"Eu sei bem distinguir a voz
de minha Mãe dos relinchos do Cavalo de Tróia"
Gustavo Corção
Dos últimos artigos, em que expandi
minha admiração pela vitalidade dos católicos franceses, que aos milhares se
revezavam na sala Wagram para assistir à Santa Missa não deformada, algum
leitor mais afastado e menos informado poderá concluir, receio-o, que toda a
polêmica entre tradicionalistas e progressistas gira em torno do novo
"Ordo Missae", e que o caso de Monsenhor Lefebvre tem o mesmo centro
de gravidade.
Houve efetivamente, no mundo católico,
em todo o orbe, manifestações de estupor desde as primeiras festivas irregularidades,
fantasias e aberrações avulsas produzidas na celebração da Missa por padres
inebriados de novidades.
Esse período de anarquia e de abusos
começou antes mesmo do encerramento do Concílio, e tomou vulto nos primeiros
anos pós-conciliares. Tínhamos a impressão de um vento de loucura contagiosa
dentro das igrejas nas missas dominicais. Quando o altar virou "versus
populum", os observadores mais atentos logo notaram nos olhos esgazeados e
nos gestos descompassados do padre a exultação de uma descoberta: viam, de
repente, um auditório, ou arquibancada que lhes daria, conforme a vocação de
cada um, a esperada oportunidade de conferencista eloqüente ou animador de
programas. Em termos simples diríamos que, de repente os padres perderam os
bons modos, e ficaram empenhadíssimos em produzir movimentação, tumulto,
vozerio que, na opinião deles provocaria uma maior participação dos fiéis na
missa.
No Brasil a anarquia litúrgica esteve
eclipsada a partir de 64 pelas façanhas de Dom Helder Câmara que viajava pela
Europa inteira a difamar o Brasil, que tivera a audácia de expulsar os
comunistas e de reprimir qualquer movimento desse tipo. Na campanha de Dom
Helder, o Brasil perseguia o partido dos pobres.
A partir de 1969, a celeuma em torno da
liturgia ganhou nova dimensão provocada pelo novo "Ordo Missae" que
se apresentava como coordenação das reformas conciliares. Esta obra que daria à
Igreja nova missa, quebrando a secular e bela continuidade da missa codificada
e decretada por São Pio V, viria também refrear os abusos e experiências
avulsas de cada padre. A cúpula da Igreja reclamava o privilégio de fazer
experiências e de introduzir novidades em torno do Sangue de nosso Salvador.
As razões desse misterioso imperativo
de remexer as coisas santas foram tiradas do princípio do
"aggiornamento" e foram nitidamente reafirmadas na Alocução
Apostólica de Paulo VI, de 3 de Abril de 1969, com a qual o Papa promulgava e
apresentava aos católicos o novo "Ordo Missae", elaborado por Monsenhor
Annibal Bugnini, sob a atenta vigilância de quatro ou cinco
"observadores" protestantes. O Cardeal Ottaviani escreveu ao Papa uma
carta patética que não foi lida com a atenção que merecia.
No mundo inteiro ergueu-se uma campanha
ardente orquestrada por clamores de vários timbres, mas toda ela motivada pelo
mesmo amor à santa religião, selada com o Sangue de Nosso Senhor. Os católicos
viam com infinita consternação, ou incontida indignação, que a obra de anarquia
e destruição cercava a Santa Missa e visava o alvo do "mysterium
fidei": a presença real de Jesus Cristo na hóstia consagrada. A mais
maravilhosa das obras de Deus, pela qual teríamos nós, no curso dos dias e dos
séculos, a prometida companhia de Jesus; e graças à qual cada um de nós que
colhe os frutos da Presença de Jesus, pela força divina desta Presença consegue
- vencendo as distâncias e os séculos - estar presente "juxta
crucem", naquele dia singular, exemplar, em que Jesus sacerdote celebrou o
santo sacrifício da Cruz para oferecer aos homens, pelos séculos e séculos, os
frutos dessa árvore.
Nós sabemos que a Santa Missa, se tira
da Ceia do Senhor a forma incruenta do mesmo sacrifício, tira da cruz o caráter
essencial do sacrifício. Ora, toda a tendência da nova missa composta por
homens levianos e incompetentes, e vigiada de perto pelos inimigos da Igreja,
era de apresentar a Santa Missa como um ameno convescote presidido por um padre
que tudo faz para se despojar desse título que lembra outro Padre. O famoso
artigo 7 exibiu à consciência católica aturdida, esta amostra de horrível
impiedade: "A ceia do Senhor, também chamada missa (!!?), é a assembléia
sagrada ou congregação do povo de Deus reunido sob a presidência do sacerdote
para celebrar o memorial do Senhor".
Naquele tempo, ainda não vacinado pela
soma de disparates produzidos na chamada "Igreja pós-conciliar",
encolerizei-me diante de tal amontoado de asneiras e disse delas, em termos
crus, o que pensava e ardentemente desejava clamar, para ajudar os vacilantes.
Um bispo, designado pela CNBB para os problemas da liturgia reformada, reclamou
publicamente a minha irreverência em matéria grave que vinha de Roma. Outras
vozes me acusavam de orgulho e de pretender ensinar o Padre Nosso ao Vigário.
