus,
pois admitimos um só Deus incriado e eterno, e invisível, impassível,
incompreensível e imenso, apenas pela inteligência compreensível à razão… Quem,
portanto, não se surpreenderá de ouvir chamar de ‘ateus’ aqueles que admitem um
Deus Pai, um Deus Filho e um Espírito Santo, que demonstram seu poder na
unidade e sua distinção na ordem?” (Súplica em Favor dos Cristãos 10).[13]
TACIANO, O SÍRIO (SÉC. II)
Taciano foi discípulo de São Justino Mártir; dele conservamos um
discurso contra os gregos, em que ataca o Politeísmo. Possuía uma caráter
forte, que o levou a abandonar a Igreja e fundar sua própria seita (os
Encratitas) – testemunho que nos dá Eusébio de Cesaréia (História Eclesiástica
4,18-19); entre outros – tal como Jerônimo, que o chama de “Patriarca dos
Encratitas” (Epist. Ad Titum, prol. [PL 6,356]) – praticavam uma total
abstinência de carnes e bebidas alcóolicas, classificavam o matrimônio como
pecaminoso e substituíam, na celebração eucarística, o vinho pela água. Chegou
até nós o discurso contra os gregos, obra em que [Taciano] ataca o Politeísmo:
“Porque não estamos loucos – ó helenos – nem pregamos loucuras quando
anunciamos que Deus apareceu na forma humana. Vós que nos insultais, comparai
os vossos mitos com as nossas narrações” (Discurso contra os Gregos 21).[14]
SÃO MELITÃO DE SARDES (SÉC. II)
Bispo de Sardes, na Lídia, proeminente e venerado escritor eclesiástico
do século II. Em uma carta ao Papa Vítor (189-199), Polícrates de Éfeso o
aponta entre os “grandes luzeiros (ou estrelas)” da Ásia que gozam do descanso
eterno. De muitas de suas obras só nos restam fragmentos ou apenas o título,
graças a Eusébio de Cesaréia e Anastácio Sinaíta. Após uma descoberta recente,
em 1930, foi publicada sua Homilia sobre a Paixão, onde Melitão expõe uma
Cristologia bastante lúcida em que o conceito da divindade e preexistência de
Cristo dominam toda a sua teologia:
“Porque nascido como Filho, conduzido como cordeiro, sacrificado como
ovelha, sepultado como homem, ressuscitou dos mortos como Deus, sendo por
natureza Deus e homem. Ele é tudo: quando julga, é Lei; quando ensina, é Verbo;
quando salva, é Graça; quando gera, é Pai; quando é gerado, é Filho; quando
sofre, é ovelha sacrificial; quando é sepultado, é homem; quando ressucita, é
Deus. Este é Jesus Cristo, a quem seja dada a glória pelos séculos dos séculos”
(Homilia sobre a Paixão 8-10).[15]
Afirma também a preexistência de Cristo:
“Este é o primogênito de Deus, que foi gerado antes da estrela da manhã,
que fez levantar a luz, que fez brilhar o dia, que separou as trevas, que
assentou a primeira base, que suspendeu a terra em seu lugar, que secou os
abismos, que estendeu o firmamento, que pôs ordem no mundo” (Homilia sobre a
Paixão 82).[16]
Nos fragmentos citados por Anastácio Sinaíta, aponta as duas naturezas
de Cristo e de como é, assim, verdadeiro Deus e verdadeiro homem:
“Não é absolutamente necessário, ao tratar com pessoas inteligentes,
aduzir que as ações de Cristo, após seu batismo, são provas de que sua alma e
corpo e sua natureza humana era iguais às nossas, verdadeiras e não
fantasmagóricas. As atividades de Cristo após seu batismo, especialmente os
seus milagres, forneceram provas ao mundo da divindade oculta em sua carne.
Sendo Deus e também homem perfeito, ele deu indicações positivas de suas duas
naturezas: de sua divindade, pelos milagres durante os três anos que seguiram
após seu batismo; e de sua humanidade, nos trinta anos anteriores ao seu
batismo, durante o qual, em razão da sua condição segundo a carne, ele ocultara
as características de sua divindade, ainda que fosse verdadeiro Deus existente
antes das idades” (Fragmentos de Melitão em Anastácio Sinaíta; Guia 13).[17]
SANTO IRENEU (140-202 D.C.)
Mártir, teve contato com a Era Apostólica por ser discípulo de São
Policarpo que, por sua vez, tinha sido discípulo do Apóstolo São João. Célebre
por seu tratado “Contra as Heresias”, em que combate as heresias de seu tempo,
especialmente os gnósticos, expressa com clareza, nessa obra, a fé trinitária
da Igreja em um só Deus Pai, um só Senhor Jesus Cristo e no Espírito Santo.
Para o bispo, Jesus Cristo é para os cristãos “Senhor, Deus, Salvador e Rei”.
Particularmente importante é seu testemunho sobre como essa doutrina é pregada
e professada por todas as Igrejas do orbe, como se tivessem uma só boca e um só
coração. Este testemunho é bem anterior ao Concílio de Nicéia:
“A Igreja, estendida pelo orbe do universo até os confins da terra,
recebeu dos Apóstolos e de seus discípulos a fé em um só Deus Pai soberano
universal ‘que fez os céus e a terra e o mar e tudo quanto neles existe’; e em
um só Jesus Cristo Filho de Deus, que se encarnou para a nossa salvação; e no
Espírito Santo, que pelos profetas proclamou as economias e o advento, a
geração por meio da Virgem, a Paixão, a ressurreição dentre os mortos e a
ascensão aos céus do amado Jesus Cristo nosso Senhor; e seu [novo] advento dos
céus, na glória do Pai, para recapitular todas as coisas e para ressuscitar
toda carne do gênero humano, de forma que diante de Jesus Cristo, nosso Senhor,
Deus, Salvador e Rei, segundo o beneplácito do Pai invisível, ‘todo joelho se
dobre no céu, na terra e nos infernos, e toda língua o confesse’. Ele julgará
todos justamente: os ‘espíritos do mal’, os anjos que caíram, os homens
apóstatas, ímpios, injustos e blasfemos, para enviá-los para o fogo eterno; e
para dar como prêmio, aos justos e santos que observam os seus mandamentos e
perseveram no seu amor, alguns desde o princípio, outros a partir de sua
conversão, a vida incorruptível, rodeando-os da luz eterna.
