"Assim, ao mesmo tempo em que sabemos que Deus, que fez homem e mulher complementários, e que “Por esta razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua esposa, e os dois se tornarão uma só carne.”, o que elucida a ordem: “o que Deus uniu, não o separe o homem!”"
Frei
Zaqueu
A família pode ser
claramente caracterizada como a suprema instituição humana. Todos deveriam
admitir que ela tem sido, até agora, a célula-mãe e a unidade central de quase
todas as sociedades, salvo, na verdade, de sociedades como as da Lacedemônia,
que decidiram pela “eficiência” e, portanto, pereceram sem deixar vestígios. O
cristianismo… não alterou antiga e selvagem santidade; simplesmente a inverteu.
Não negou a trindade de pai, mãe e filho. Apenas leu em sentido contrário,
fazendo-a passar para filho, mãe e pai. Esta não é chamada de família, mas de
Sagrada Família, pois muitas coisas são santificadas ao virar de ponta-cabeça.
(Chesterton, Hereges).
Recentemente tive
acesso pelas redes sociais, estas fantásticas invenções que ao nos interligar
nos mantêm enredados, de uma novidade tão antiga quanto a geração
antediluviana. E esta foi a separação de mais um casal. Não fosse talvez pela
senhora, pessoa pública e notória defensora de valores cristãos, a coisa
ficasse como ficasse. Mas então o fato despertou-me estas linhas, que lanço à
arena virtual por intermédio de almas caridosas e gentis para daí poder dizer
com santo Inácio de Antioquia: que se tornem o trigo de Deus.
*
Os nossos tempos
se encontram bem traduzidos de maneira especial em duas passagens das
Escrituras de difícil digestão, mesmo ingestão. A primeira dirigida ao gênero
feminino, um dos dois únicos existentes, em que pese alguns distintos
cientistas e estudiosos. São os tempos daquela espécie de mulher que ao ir
misturando distraidamente desejos e pecados jamais aprende que a conta para se
entender a Trindade, na medida em que isso possa se dar, não é a da adição, mas
da multiplicação1. A segunda dirigida ao gênero masculino, outro dos dois
únicos, em que pese alguns distintos políticos e filósofos. São os daqueles
homens que entram no salão alardeando sua nova e opulenta roupa de gala, sem
dar-se conta de que ainda estão com o pijama2. Assim que, mulher e homem
parecem ter chegado ao cume da baixeza humana, desconsiderando por completo a
que veio, porque já não se sabe de onde veio ou para onde foi destinado. Melhor
dizer, de Quem e para Quem.
Iniciamos, como
visto, pela mulher, pois o início desse processo de involução se dá com ela,
sem pré-conceitos ou discriminação, esta, no sentido comumente entendido. Mas o
fato é que uma vez desligados da dignidade com que, em Cristo, foram
revestidos: “Tu o fizeste pouco inferior aos anjos, de glória e de honra o
coroaste, e lhe deste o mando sobre as obras de tuas mãos.” (Sl VIII, 6s),
invertem a ordem natural, pondo tudo de ponta-cabeça. E como por ordem divina a
sociedade humana inicia com a família, sua célula-mãe, o Criador, sabendo de
antemão das peripécias de suas criaturas, como nos aponta Chesterton porá de
ponta-cabeça as desordens das mesmas, reordenando-as com modelos de
santificação, em nosso caso o de uma Família Sagrada, que demonstre a que a
primeira e todas as demais vieram, ao tempo em que comprove que o ideal, não só
é desejável, mas realizável.
Para pecar não
precisamos sair do lugar (o que evidentemente vale para a santificação).
Quando, pela herança da Queda original, o homem (leia-se: a humanidade; porque
hoje é preciso aclarar sob pena de alguma espécie de homolatria) se torna
propenso a essa desordem, instintivamente se agarra a qualquer folha de
justificação para não se sentir nu. Ou para não permitir que o vejam nu. Se por
algum resquício de uma longínqua integridade intelectual não consiga revestir
sua nudez, isto é, justificar a desordem do pecado, não demorará a vir em seu
auxílio a rebeldia soberba, fundamento de toda insana revolução. Revolta-se
porque não se logrou dar rédea solta aos galopes dos desejos desenfreados, uma
vez que existem mãos de cocheiro perseverando em manter as bestas longe do
perigo de desembestar. Chame-se aquele consciência ou Anjo da Guarda. Até que
se precipite cocheiros ao solo, arrebente-se freios, sacuda-se viseiras,
desvencilhe-se de carroças e se ponha a galopar bestamente precipício abaixo,
não como os três, mas como os dois mil suínos de uma história nada fictícia.