Respondi-lhes que nunca me gabei de meu saber, mas logo acrescentei que o
triste episódio me dava ensejo de gabar-me de uma modesta mas importantíssima
aptidão: eu sei bem distinguir a voz de minha Mãe dos relinchos do Cavalo de Tróia.
Preciso explicar que a idéia do Cavalo e de seu relincho acabava de ser lançada
num livro de Dietriech Von Hildelbrand?
Esse "ponto 7" era realmente
excessivo e provocou tamanho, escândalo, que levou a cúpula da Igreja a
corrigi-lo. Na verdade não o corrigiu, remendou-o, introduzindo aqui ou ali a
palavra sacrifício que bastou para tranqüilizar as consciências sequiosas de tranqüilidade.
E este pequeno exemplo basta para
mostrar ao leitor de hoje, que meus dois adjetivos "levianos e
incompetentes" se aplicam aos fautores que, em obra de tão incomparável
importância, voltam atrás, rasuram, remexem mais um pouco, e julgam ter dado à
obra conjunta um valor e uma dignidade que ela jamais poderá reclamar.
Durante algum tempo e apesar de todas
as deformações introduzidas na liturgia da Santa Missa, cheguei a pensar que a
permissão Divina cobrira com seu mistério a malícia dos ímpios inovadores, e de
algum modo protegera a validade da consagração, sob a condição de ser feita por
um padre fiel às intenções da Igreja tradicional, e sobretudo fiel à Fé da
Presença Real. Se outros fatores não nos conduzissem irresistivelmente a crer que
a existência de tal padre, dentro do contexto pós-conciliar, se torna mais
improvável na medida que esse padre aceita e engole tranqüilamente com a
atmosfera irrespirável de falsificações, ainda hoje teria a mesma posição.
Um padre moço, assustado e meio
escandalizado, perguntou-me se o "ex opere operato" não salvava,
mesmo nesses casos extremos, a validade da consagração. Lembrei-me com tristeza
do abuso com que, nos tempos de nosso movimento litúrgico, difundíamos essa
fórmula quase mágica, e expliquei ao padre que um sacerdote que acabasse de
fornicar podia validamente consagrar a hóstia, mas que um sacerdote que não
mais crê na Presença Real não pode, porque as palavras que pronunciará para
enganar os fiéis, ou enganar-se a si mesmo, são puros sons destituídos de
significação, desligados do conceito, e portanto incapazes de dar forma ao
sacramento; e além disso parece-me que a aceitação do contexto dessa Igreja
pós-conciliar, torna impossível a fidelidade às intenções da Igreja
tradicional. Hoje, passados sete anos, milhares de evidências se ergueram em
nosso caminho, todas convergindo para a mesma conclusão a que certamente já
chegaram os numerosos franceses que enchem a sala Wagram.
Não recusamos o Novo Missal apenas por
suas deformações que já bastaram para nos saturar de aflições, recusamos, por
amorosa fidelidade à Santa Religião do Deus que se fez homem, toda uma nova
religião do homem que se faz deus, que tantos estão engolindo depois de terem
engolido a nova missa. Voltaremos em outro artigo aos fatos principais que nos
levaram a essa conclusão que me é imposta não por engenhosos raciocínios
próprios ou alheios, mas pela luz da Fé.
O
Globo, 9-12-76
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Antes de postar seu comentário sobre a postagem, leia: Todo comentário é moderado e deverá ter o nome do comentador. Comentário que não tenha a identificação do autor (anônimo), ou sua origem via link e ainda que não tenha o nome do emitente no corpo do texto, bem como qualquer tipo de identificação, poderá ser publicado se julgar pertinente o assunto. Como também poderá não ser publicado, mesmo com as identificações acima tratadas, caso o assunto for julga impertinente ou irrelevante ao assunto. Todo e qualquer comentário só será publicado se não ferir nenhuma das diretrizes do blog, o qual reserva o direito de publicar ou não qualquer comentário, bem como de excluí-los futuramente. Comentários ofensivos contra a Santa Madre Igreja não serão aceitos. Comentários de hereges, de pessoas que se dizem ateus, infiéis, de comunistas só serão aceitos se estiverem buscando a conversão e a fuga do erro. De indivíduos que defendem doutrinas contra a Verdade revelada, contra a moral católica, de apoio a grupos ou ideias que contrários aos ensinamentos da Igreja, ao catecismo do Concílio de Trento, ferem, denigrem, agridem, cometem sacrilégios a Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, a Mãe de Deus, seus Anjos, Santos, ao Papa, ao clero, as instituições católicas, a Tradição da Igreja, também não serão aceitos. Apoio a indivíduos contrários a tudo isso, incluindo ao clero modernista, só será publicado se tiver uma coerência e não for qualificado como ofensivo, propagador do modernismo, do sedevacantismo, do protestantismo, das ideologias socialistas, comunistas e modernistas, da maçonaria e do maçonismo, bem como qualquer outro tópico julgado impróprio, inoportuno, imoral, etc. Alguns comentários podem ser respondidos via e-mail, postagem de resposta no blog, resposta do próprio comentário ou simplesmente não respondido. Reservo o direito de publicar, não publicar e excluir os comentários que julgar pertinente. Para mensagens particulares, dúvidas, sugestões, inclusive de publicações, elogios e reclamações, pode ser usado o quadro CONTATO no corpo superior do blog versão web. Obrigado! Adm do blog.