Como dissemos antes, a Igreja recebeu esta pregação e esta fé, e
estendida por toda terra, com cuidado a guarda, como se habitasse em uma só
família. Conserva uma só fé, como se tivesse uma só alma e um só coração, e a
prega, ensina e transmite com a mesma voz, como se não tivesse senão apenas uma
só boca. Certamente, são diversas as línguas, segundo as diversas regiões;
porém, a força da Tradição é uma e a mesma. As igrejas da Germânia não crêem de
maneira diversa, nem transmitem outra doutrina diferenta da que pregam as da
Ibéria ou a dos celtas, ou as do Oriente, como as do Egito ou Líbia, assim
como, tampouco, das igrejas constituídas no centro do mundo. Assim como o sol,
que é uma criatura de Deus, é um e o mesmo em todo o mundo, assim também a luz,
que é a pregação da verdade, brilha em todas as partes e ilumina todos os seres
humanos que querem conhecer a verdade. E nem aquele que se sobressai por sua
eloquência entre os chefes da Igreja prega coisas diferentes destas, pois
nenhum discípulo está acima de seu Mestre, nem o mais débil na palavra recorta
a Tradição; sendo uma e a mesma fé, nem o muito que pode explicar sobre ela
aumenta, nem o menos a diminui” (Contra as Heresias 1,10,1-2).[18]
Ireneu interpreta que quando Deus diz: “Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança”, está falando ao Filho e ao Espírito Santo. Afirma que Cristo é
gerado, porém ninguém conhece os mistérios desta geração, razão pela qual é em
vão que os hereges gnósticos tentam explicá-la.
“Assim pois, se alguém nos pergunta: ‘Como o Pai emitiu o Filho?’,
respondemos que esta produção, ou geração, ou pronúncia, ou parto, ou qualquer
outro nome que se queira dar a esta origem, é inefável. Não a conhecem nem
Valentim, nem Marcião, nem Saturnino, nem Basílides, nem os anjos, nem os
poderes, nem as potestades, mas apenas o Pai que O gerou e o Filho que Dele
nasceu. Sendo, pois, inefável esta geração, quem quer que se atreva a narrar as
gerações e emanações não está em seu são juízo quando promete descrever o
indescritível” (Contra as Heresias 2,28,6).
Mais claro ainda encontra-se no livro 3, quando volta a declarar que
Cristo é Deus, Senhor, sempre Rei, Unigênito e Verbo encarnado:
“Que ninguém entre todos os filhos de Adão seja chamado Deus por si
mesmo ou proclamado Senhor o demonstramos pelas Escrituras. E que apenas Ele
[Jesus], entre todos os homens de seu tempo, seja proclamado Deus, Senhor,
sempre Rei, Unigênito e Verbo encarnado, por todos os Profetas e Apóstolos e
ainda pelo próprio Espírito, é algo que podem constatar todos aqueles que
aceitam um mínimo de verdade” (Contra as Heresias 3,19,2).
Ensina que Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem:
“As Escrituras não dariam todos estes testemunhos a respeito Dele se
fosse apenas um homem semelhante a todos [nós]. Porém, como teve uma geração
sobretudo iluminada do Pai Altíssimo e também por ter sido concebido da Virgem,
as divinas Escrituras testemunham ambas as coisas sobre Ele: que é homem sem
beleza e passível, que se sentou sobre o dorso de uma asna, que ingeriu fel e
vinagre, que foi desprezado pelo povo e que desceu até a morte; porém, que é
também Senhor Santo e Conselheiro admirável, formoso à vista, Deus forte, que
vem sobre as nuvens como Juiz de todos. Isto é o que as Escrituras profetizam
acerca Dele.
Enquanto homem, o era para ser tentado; enquanto Verbo, para ser
glorificado. O Verbo repousou para que pudesse ser tentado, desonrado,
crucificado e morto, habitando naquele Homem que vence e suporta [o
sofrimento], que se comporta como homem de bem, ressuscita e é elevado ao céu.
Este é o Filho de Deus, Senhor nosso, Verbo existente do Pai e filho do homem
porque nasceu da Virgem Maria, que teve sua origem nos homens, pois ela mesma
era um ser humano; teve gestação enquanto homem e assim chegou a ser filho do
homem” (Contra as Heresias 3,19,2-3).
Opõe-se, com mais de dois séculos de antecedência, à heresia do
Arianismo (que afirmava que houve um tempo em que o Filho não esteve com o
Pai). Também com antecedência, rejeita o Modalismo, diferenciando as três
Pessoas divinas:
“Que o Verbo, ou seja, o Filho, sempre esteve com o Pai, de múltiplas
maneiras já o demonstramos; e também que sua Sabedoria, ou seja, o Espírito,
estava com Ele antes da Criação” (Contra as Heresias 4,20,3).
No entanto, há autores que opinam que Ireneu não estava totalmente livre
do Subordinacionismo, e que poderia ser considerado heterodoxo à luz da
teologia posterior:
“Se, por exemplo, alguém procura o motivo pelo qual apenas o Pai conhece
o dia e a hora, ainda que comunique tudo ao Filho, o próprio Senhor o disse (e
ninguém pode inventar outro [motivo] sem risco [de se equivocar] porque apenas
o Senhor é o Mestre da verdade). Ele nos disse que o Pai está sobre todas as
coisas, pois declarou: ‘O Pai é maior do que Eu’ (João 14,28). O Senhor,
portanto, apresentou o Pai como superior a todos em relação ao seu conhecimento,
a fim de que nós, enquanto caminhamos por este mundo (1Coríntios 7,31),
deixemos a Deus o saber mais profundo sobre tais questões; porque se
pretendemos investigar a profundidade do Pai (Romanos 11,33), corremos o perigo
de perguntar, inclusive, se existe outro Deus acima de Deus” (Contra as
Heresias 2,28,8).
“O Pai sustenta ao mesmo tempo toda a sua criação e o seu Verbo; e o
Verbo, que o Pai sustenta, concede a todos o Espírito segundo a vontade do Pai:
a uns, na própria Criação, lhes dá [o espírito] da criação, que é criado; a
outros, o da adoção, isto é, o que provém do Pai, que é obra de sua geração.