Assim que as
insanidades estão atadas à vida. Elas a atingem direta e indiretamente. Um de
seus maiores sintomas, que já vem causando úlceras de todos os tipos na vida de
nossa enferma sociedade, é a hoje denominada “cultura da morte”, visceralmente
interligada a uma determinada cosmovisão de mundo a que chamamos Gnose
(coincidentemente a mesma que empresta sua inicial a determinados agrupamentos
humanos que “Alardeando sabedoria, tornaram-se tolos e trocaram a glória do
Deus incorruptível por uma imagem de seres corruptíveis…”). Já no A.T.
encontramos bons exemplos desta cosmovisão gnóstica: no fratricídio de Caim, na
sodomia dos habitantes de Sodoma, na tentativa de infanticídio por parte da
meretriz dos tempos de Salomão, e mesmo no adultério e posterior homicídio de
seu pai, o rei Davi: o que hoje conseguimos elevar a porcentagens até então
impensáveis, ainda que previstas3. Em nossos tempos, o hedonismo hodierno
traduz de forma convincente os frutos desta insana cosmovisão: na guerra e
violência banal e generalizada, no divórcio, no aborto, na eutanásia, na
ideologia de gênero, enfim, no mal, no feio e no falso. Por isso hoje em dia
existe um exemplo muito curioso em que vemos pessoas de todo tipo ansiando por
dar justificativas ao injustificável. Assim, ao mesmo tempo em que sabemos que
Deus, que fez homem e mulher complementários, e que “Por esta razão, o homem
deixará pai e mãe e se unirá à sua esposa, e os dois se tornarão uma só
carne.”, o que elucida a ordem: “o que Deus uniu, não o separe o homem!” (Gen
II, 24; Mt XIX, 6; Mc X, 8; Efe V, 31); a esse Deus o queiramos responsabilizar
e agradecer pelas separações dos homens – entenda-se homem e mulher – unidos
sob um sagrado compromisso, o do casamento, apesar da concessão à famigerada
carta de divórcio, concebida como exceção à regra e “por causa da dureza de
vossos corações” (Mt XIX, 8). O que torna sem justificação possível uma
coabitação entre Casamento e Divórcio, mui especialmente se se pressupor que
tal coabitação possa se dar “graças a Deus”.
Parafraseando
Chesterton, a questão sobre o casamento é que não há questão sobre o casamento.
O pano de fundo é simplesmente um que se desmembra: ainda como herança da
Queda, queremos a Redenção sem o Calvário. Desde a reprovação de nossos
primeiros pais, herdamos uma ácida acídia que corrói o desejo do mérito
justamente adquirido. Quer-se o prêmio sem o esforço. Daí que queremos a Deus
sem a Cristo, e Cristo sem a Igreja; daí que queremos ao Crucificado sem a
cruz, o bônus sem o ônus; daí que se quer o casal sem o casamento. Em minha
cidade natal há um parque por nome Redenção. Ele nos diz algo a respeito do
espírito com que o homem moderno busca ser redimido, e este é o recreativo.
Penitência, jejum, esmola, sacrifício e tudo o que tange ao negar-se a si mesmo
e tomar sua cruz, parte integrante não só do seguimento a Cristo, como de uma
família, cheira à mofo, ou dá indigestão. O Antigo Testamento já o demostrava.
O Novo já soava o alarme. A Igreja e os Santos o anunciaram e as heresias o
comprovam.
Emblemático – por
se tratar de algo em voga – é o caso de Lutero e sua invenção, o
protestantismo. Entre costumeiras supressões, acaba por suprimir também a cruz,
dela baixando o Crucificado para aliviar o fardo, ou a lembrança de um
fracasso. Dado que falhe à (ou apague da) memória de seus fiéis o fato de
Cristo desde sempre ter sido alegre e incompreensivelmente anunciado em seu
instante menos glorioso, tido por isso como “… escândalo para os Judeus,
loucura para os Gentios…”4; é compreensível que se queira a Cristo, mas não a
“Cristo crucificado…”, com suas loucuras e escândalos. E que se deseje
ardentemente o Adveniat regnum tuum, mas sem o Fiat voluntas Tua. Já em relação
ao catolicismo, para ficar em um bom, belo e verdadeiro – além de atual –
exemplo, mencionemos a pequena cidade bósnia-herzegovina por nome
Siroki-Brijeg. Lá não há (fábricas de) divórcios, garantindo assim, pela união
terrena com o ser amado a união celeste com o Ser Amor; em consequência,
tornando-se aqueles citadinos modelos universais. É que lá – coisa um tanto
louca e escandalosa – quem casa não quer casa, quer cruz.5 E aqui está o
segredo do anel.
