I
— As causas da ignorância
O
presente século (século XIX — N.T.) concedeu a si mesmo o
faustoso título de “século das luzes”. A pretensão é
manifesta, o direito não é tão claramente demonstrado. O século
XIX não mudou em nada as condições da humanidade dos séculos
anteriores; e, se bem que tenhamos a honra (?) de sermos filhos deste
grandioso século XIX, no entanto a verdade é que somos filhos de
Adão, e que nascemos trazendo conosco o pecado original e o que dele
decorre, a ignorância e a concupiscência.
A
ignorância! não somente a simples ignorância que é o não-saber,
mas a ignorância combinada com a dificuldade de aprender, com a
repugnância em fazer esforço para chegar a saber: esta chaga é
grande, e em todos os homens ela produz frutos e frutos muito
amargos, é preciso convir, mas são frutos que a maior parte dos
homens carrega com uma resignação fácil demais e muitas vezes com
uma satisfação que se poderia tomar como sinal de uma felicidade
idiota.
Os
cristãos nascem homens, e humanamente são vítimas da ignorância,
a menos que, por felizes circunstâncias, uma educação cuidada,
digamos melhor, a menos que a graça de Deus venha tirá-los do
estado infeliz em que todos caímos em Adão. A queda, ai de nós, é
natural, o reerguer-se é sobrenatural. Reflitamos no estado das
populações que permaneceram estranhas ao cristianismo na Ásia,
África, Oceania, e teremos uma prova manifesta do que nós dizemos.
*
* *
É
portanto por uma graça de Deus que as populações cristãs são
retiradas da ignorância. O conhecimento de Deus, de nossa criação,
de nossa natureza de homens, de nosso fim sobrenatural são luzes
muito puras e sobrenaturalmente poderosas para nos retirar da
ignorância.
A
noção de Deus criador e fim supremo da criatura, é o grande
instrumento da luz intelectual; é o sol das inteligências. Saber
que Deus é a causa primeira de tudo que é; que Ele é nosso fim,
especialmente de nós, criaturas inteligentes; eis o princípio
verdadeiro da verdadeira luz, a base sólida de toda instrução. Aí
temos um ponto de partida assegurado: aí temos o termo obrigatório
de nossa existência; e com esses dois dados, que são imensos para
nossas inteligências, nós podemos e devemos orientar nossos
espíritos, dirigir nossos pensamentos, regular nossas vontades e
nossas afeições, ordenar nossa vida de modo a chegar ao fim que
Deus nos assinalou.
*
* *
Esta
é a ciência da vida: a única indispensável, ciência que nenhuma
outra pode substituir e que, se necessário, pode dispensar todas as
outras.
O
homem só é verdadeiramente instruído quando sabe regular sua vida
e regula-la de modo a atingir seu fim. Os conhecimentos mais
profundos, os mais variados, os mais raros, não tiram o homem da
ignorância se não o ajudam a atingir seu fim. Também há homens
que, sob certos aspectos, são verdadeiros sábios; eles sabem
línguas, letras, a história, as ciências; e com tudo isso, não
tendo a ciência da vida, são realmente ignorantes, e diante de
Deus, o Pai das luzes, estão mergulhados em profundas trevas.
Insensíveis
à sua própria infelicidade, não tendo olhos senão para suas luzes
particulares que irradiam em algum canto de seus espíritos,
aplaudem-se por causa das fracas luzes com que tem alguma claridade e
pouco sofrem com as trevas onde os mergulha a ignorância em que
estão quanto à ciência da vida. Et in caecitate quam
tolerant quase in claritate luminis exultant. (S. Greg., in
“Job”).
São
os cristãos de hoje verdadeiramente filhos da luz como
os chamava S. Paulo? Nossa voz seria muito fraca para responder a tal
pergunta. Escutemos a voz mais poderosa, uma voz autorizada, uma voz
para a qual não há réplica. Ela diz:
“Desde
o primeiro dia de nosso pontificado, do alto da Sé Apostólica,
voltamos os nossos olhares para a sociedade atual, a fim de conhecer
as suas condições, procurar atender as suas necessidades, dar-lhe
os remédios. Desde então, deploramos o declínio da verdade, não
só aquela conhecida sobrenaturalmente pela fé mas também a
conhecida naturalmente pela razão ou pela experiência; deploramos a
predominância dos mais funestos erros, e os grandes perigos que
corre a sociedade pelas desordens sempre maiores que a perturbam;
diríamos que a causa mais poderosa de uma semelhante ruína era a
separação procurada, a apostasia estabelecida entre a sociedade
atual e o Cristo e sua Igreja”.