Assim se revela como único o Deus e Pai que está acima de tudo, através de
todas [as coisas] e em todas as coisas. O Pai está sobre todos os seres e é a
cabeça de Cristo (1Coríntios 11,3); através de todas as coisas, age o Verbo,
que é Cabeça da Igreja; e em todas as coisas porque o Espírito está em nós, o
qual é água viva (João 7,38-39) que Deus outorga àqueles que crêem retamente
Nele e O amam, sabendo que ‘um só é o Pai que está sobre todas, por todas e em
todas as coisas’” (Contra as Heresias 5,18,2).
CLEMENTE DE ALEXANDRIA (MEADOS DO SÉC. II –
ANTERIOR A 215)
Nasceu por volta do ano 150, provavelmente em Atenas, de pais pagãos.
Após se tornar cristão, viajou pelo sul da Itália, Síria e Palestina à procura
de mestres cristãos, até que chegou em Alexandria. Os ensinamentos de Panteno
(chefe da escola catequética de Alexandria, no Egito) fizeram com que fixasse
residência ali. No ano 202, a perseguição de Sétimo Severo o obrigou a
abandonar o Egito e a se refugiar na Capadócia, onde faleceu pouco antes de
215. Seu conhecimento dos escritos pagãos e da literatura cristã é notável.
Segundo Quasten, em suas obras se encontram cerca de 360 citações dos
clássicos, 1500 do Antigo Testamento e 2000 do Novo Testamento. Por isso, é
considerado cronologicamente como o primeiro sábio cristão conhecedor profundo
não apenas da Sagrada Escritura como também das obras cristãs anteriores a ele
e, inclusive, obras da literatura profana. Em sua obra “O Protréptico” ou
“Exortação aos Gregos”, escreve:
“A Palavra, então, o Cristo, é a causa de nosso antigo princípio –
porque Ele estava com Deus – de nosso bem-estar. E agora esta mesma Palavra
apareceu como homem. Apenas Ele é Deus e Homem, e fonte de todas as coisas
boas. É por Ele que nos ensina a viver bem e, então, somos mandados para a vida
eterna (…) Ele é o cântico novo, a manifestação que agora nos foi feita, da
Palavra que existiu no princípio e antes do princípio. O Salvador, que existiu
antes, apareceu apenas posteriormente. Ele, que apareceu, está Nele que é, pela
Palavra que estava com Deus, a Palavra pela qual todas as coisas foram feitas;
apareceu como nosso Mestre e Ele, que nos concedeu a vida no princípio quando,
como nosso Criador, Ele nos formou; agora que Ele apareceu como nosso Mestre,
nos ensinou a viver bem de modo que, logo, como Deus, poderá nos dar abundância
na vida eterna” (Exortação aos Gregos 1,7,1).[19]
Mais adiante, na mesma obra, continua aprofundando sua teologia do
Logos, afirmando que a Palavra divina é “evidentemente verdadeiro Deus”,
acrescentando ainda que estava “no mesmo nível” do Pai, o que provaria que não
tinha inclinações subordinacionistas:
“Desdenhado na sua aparência, porém, na verdade adorado, o Expiador, o
Salvador (…), a Palavra divina, Ele que é absolutamente e evidentemente Deus
verdadeiro, Ele que está no mesmo nível do Senhor do universo porque era seu
Filho e a Palavra estava com Deus” (Exortação aos Gregos 10,110,1).[20]
Em “O Pedagogo” (uma obra em 3 livros, que é a continuação do
“Protréptico”), explica:
“Meus filhos: nosso Instrutor é como seu Deus, o Pai, pois é Filho Dele:
livre de pecado, livre de culpa e com a alma livre de Paixão. Deus em forma de
homem, inoxidável; o ministro de seu Pai, a Palavra que é Deus; que está no
Pai, que é a mão direita do Pai; e, com a forma de Deus, é Deus. Ele é para nós
uma imagem irrepreensível…” (O Pedagogo 1,2).[21]
Em seu comentário sobre 1João, escreve:
“O Filho de Deus, sendo, por igualdade de substância, um com o Pai, é
eterno e não-criado”.
Sexto bispo de Antioquia, como atesta Eusébio em sua História Eclesiástica
4,20. Se conservam 3 livros de sua autoria, escritos por volta do ano 180 d.C.,
intitulados “A Autólico”. Assim como Tertuliano foi o primeiro a empregar o
vocábulo latino “Trinitas”, Teófilo foi o primeiro a usar o termo “Τριας”
(=Trindade) para expressar a união das três Pessoas divinas em Deus:
“Os três dias que precedem a criação dos luzeiros são símbolo da
Trindade, de Deus, de seu Verbo e de sua Sabedoria” (A Autólico 2,15).[22]
“Tendo, pois, Deus o seu Verbo imanente em suas próprias entranhas, o
gerou com sua própria sabedoria, emitindo-o antes de todas as coisas. Ele teve
este Verbo por ministro de sua criação e através Dele fez todas as coisas (…)
Isto se chama ‘princípio’, pois é Príncipe e Senhor de todas as coisas por Ele
criadas” (A Autólico 2,10).[23]
“Sim, Deus, o Pai do universo, é imenso e não se encontra limitado a um
lugar, pois não há lugar para seu descanso. Mas seu Verbo, pelo qual fez todas
as coisas, como potência e sabedoria sua que é, tomando a figura do Pai e
Senhor do universo, este é que se apresentou no jardim sob a figura de Deus e
que conversava com Adão. Com efeito, a própria divina Escritura nos ensina que
Adão disse ter ouvido a sua voz; e essa voz que outra coisa seria senão o Verbo
de Deus, que é também seu Filho? Filho não do modo como falam os poetas e
mitógrafos – que os filhos dos deuses nascem pela união carnal – mas como a
verdade explica que o Verbo de Deus está sempre imanente no coração de Deus.
Porque antes de criar do nada, a Este tinha por conselheiro, como mente e
pensamento Seu que era. E quando Deus quis fazer o que tinha deliberado, gerou
a este Verbo proferido (προφορικ?ν) como primogênito de toda criação, não
esvaziando-se de seu Verbo, mas gerando o Verbo e conversando sempre com Ele.
Por isso, nos ensinam as Sagradas Escrituras e todos os inspirados pelo
Espírito, dentre os quais João: ‘No princípio era o Verbo e o Verbo estava com
Deus’, dando a entender que no princípio estava apenas Deus e Nele seu Verbo; e
logo diz: ‘E o Verbo era Deus’” (A Autólico 2,22).[24]
TERTULIANO (160-220 D.C.)