Há uma curiosa
frase de efeito cunhada sob encomenda para traduzir o estado de ânimo/alma dos
adeptos da liberdade absoluta (contradição em termos a tudo o que se refira à
criação): “poder trocar de marido/mulher como se troca de roupa”. Nada tão
fácil e cômodo, livre de empecilhos. Ocorre que uma vez tornada lei a utopia, a
separação pelo homem do que Deus uniu terá como uma de suas naturais
consequências o aborto, natural empecilho à renovação de guarda-roupas. Não
sabendo como justificar o matricídio (por vezes de mãos dadas com o
parricídio), inventa-se o “argumento” de que, tal como a indumentária ou as
partes por ela cobertas, a criança seja algo que pertença à mulher; de onde a
palavra de (des)ordem: “meu corpo, minhas regras”. Claro sinal de que a doença
já criou metástase, atingindo as faculdades intelectivas de mulheres e homens;
e nos encontramos diante do mundo como um Grande Manicômio, como bem
vaticinaram os visionários Huxley e Orwell6. Como bem arquitetaram os gnósticos
de Sião7. Mas os defensores do casamento-indumento parecem não se contentar com
esta pseudojustificação e vão além: querem tornar defensável que uma separação
possa constituir um bem, um belo e um justo à prole – não raro, fruto de ato
livre e espontaneamente acidental. É batido o “argumento” oferecido a ela na
base da quantidade=qualidade: o de que, dada a nova situação, não se ponha
abatida ou fique aflita, ao menos agora terá duas casas para morar.
O mais gramisciano
dos gramscianos, o pensador marxista Antonio Gramsci, nos fez o prestimoso
favor de descobrir que para se implantar o Comunismo a nível mundial bastaria
com “rifar” duas simples instituições, a Igreja Católica e a Família8. E como
chegou à conclusão? Muito sensatamente por descobrir serem estes os alicerces
do mundo. Se houver alguma fundada objeção quanto à Igreja e o Oriente, tal
objeção não pode ser aplicada à Família. E ainda assim ficaríamos como estamos,
pois os valores contidos na e difundidos pela Igreja em todo o orbe não são
nada mais que os dez mandamentos universalmente conhecidos porque inscritos no
coração do homem9, desde que este deixou sua condição puramente mineral.
Mas a questão é
que o Casamento tem cura, e ela, bem administrada com a correta medicação,
tornará novamente sadio o corpo, seu e de quem dele se beneficia. Valendo-nos
de Gramsci como da víbora, se o Comunismo se alimenta, como parasita, da (morte
da) Igreja e da Família; e se o Comunismo já provou ser por si um câncer,
portanto uma enfermidade social e por cima gangrenada; dois remédios nos restam
para extirpá-lo, antes que estirpe todo o corpo social. E tais remédios já nos
ensinaram as avós das avós de nossas avós. Assim que a Igreja e a Família,
glóbulos brancos contra as células cancerígenas do Comunismo (e de tantas
outras), sua doença, são a cura para o casamento. Contudo, há que saber extrair
o veneno da própria serpente que o morde para então poder entrar neste jardim
sagrado, neste oásis em meio ao deserto, já tão maltratado pelas intempéries e
fauna peçonhenta. Para poder beber de suas fontes, provar de seus frutos (permitidos)
e desfrutar de sua sombra, pois que há um “vale da sombra da morte”10 à
espreita em cada esquina, em cada mídia, em cada diversão e ainda que nos
custe, em cada igreja. Mas que não desesperemos, como guia no caminho nos foi
dada uma Sagrada Família. Em seu seio, uma Mulher, que obviamente é uma Mãe.
Com Ela a promessa de que um belo dia seu materno Coração triunfará.
Aos 23 de novembro
do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2016.
Frei Zaqueu
__________________
Em tempo: O jornalista inglês Gilbert Keith Chesterton,
detentor de uma vasta, versátil e inigualável produção literária, e possível
primeiro santo jornalista da Igreja (mui providencial a esses tempos de
abundante pecado jornalístico), nos deixou o feliz e apaixonante ensaio sobre o
Casamento intitulado: The Superstition of Divorce11. Ele traz a dupla vantagem
de nos servir, ao casamento e à família. E se puder acrescentar ainda outra
serventia não menos desprezível, ele também nos servirá à eterna felicidade.
Mas se com ele abrimos este artigo, com ele podemos com justiça encerrá-lo,
pois aos que há muito decretaram a morte do casamento tal como nos foi proposto
pelo Criador, ele responde: “Essa sociedade nunca será capaz de julgar o
casamento. O casamento julgará essa sociedade; e possivelmente irá condená-la.”
Crédito: Airton
Vieira de Souza
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