É
um papa do tempo de Nero ou de Domiciano, que fala assim, deplorando
o estado dos povos mergulhados no paganismo? Não, é um papa do
século XIX, é o papa de nosso tempo; é Leão XIII.
Que
se reflita nisto: o declínio da verdade, a predominância
dos mais funestos erros, não são palavras desprovidas de
sentido. Pintam uma situação e descrevem-na em termos muito exatos.
Se
os mais funestos erros se tornaram predominantes, se a verdade
encontra-se em declínio, é preciso reconhecer que nossa ignorância
é grande.
*
* *
Quais
são as causas da ignorância entre os cristãos?
Nunca
houve tantas escolas quanto em nossos dias; a causa então não será
por falta de escolas. Mas afirmamos sem que se possa desmentir-nos,
que em nossas escolas se ensina de tudo, menos a verdade. A verdade
está em declínio, foi Leão XIII quem disse.
Em
muitas escolas, nós sabemos, há lugar para o catecismo, lugar para
a instrução religiosa e moral. Mas, na maior parte das vezes, a
instrução religiosa é suplantada, aqui pela gramática, lá pelo
diploma.
Então
faz-se gramática ou bacharéis, mas cristãos, não! Ali onde a fé
não está acima de tudo não existe fé.
*
* *
E
depois, mesmo onde se ensina o catecismo, é bem possível e
infelizmente muito comum: não se ensina a fé. Como pode ser isso,
nos dirão? Do seguinte modo: pode-se ensinar materialmente as
verdades da fé, por exemplo: que há um só Deus, três pessoas em
Deus, duas naturezas em Jesus Cristo, sete sacramentos na Igreja,
dirigindo-se tal ensino ou à memória, ou à inteligência ou à fé
da criança.
Dirigir-se
à memória é o método de quase todas as escolas de nossos dias;
com isso se obtém a recitação correta da lição; mas isso não é
a fé.
Dirigir-se
à inteligência é mais raro: pois é preciso esforço para fazer o
aluno saber não a palavra mas a coisa, não a expressão mas a
verdade. Por aí se faz atos de inteligência, mas não de fé.
Enfim,
podemos, digamos melhor, devemos dirigirmo-nos à fé do aluno. Para
isso é preciso que aquele que ensina faça o ato de fé, a fim de
estimular um ato semelhante no aluno. Acreditei, diz o
salmista, por isso falei. É preciso ensinar às crianças
o verbum fidei de São Paulo ou, diríamos em português,
a fé falada. Então a criança ouve a palavra e a retém, eis o
ofício da memória; compreende o valor da expressão, este é o
ofício da inteligência; depois, com toda a sua alma, adere à
verdade, é a fé.
Dizíamos
que essa maneira de ensinar, a única verdadeira, a única eficaz, é
extremamente rara, mesmo nas escolas ditas cristãs; é por isso que
essas escolas não produzem cristãos e há entre nós uma tão
grande ignorância.
II
— Os remédios para a ignorância
A
ignorância consiste em não saber; mas não saber, para os cristãos,
é qualquer coisa de muito funesto.
Para
nós cristãos, não nos basta conhecer por seus termos próprios uma
determinada verdade, é preciso conhece-la com fé, é preciso saber
e crer, saber crendo e crer sabendo.
O
cristão que crescesse e não soubesse poderia ser um cristão com
alguma fé; mas não possuindo plenamente a verdade, objeto da fé,
seria um cristão ignorante.
Segue-se
que para combater a ignorância dos cristãos não basta expor diante
deles a verdade, ensiná-la em termos exatos; não basta fazê-los
conhecer com precisão; é, além disso, necessário, indispensável,
desenvolver neles a fé, esta disposição sobrenatural de receber
como reveladas por Deus as santas verdades ensinadas pela Igreja.
Ser
cristão é uma grande coisa; na educação de uma alma cristã, há
um lado humano e um lado divino. Um lado humano, pelo qual a alma é
instituída, ensinada, catequizada; e um lado divino pelo qual a alma
recebe, como vida sobrenaturalmente de Deus, a verdade cujos termos
lhe são propostos por uma boca humana.