Ainda que Tertuliano não seja considerado um “Padre da Igreja”, mas um
apologeta, tendo no final de sua vida aderido à heresia Montanista, foi muito
lido antes de abandonar a Igreja Católica. Foi o primeiro a aplicar o termo
latino “Trinitas” (Trindade) às três Pessoas divinas. Em “De Pudicitia” (“Da
Modéstia”), escreve:
“Para a mesma Igreja é, propriamente e principalmente, o próprio
Espírito, no qual está a Trindade de uma Divindade: Pai, Filho e Espírito Santo”
(Da Modéstia 21).[25]
Em “Adversas Praxean” (“Contra Praxéas”), oferece uma explicação ainda
mais completa sobre a doutrina trinitária:
“No entanto, como sempre fizemos (e mais especialmente a partir do
momento que fomos melhor instruídos pelo Paráclito, que conduz os homens à
verdade), cremos que existe um só Deus, porém, sob a seguinte dispensação, ou
ο?κονομ?α, como é denominada: que este único Deus tem também um Filho, sua
Palavra, que procede Dele mesmo, por quem todas as coisas foram feitas e sem O
qual nada foi feito. Cremos que Ele foi enviado pelo Pai à Virgem e dela
nasceu, sendo Deus e homem, filho do homem e Filho de Deus, sendo chamado Jesus
Cristo; cremos que Ele sofreu, morreu ferido, conforme as Escrituras, e,
posteriormente, foi ressucitado pelo Pai e levado ao céu para sentar-se à
direita do Pai; Ele virá para julgar os vivos e os mortos e enviou, também, a
partir do céu do Pai, conforme a sua promessa, o Espírito Santo, o Paráclito, o
santificador da fé daqueles que crêem no Pai e no Filho e no Espírito Santo.
Esta é a regra de fé que chegou até nós desde o início do Evangelho, inclusive
antes todas as antigas heresias” (Contra Praxéas 2). [26]
No mesmo capítulo, um pouco mais adiante, escreve:
“A heresia, a qual supõe por si mesma possuir a pura verdade, pensando
que não se pode crer que um só Deus de nenhum outro modo a não ser dizendo que
o Pai, o Filho e o Espírito Santo são a mesma Pessoa, como se neste modo um
também não fosse todos, em que todos são um, por unidade de substância, enquanto
o mistério da dispensação é, todavia, guardado, o qual distribui a Unidade na
Trindade, colocando em sua ordem as três Pessoas – o Pai, o Filho e o Espírito
Santo; três, mas não em condição e sim em grau, não em substância e sim em
forma, não em poder e sim em aspecto” (Contra Praxéas 2)
Este texto é particularmente importante porque explica a concepção que
Tertuliano possui da Trindade: 3 Pessoas, porém não 3 Naturezas; não diferentes
quanto ao poder, mas quanto ao aspecto. Isto é confirmado também no capítulo 4
da mesma obra, onde volta a afirmar que o Filho é “da substância do Pai”:
“Filium non aliunde deduco, sed de substantia Patris”; e o Espírito é “do Pai
pelo Filho”: “Spiritum non aliunde deduco quam a Patre per Filium”:
“Se a pluralidade na Trindade te escandaliza, como se não estivesse
ligada na simplicidade da união, te pergunto: como é possível que um ser, que é
pura e absolutamente um e singular, fale no plural: ‘Façamos o homem à nossa
imagem e semelhança’? Não deveria, antes, ter dito: ‘Eu faço o homem à minha
imagem e semelhança’, já que é um Ser único e singular? No entanto, na passagem
que segue, lemos: ‘Eis que o homem foi feito como um de nós’. Ou Deus nos
engana ou goza de nós ao falar no plural, já que Ele é único e singular. Ou
será que se dirigia aos anjos, como interpretam os judeus, já que não
reconhecem o Filho? Ou será que Ele, sendo Pai, Filho e Espírito, falava no
plural, considerando-se múltiplo? Certamente, a razão é porque tinha ao seu
lado uma segunda Pessoa, seu Filho e Verbo, e uma terceira Pessoa, o Espírito
no Verbo. Por isso, empregou deliberadamente o plural: ‘Façamos – nossa imagem
– um de nós’. Com efeito, com quem criava o homem? À semelhança de quem o
criava? Falava, por um lado, com o Filho, que deveria um dia se revestir da
carne humana; por outro lado, [falava] com o Espírito, que devia um dia
santificar o homem, como se falasse com outros tantos ministros e testemunhas”
(Contra Praxéas 12).
Continua, posteriormente, no mesmo capítulo:
“Agora se Ele também é Deus, conforme João, [que diz] ‘E a Palavra era
Deus’, então você tem dois seres: um que ordena que as coisas sejam feitas e
outro que executa a ordem e cria. Nesse sentido, no entanto, você deve entender
que Ele é outro, como já expliquei, quanto à personalidade, não quanto a
substância; nesse modo de distinção, não de divisão. Assim devo manter que há
uma só substância em três [Pessoas] coerentes e inseparáveis” (Contra Praxéas
12).
No texto anterior, Tertuliano se serve do termo “Pessoa” para explicar
que a Palavra (Logos) é distinta do Pai no “sentido de Pessoa, não de
substância; para distinção, não para divisão”, o que aplica também para o
Espírito Santo, a quem chama “a terceira Pessoa”. Porém, ainda que Tertuliano
tenha contribuído para a criação de uma terminologia precisa para a doutrina
trinitária, não se viu livre totalmente do Subordinacionismo, a ponto que
chegou a interpretar que o Filho não era eterno (um dos erros do Arianismo):
“Foi então que o Verbo recebeu sua manifestação e complemento, isto é, o
som e a voz, quando Deus disse: ‘Faça-se a luz’. Eis aí o nascimento perfeito
do Verbo, quando procedeu de Deus. Primeiro foi produzido por Ele no
pensamento, sob o nome de Sabedoria: ‘Deus me criou no início de seus caminhos’
(Provérbios 8,22). Logo, foi gerado com vistas à ação: ‘Quando fiz os céus,
estava próximo a Ele’ (Provérbios 8,27). Por conseqüência, fazendo Pai aquele
de quem o Filho procedeu, veio a se tornar primogênito (porque foi gerado antes
de todas as coisas) e Filho único (porque só Ele foi gerado por Deus)” (Contra
Praxéas 7).
ORÍGENES (185-254 D.C.)
Orígenes foi um proeminente escritor eclesiástico, teólogo e
comentarista bíblico. Viveu em Alexandria até o ano 231, passando seus últimos
20 anos de vida em Cesaréia Marítima (Palestina) ou viajando pelo Império
Romano. Foi o maior mestre da doutrina cristã de sua época e exerceu uma
extraordinária influência como intérprete bíblico. Cabe ressaltar que alguns de
seus ensinamentos não foram ortodoxos. Muito interessante para o tema que
abordamos foi o debate de Orígenes com Heráclides, descoberto em alguns papiros
encontrados em Toura, localidade próxima do Cairo, em 1941. Ali se apresenta um
debate completo que teve origem nas opiniões de Heráclides sobre a doutrina
trinitária, que preocupavam seus irmãos no episcopado. Estes chamam Orígenes
para discutir a questão. Este debate foi realizado na presença do povo e dos
bispos por volta do ano 245. A este respeito, comenta Quasten:
“Heráclides não gostava da fórmula de Orígenes ‘dois Deuses’ (δ?ο θεο?)
como a única maneira para se expressar claramente a distinção entre o Pai e o
Filho. Implicava em perigo demasiadamente grave de politeísmo. No debate,
Orígenes faz esta observação: ‘Já que nossos irmãos se escandalizam ao ouvir
que existem dois deuses, este assunto merece ser tratado com delicadeza’.
Recorre a seguir à Bíblia para demonstrar em qual sentido os dois podem ser um.
Adão e Eva eram dois, no entanto, formavam uma só carne (Gênese 2,24). Cita
depois São Paulo, o qual, falando da união do homem justo com Deus, diz:
‘Aquele que se achega ao Senhor se torna um espírito com Ele’ (1Coríntios
6,17). Finalmente, invoca como testemunho o próprio Cristo, porque disse: ‘Eu e
meu Pai somos um’. No primeiro exemplo, havia unidade de ‘carne’; no segundo,
‘de espírito’; no terceiro, de ‘divindade’. Observa Orígenes: ‘Nosso Senhor e
Salvador, em sua relação com o Pai e Deus do universo, não é uma só carne, nem
apenas um só espírito, mas algo muito mais elevado que a carne e o espírito: um
só Deus”.
Assim, Orígenes defende que o Pai e o Filho são divinos, contra [as
heresias do] Monarquianismo e Modalismo. Termina o interrogatório de Orígenes a
Heráclides com o seguinte acordo:
“Orígenes disse: O Pai é Deus?
Respondeu Heráclides: Sim.
Orígenes disse: O Filho é distinto do Pai?
Respondeu Heráclides: Como poderia ser simultaneamente Filho e Pai?
Orígenes disse: O Filho, que é distinto do Pai, é também Deus?
Respondeu Heráclides: Também Ele é Deus.
Orígenes disse: Deste modo, os dois Deuses formam um só?
Respondeu Heráclides: Sim.
Orígenes disse: Por conseguinte, afirmamos que existem dois Deuses?
Respondeu Heráclides: Sim, porém o poder é único (δ?ναμη μ?α εστ?ν)”.
Definição esta bem anterior a Nicéia e que, ainda sem precisar a
terminologia, serve para expressar o próprio sentir. Assim, com este acordo
diante do povo e dos bispos, Cristo foi proclamado como Deus, embora sendo uma
Pessoa distinta do Pai. Defendia-se desta forma a individualidade das Pessoas
divinas contra o Modalismo e se esclareciam os temores de que, ao se reconhecer
Cristo e o Pai como Deus, caía-se no Politeísmo.
Orígenes emprega freqüentemente o termo “Trindade” (In Ioh. 10,39,270;
6,33,166; In Ies. Hom. 1,4,1) e afirma que o Filho procede do Pai. E visto que
Deus é eterno, logo este ato de geração também é eterno, de modo que o Filho
não teve princípio e não existiu um tempo em que Ele não tenha existido
(opõe-se assim, com antecedência, à heresia do Arianismo, que afirmaria algum
tempo depois justamente o oposto, isto é, que houve um tempo em que o Filho não
existia (De princ. l,2,9s; 2; 4,4,1; In Rom. 1,5)):
“Não se pode conceber luz sem resplendor. E se isto é verdade, nunca
houve um tempo em que o Filho não fosse Filho. No entanto, não será – como
dissemos sobre a luz eterna – sem nascimento (pareceria que introduzimos dois
princípios de luz), mas que é, por assim dizer, resplendor da luz ingênita,
tendo esta mesma luz como princípio e fonte, verdadeiramente nascida dela. Não
obstante, não houve um tempo em que não foi. A Sabedoria, por proceder de Deus,
é gerada também da mesma substância divina. Sob a figura de uma emanação
corporal, é chamada assim: ‘Emanação pura da glória de Deus onipotente’
(Sabedoria 7,25). Estas duas comparações manifestam claramente a comunidade de
substâncias entre o Pai e o Filho. Com efeito, toda emanação parece ser
‘ομοο?σιος’, οu seja, de uma mesma substância com o corpo do qual emana ou
procede” (In Hebr. frag. 24,359).[27]
Observe-se que ele emprega a palavra “ομοο?σιος” (“homoousios”), que
significa “mesma substância”, a qual posteriormente seria amplamente empregada
pelo Concílio de Nicéia para definir solenemente como o Pai e o Filho possuem
uma mesma natureza. Refere-se a Cristo também a expressão “θε?νθρωπος”
(Deus-Homem).
Porém, Orígenes possui alguns textos confusos, a ponto de parecer tender
para o Subordinacionismo. Entre os que o acusam de ter professado este erro
encontra-se São Jerônimo; mas outros Padres da Igreja, como Santo Atanásio e
São Gregório Taumaturgo o negam. Um dos textos em que parece ser
subordinacionista é este:
“Nós, que cremos no Salvador quando diz: ‘O Pai que me enviou é maior do
que eu’, e por essa mesma razão não permite que lhe seja aplicado o apelativo
de ‘bom’ em seu sentido pleno, verdadeiro e perfeito, atribuindo-o ao Pai,
dando graças e condenando quem glorificasse o Filho em demasia, nós dizemos que
o Salvador e o Espírito Santo estão muito acima de todas as coisas criadas, por
uma superioridade absoluta, sem comparação possível; porém, dizemos também que
o Pai está acima Deles tanto ou até mais do que Eles estão acima das criaturas
mais perfeitas (In Ioh. 13,25).[28]
SÃO JUSTINO (165 D.C.)