Que
ela fale, esta boca humana, que ela ensine, que ela exorte, seu papel
é grande e belo. Mas Deus reserva para si, em nossa educação
cristã, um papel maior e mais belo ainda, o de nos falar ao coração,
o de elevar nossas inteligências até a participação da razão
divina, até essa região sublime que se chama fé.
Quando,
pois, o educador cristão, seja a família, a escola ou a Igreja,
quando o educador cristão fala a uma alma batizada, para tirá-la
cada vez mais da ignorância, ele deve, sob pena de nada compreender
do trabalho que empreende, rezar, ao mesmo tempo que fala, e pedir a
Deus que derrame na alma do batizado a graça interior da fé, ao
mesmo tempo que, de seu lado, ele faz chegar aos ouvidos do
catequizado a expressão humana da verdade divina.
Se
todos aqueles que têm a terrível tarefa de trabalhar na instrução
dos cristãos trabalhassem desta maneira, veríamos prontamente a
ignorância desaparecer, a fé aumentar, a santidade florescer.
Mas,
o que se diz de todos os lados? A santidade desaparece, a fé diminui
e a ignorância é assustadora, mais ou menos por toda parte.
A
falta é nossa!
Com
muita facilidade se imagina ter feito tudo, quando se diz a
verdade: isto não é nada. Ter-se-ia feito muito e muito mais se,
depois de tê-la feito ouvir, se rezasse e se trabalhasse para que
ela fosse crida.
O
cristão só é completo sob essa condição.
Quantas
crianças, nas escolas ou nos cursos de catecismo, aprendem, recitam
e sabem bem a letra do catecismo, no entanto, não se tornam cristão
dignos desse nome!
A
causa de tão grande infelicidade está inteiramente no vício de
educação que assinalamos. Fizeram-nos sábios mas não os
fizeram crentes.
Por
conseqüência, não tendo a fé lançado raízes fortes nas almas, a
criança fica entregue ao sabor das paixões nascentes ou torna-se
vítima do meio no qual se encontra.
A
fé teria dado o vigor necessário para resistir ao perigo interior
ou ao perigo exterior que acabamos de assinalar. Mas, sem a fé, o
homem fica entregue à fraqueza e cai. É pela fé que estais
de pé, diz o Apóstolo. Fides statis (II Cor.,
1, 23).
Então,
para trabalhar eficazmente no combate a ignorância, é preciso
homens muito sábios e muito crentes; precisaríamos de santos que
fossem sábios e de sábios que fossem santos.
III
— Uma palavra de Santa Teresa
Concluímos
nosso artigo sobre a ignorância entre os cristãos por aquelas
palavras: “Para trabalhar eficazmente no combate à ignorância, é
preciso homens muito sábios e muito crentes: precisaríamos de
santos que fossem sábios e sábios que fossem santos. Queira Deus
no-los dar!”
Isto
já estava impresso quando, tendo aberto as Cartas de
Santa Teresa, encontramos nas primeiras páginas a seguinte passagem:
“Desejo,
mais ardentemente do que nunca, que Deus tenha a seu serviço homens
que unam à ciência um completo desapego de todas as coisas daqui de
baixo, que são a mentira e derrisão; sinto a extrema necessidade
que a Igreja tem disto e sou tão vivamente tocada por isso que me
parece até brincadeira afligir-me com outra coisa. Por isso não
cesso de recomendar a Deus esse assunto, persuadida de que um desses
homens perfeitos e verdadeiramente abrasados do fogo de seu amor,
dará mais fruto e será mais útil à Santa glória do que um grande
número de outros que sejam indiferentes e ignorantes”.
Esse
assunto que Santa Teresa não cessa de recomendar a Deus, esse
assunto pelo qual o coração da seráfica virgem era tão vivamente
tocado, é o pensamento chave da obra de Nossa Senhora da Santa
Esperança.
Quis
sapiens, et intelliget ista? (Os., XIV, 10) Onde estão os
homens a quem Deus deu o espírito de sabedoria e que compreenderão
isto? Que Deus se digne entregar-nos a eles ou proporcioná-los a
nós.
Estas
linhas foram escritas no dia da festa do coração de Santa Teresa
(27 de agosto). Recomendamos nossa obra às preces da seráfica
padroeira do Carmelo.
Revista
Permanência n° 186-187, Maio-Junho de 1984.
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