Mártir da fé cristã por volta do ano 165 (foi decapitado), é considerado
o maior apologista do século II. No Diálogo com Trifão, refere-se a Cristo como
‘Deus gerado do Pai do universo’ e parte de textos da Gênese, onde Deus fala na
primeira pessoa do plural, para demonstrar a pluralidade das Pessoas divinas.
Descarta aqui que estivesse falando com os anjos, já que seria inconcebível que
o homem fosse feito por eles; descarta também que estivesse falando com os
elementos terrestres. Conclui que falava com Cristo, o qual estava com o Pai
antes de todas as criaturas.
“Disse: ‘Irei vos apresentar – caros amigos – outro testemunho das
Escrituras sobre o que Deus gerou no princípio, antes de todas as criaturas:
[gerou] certa potência racional de Si mesmo, a qual é chamada também pelo
Espírito Santo, a glória do Senhor, algumas vezes ‘Filho’, outras vezes ‘Sabedoria’;
ora ‘Anjo’, ora ‘Deus’; seja ‘Senhor’, seja ‘Palavra’; e ela própria chama a si
mesma de ‘capitão geral’, quando aparece na forma de homem a Josué, filho de
Nave. E é assim que todas essas denominações lhe provêm por estar a serviço da
vontade do Pai e por ter sido gerada pelo querer do Pai (…) Mas será a Palavra
da Sabedoria que me prestará seu testemunho, por ser ela esse próprio Deus
gerado do Pai do universo, que subsiste como Palavra e Sabedoria, como poder e
glória Daquele que a gerou (…)
Isso mesmo – amigos – expressou a Palavra de Deus pela boca de Moisés,
ao nos indicar que o Deus que nos manifestou falou nesse mesmo sentido na
criação do homem, ao dizer estas palavras: ‘Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança’ (…) E para não distorcerdes as palavras citadas, dizendo o que
dizem os vossos mestres – que Deus se dirigiu a Si mesmo ao dizer ‘Façamos’, da
mesma forma que nós quando vamos fazer algo e dizemos ‘Façamos’ – vos citarei
agora outras palavras do mesmo Moisés, pelas quais, sem discussão alguma,
teremos que reconhecer que conversava Deus com alguém que era numericamente
distinto e juntamente racional. Ei-las aqui: ‘E Deus disse: Eis que Adão se
tornou como um de nós para conhecer o bem e o mal’. Portanto, ao dizer: ‘como
um de nós’, indica o número dos que entre si conversavam, sendo assim pelo
menos dois. Ora, não posso ter por verdadeiro a heresia que se dogmatiza entre
vós, nem os mestres delas são capazes de demonstrar que Deus está falando com
os anjos ou que o corpo humano foi criado pelos anjos. A menos que tenha
brotado, sido emitido realmente a partir do Pai, Ele estava com o Pai antes de
todas as criaturas e conversava com o Pai, como nos manifestou a Palavra pela
boca de Salomão, ao dizer que antes de todas as criaturas Ele foi gerado por
Deus ,como princípio e progênie, sendo chamado ‘Sabedoria’ por Salomão”
(Diálogo com Trifão 61-62).[29]
Mais adiante, refere-se a Cristo como Senhor e Deus:
“Longamente demonstrei que Cristo, que é Senhor e Deus, Filho de Deus,
apareceu antes, prodigiosamente, como homem e como anjo, e também na glória do
fogo, como na visão da sarça e no juízo contra Sodoma” (Diálogo com Trifão
128).[30]
Em sua 1ª Apologia, distingue clara e ordenadamente as Três Pessoas
divinas. Isto descarta que Justino tivesse alguma tendência modalista:
“E logo demonstraremos que com razão honramos também a Jesus Cristo, que
foi nosso mestre nestas coisas e que para isso nasceu e foi crucificado sob
Pôncio Pilatos, o procurador da Judéia no tempo de Tibério César. Aprendemos que
Ele é Filho do mesmo Deus verdadeiro e o temos em segundo lugar, assim como o
Espírito profético está em terceiro” (1ª Apologia 13,3).[31]
Distingue ainda, mais claramente, a pessoa do Pai da do Filho, no
capítulo 63, reconhecendo que os profetas falaram de Cristo, proclamando-o como
“o Deus de Abraão, Isaac e Jacó”:
“Aqueles que dizem que o Filho é o Pai dão prova de que não sabem quem é
o Pai, nem perceberam que o Pai do universo tem um Filho e que, sendo Verbo e
Primogênito de Deus, é Deus também. Este foi quem primeiramente apareceu a
Moisés e aos outros profetas na forma de fogo ou por imagem incorpórea, e que
agora, nos tempos do vosso império (…) nasceu homem de uma virgem (…) Agora,
aquilo que falou a Moisés a partir da sarça: ‘Eu sou aquele que é, o Deus de
Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’, significa que, mesmo depois de
mortos, esses homens continuavam pertencendo ao próprio Cristo” (1ª Apologia
63,15).
SÃO GREGÓRIO TAUMATURGO (SÉC. III)
Nascido por volta do ano 213, foi bispo de sua cidade natal,
Neocesaréia. Compôs um breve símbolo de fé, sobre o qual Quasten comenta:
“embora se limite ao dogma da Trindade, é notável por sua exatidão de conceitos
e afirma que nenhuma das Pessoas divinas nunca ficaram uma sem as outras e que
existiram sempre sem mudanças”.
“Há um só Deus, Pai do Verbo vivente, da Sabedoria subsistente, do Poder
e da Imagem eterna; gerador perfeito do gerado perfeito, Pai do Filho
Unigênito. Há um só Senhor, Único do Único, Deus de Deus, Figura e Imagem da
Divindade, Verbo Eficiente, Sabedoria que abraça todo o universo e Poder que
cria o mundo inteiro, Filho verdadeiro do Pai verdadeiro, Invisível do
Invisível, Incorruptível do Incorruptível, Imortal do Imortal, Eterno do
Eterno. E há um só Espírito Santo, que tem sua subsistência de Deus e foi
manifestado aos homens pelo Filho: Imagem do Filho, Imagem Perfeita do
Perfeito, Vida, Causa dos viventes, Manancial Sagrado, Santidade que comunica a
santificação, em quem se manifestam Deus Pai – que está acima de todos e em todos
– e Deus Filho – que é através de todos. Há uma Trindade perfeita, em glória,
em eternidade e em majestade, que não está dividida nem separada. Não há,
conseqüentemente, nada criado nem escravo da Trindade, nem tampouco nada
sobre-acrescentado, como se não tivesse existido em algum tempo anterior e
fosse introduzido depois. E, assim, nem nunca o Filho falou ao Pai, nem o
Espírito Santo ao Filho; ao contrário, sem variação ou mudança, a mesma
Trindade sempre existiu” (Exposição da Fé).[32]
NOVACIANO (SÉC. III)
Sacerdote romano. Conforme Eusébio de Cesaréia, se serviu de uma
artimanha para ser ordenado bispo de Roma, obrigando que alguns bispos o
consagrassem. Causou, assim, um cisma que durou vários séculos. O seu escrito,
“Sobre a Trindade” (De Trinitate), porém, foi redigido muitos anos antes de 250
d.C.:
“O Filho, por ser gerado pelo Pai, está sempre no Pai. Quando digo
‘sempre’, não quero dizer que é ingênito. Afirmo, ao contrário, que nasceu.
Porém, nasceu antes de todo o tempo; deve-se dizer que existiu sempre no Pai,
visto não ser possível fixar data ao que é anterior a todo o tempo. Ele está
eternamente no Pai, pois de outra maneira o Pai não seria sempre Pai. Por outro
lado, o Pai é anterior a Ele, pois o Pai deve ser necessariamente anterior ao Filho,
já que é Pai; visto que Ele não conhece origem, deve existir anteriormente ao
que teve uma origem. O Filho, portanto, é necessariamente posterior ao Pai,
pois Ele mesmo reconhece que existe no Pai; teve uma origem, visto que nasceu,
e a partir do Pai, de uma maneira misteriosa; contudo, apesar de ter nascido e
ter, assim, origem, é em tudo semelhante ao Pai, precisamente em razão de seu
nascimento, já que nasceu do Pai, o qual é o único que carece de origem. Ele,
portanto, quando o Pai quis, procedeu do Pai; Ele estava no Pai, porque
procedia do Pai, não sendo outra coisa senão a Substância divina. Seu nome é
Verbo, pelo qual todas as coisas foram feitas e sem o qual nada foi feito.
Porque todas as coisas são posteriores a Ele, pois procedem Dele e, conseqüentemente,
Ele é anterior a todas as coisas (embora após o Pai), pois todas as coisas
foram feitas por Ele. Procedeu do Pai, por cuja vontade todas as coisas foram
feitas. Deus, certamente, procedente de Deus, constituindo a segunda Pessoa
depois do Pai, por ser Filho, sem que por isso retire do Pai a unidade da
divindade” (Sobre a Trindade 31).[33].
Porém, Novaciano professou um Subordinacionismo pois, apesar de possuir
a mesma substância, o Espírito Santo era inferior a Cristo e Cristo, por sua
vez, inferior ao Pai; por isso, diz que aparece “como o único Deus verdadeiro e
eterno; Ele é a única fonte deste poder da divindade, Ainda que seja
transmitida ao Filho e concentrada Nele, retorna novamente ao Pai através de
sua comunidade de substância”:
“O Paráclito recebeu sua mensagem de Cristo. Mas se recebeu de Cristo,
Cristo é superior ao Paráclito, pois o Paráclito não teria recebido de Cristo
se não fosse inferior a Cristo. Esta inferioridade do Paráclito prova que
Cristo, de quem recebeu sua mensagem, é Deus. Aqui tempos, portanto, um
poderoso testemunho da divindade de Cristo. Vemos, com efeito, que o Paráclito
é inferior a Ele e recebe Dele a mensagem que entrega ao mundo”.[34].
SÃO CIPRIANO DE CARTAGO (SÉC. III)
São Cipriano nasceu por volta do ano 200, provavelmente em Cartago, de
família rica e culta. Dedicou sua juventude à retórica. O desgosto que sentia
diante da imoralidade dos ambientes pagãos, contrastado com a pureza de
costumes dos cristãos, lhe induziu a abraçar o Cristianismo por volta do ano
246. Pouco depois, em 248, foi eleito bispo de Cartago. Ao estourar a
perseguição de Décio, em 250, julgou melhor se retirar para um lugar afastado,
para continuar se ocupando de seu rebanho. Declara a divindade de Cristo
numerosas vezes e afirma que quem nega que Cristo seja Deus não pode ser templo
de Deus:
“Cristo Jesus, nosso Senhor e Deus, é propriamente o sumo-sacerdote de
Deus Pai” (Epístola 63,14).[35]
“Se alguém pudesse ser batizado pelos hereges, poderia certamente
receber também o perdão de seus pecados. Se recebesse o perdão dos pecados,
poderia ser santificado. Se fosse santificado, poderia se tornar um templo de
Deus. Se fosse um templo de Deus, então eu te pergunto: De qual Deus? Do
Criador? Porém, isso não é possível, porque ele não crê Nele. De Cristo? Quem
nega que Cristo seja Deus não pode se transformar em Seu templo. Do Espírito
Santo? A partir do momento em que os Três são Um, como seria possível ao
Espírito Santo ser reconciliado com aquele que é um inimigo do Filho ou do
Pai?” (Epístola 73,12).[36]
“Após a ressurreição, quando o Senhor enviou os Apóstolos às nações, Ele
lhes ordenou a batizar aos gentios em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo
(…) O próprio Cristo ordenou que as nações sejam batizadas na Trindade plena e
unida” (Carta 73,18).[37]
SÃO DIONÍSIO DE ROMA (SÉC. III)
Papa entre os anos de 259 e 268. Combateu o Modalismo e o
Subordinacionismo. Quando foi apresentada a Dionísio de Roma uma acusação de
que o bispo Dionísio de Alexandria se expressava incorretamente sobre a
Trindade, originou-se uma controvérsia que ficou conhecida como “a controvérsia
dos dois Dionísios”. O Papa convocou um sínodo para o ano de 260 visando
solucionar a questão. Em seu nome e em nome do sínodo escreveu uma carta na
qual condenava a doutrina modalista de Sabélio e também as opiniões marcionitas
que dividiam a monarquia divina em três hipóstases distintas e ainda aqueles
que representavam o Filho de Deus como criatura. Na carta a Dionísio de Alexandria,
o Papa classifica de blasfema a opinião de que o Filho era o Pai (modalismo) e
censura, ainda, a doutrina apoiada pelos catequistas de Dionísio de Alexandria,
que afirmavam que cada Pessoa divina tinha uma natureza diferente da outra:
“Ouví dizer que alguns dos teus catequistas e mestres da palavra divina
encabeçam este princípio [herético que divide as naturezas das Pessoas
divinas]. Eles ensinam de maneira diametralmente oposta à opinião [herética] de
Sabélio. Para ele, em sua blasfêmia, diz que o Filho é o Pai e vice-versa; para
os teus, que existe de alguma forma três Deuses, pois dividem a Sagrada Unidade
em três substâncias diferentes entre si e completamente separadas” (Carta de
Dionísio de Roma a Dionísio de Alexandria 1).[38]
Também declara que o Arianismo é uma blasfêmia pois afirma que Cristo é
um ser criado e que, por ser Cristo a Palavra, Sabedoria e poder de Deus, pode
ter havido um tempo em que o Pai existisse sem Ele:
“É blasfêmia, portanto, e até pior, dizer que o Senhor foi de alguma
forma criado. Porém, se veio a ser Filho, então Ele não foi [criado], como Ele
diz de si mesmo; Ele está no Pai e se você conhece a Divina Escritura, ela diz
que Cristo é a Palavra, a Sabedoria e o Poder; e esses atributos são poderes de
Deus. Então Ele sempre existiu. Ora, se Ele veio a ser [criado], houve uma
época em que esses atributos não existiam e, conseqüentemente, nesse tempo Deus
estava sem eles; isso é um completo absurdo” (Carta de Dionísio de Roma a
Dionísio de Alexandria 1).
“É necessário, no entanto, que a Palavra divina [Jesus Cristo] esteja
unida ao Deus do universo; e o Espírito Santo deve respeitar e habitar em Deus.
Portanto, a Trindade Divina deve ser reunida em Uma, como se fosse um ápice,
quero dizer, o Deus onipotente do universo” (Carta de Dionísio de Roma a
Dionísio de Alexandria 2).
“Não podemos então dividir em três cabeças divinas a maravilhosa e
divina monarquia, nem chamar ‘obra’, desacreditando a dignidade e excelente
majestade de nosso Senhor. Devemos, porém, crer em Deus, o Pai todopoderoso; e
em Jesus, seu Filho; e no Espírito Santo. Sustentemos, enfim, que a Palavra
está unida ao Deus do universo” (Carta de Dionísio de Roma a Dionísio de
Alexandria 3).
CONCLUSÃO
Depois de termos estudado o testemunho dos Padres pré-nicenos, não é difícil
concluir que a doutrina trinitária não é nenhuma novidade e, muito menos, um
produto das manobras políticas do imperador Constantino. A Igreja foi fiel em
reconhecer que existe um só Deus, sendo Ele Deus Pai, Deus Filho e Deus
Espírito Santo, e esta verdade era compreendida e ensinada com maior ou menor
clareza na era pós-apóstolica e pré-nicena. É claro, ainda, que a maioria dos
Padres rejeitavam abertamente tanto o Arianismo (que afirmava que Jesus era um
deus menor, criado e subordinado ao Pai, em algum momento não existente) e o
Modalismo (que afirmava que existia uma só Pessoa Divina em Deus, sendo o Filho
o próprio Pai e vice-versa, embora manifestados de modos diferentes). É certo
que alguns Padres não compreenderam cabalmente o mistério trinitário e chegaram
a tender para um Subordinacionismo em maior ou menor grau, coisa totalmente
compreensível em assunto de tão grande complexidade. Foram, precisamente,
conflitos tão graves como o Arianismo e outras heresias, que deram oportunidade
à Igreja a se aprofundar nestas verdades de fé.
—–
Notas:
[1] Retirado de http://www.ipue.com/unicidad.htm.
[2] Padres Apostólicos, Daniel Ruiz Bueno, (BAC 65), Pág. 84.
[3] Ibid. Pág.
688.
[4] Ibid. Pág.
1020.
[5] Ibid. Pág.
447.
[6] Ibid. Pág.
451.
[7] Ibid. Pág.
457.
[8] Ibid. Pág.
474.
[9] Ibid. Pág. 488.
[10] Ibid. Pág. 498-499.
[11] Retirado de Padres Apologetas Griegos, Daniel Ruiz Bueno (BAC 116),
Pág. 130.
[12] Ibid. Pág.
660-661.
[13] Ibid. Pág.
661.
[14] Ibid. Pág.
602.
[15] Patrología
I, Johannes Quasten (BAC 206), Pág. 240.
[16] Ibid Pág.
241.
[17] Retirado
de The Faith of the Early Fathers, Vol. I, William A. Jurgens, Pág. 81.
[18] Contra as Heresias, Santo Ireneu de Lião, Conferência do Episcopado
Mexicano. Edição preparada pelo pe.
Carlos Ignacio Gonzáles.
[19] The Faith
of the Early Fathers, Vol. I, William A. Jurgens, Pág. 176.
[20] Ibid. Pág.
177.
[21] New Advent
Encyclopedia, http://www.newadvent.org/fathers/02091.htm.
[22] Patrología I, Johannes Quasten (BAC 206), Pág. 236.
[23] Padres Apologetas Griegos, Daniel Ruiz Bueno (BAC 116), Pág. 796.
[24] Ibid. Pág. 813.
[25] Retirado de New Advent Encyclopedia,
http://www.newadvent.org/fathers/0407.htm.
[26] Ibid. http://www.newadvent.org/fathers/0317.htm.
[27] Patrología I, Johannes Quasten (BAC 206), Pág. 389.
[28] Ibid. Pág. 390.
[29] Retirado de Padres Apologetas Griegos, Daniel Ruiz Bueno (BAC 116),
Pág. 409-412.
[30] Ibid. Pág. 526.
[31] Ibid. Pág. 194.
[32] Retirado de Patrología I, Johannes Quasten (BAC 206), Pág. 433.
[33] Ibid. Pág.
529.
[34] Ibid. Pág.
531.
[35] Retirado
de The Faith of the Early Fathers, Vol. I, William A. Jurgens, Pág. 81.
[36] Ibid. Pág.
232-233.
[37] Ibid. Pág.
232-233.
[38] Ibid. Pág.
249.
Autor: José Miguel Arráiz
Tradução: Carlos Martins Nabeto
Fonte: http://www.apologeticacatolica.net
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