“Vi aquele gigante submerso no gelo, despontando
seu corpo do peito para cima. Só o seu braço tinha o tamanho de um daqueles
gigantes que encontramos na entrada do lago. Fiquei mais assombrado ainda
quando vi que três caras ele tinha na sua cabeça. Toda vermelha era a da
frente. A da direita era amarela e a da esquerda negra”. Canto XXXIV – A Comédia
de Dante
Satanás é representado por Dante como um monstro de
três cabeças num lago de gelo. O lago gelado representa a falta de caridade, as
três cabeças, cada uma de uma cor diferente, representam: a impotência (amarelo
claro), a ignorância (preto) e o ódio (vermelho). Satanás é o negador e rebelde
por excelência e por isso, dos seres existentes, ele é o que menos participa
dos bens comunicados por Deus às criaturas, isto é, o Poder do Pai
(onipotência, poder), a Sabedoria do Filho (onisciência, conhecimento) e o Amor
do Espírito Santo (onipresença, bondade). Donde ser essa qualidade de ateu a
mais infeliz e perigosa de todas. O sábio, por outro lado, participa
dessas três potências divinas na medida que progride no conhecimento da verdade
e na prática da virtude pela Metafísica (estudo do ser), Lógica (estudo do
pensamento) e Ética (estudo da ação).
Ateu é todo aquele
que ignora ou nega a existência de Deus. Existem três tipos de ateus entre os
seres humanos.
Há o ateu por ignorância. É de conhecimento
geral que o ser humano nasce completamente pobre, desarmado, nu, perdido e
assustado. Ao nascer ele ainda se encontra privado daquele arsenal da
inteligência, daquela ferramenta poderosa que mais tarde lhe permitirá a
aquisição de conhecimentos novos e seguros pela via do raciocínio.
O tempo é o melhor remédio para esse tipo
de ateísmo. De fato, no curso do desenvolvimento humano, o ateísmo é uma
privação temporária, assim como são a falta de visão e a falta da fala. Tais
limitações iniciais hão de ser superadas ou contornadas de alguma maneira na
medida que o tempo avança e a criança cresce, sempre com o auxílio de terceiros
que a vestem, alimentam, protegem e educam.
Entretanto jamais se pode dizer que essas
privações (ignorância, falta de visão etc.) são boas em si mesmas ou naturais,
pois em uma espécie sempre o perfeito (= completo, realizado, pleno) é tomado
como a medida e o modelo do imperfeito e não o contrário. O bebê não é a medida
e o modelo do homem, antes é o homem já adulto. O adulto é a medida e o modelo
da espécie e é a sua ciência que deve ser tomada como ponto de referência para
a criança.
Há ainda o ateu por fraqueza. Esse já
cresceu, os dentes de leite deram lugar aos permanentes, já fala e já se
movimenta como todo bípede pensante, mas, por ter recebido uma educação
precária ou por viver em condições muito difíceis, não é capaz de chegar ao
conhecimento de Deus pela força de sua própria inteligência.
Essa situação é mais comum do que se pensa:
a maior parte das pessoas precisa trabalhar para sobreviver e não tem tempo
para o lazer requerido pela investigação racional, do mesmo modo há também
aquelas pessoas que até possuem o tempo requerido para ela, mas não possuem
gosto pelo estudo, preferindo antes morrer que aprender coisas mais
complicadas.
É principalmente tendo em vista esses dois
tipos de pessoa, as quais Nosso Senhor carinhosamente chamou de pequeninos, que
a fé católica foi revelada e anunciada aos homens numa fórmula simples e breve.
A fé de fato inclui também aquelas verdades que são acessíveis à razão, mas que
demandam muito estudo da parte da pessoa. Isso é bastante útil para aqueles
que, como dito acima, não possuem nem o tempo de lazer requerido, nem o gosto
pela ciência necessário para a compreensão da verdade.
De fato, a fé é dom divino que supre a
ignorância e a fraqueza, ela permite ao homem entender o que ele não teria
condições de aprender sozinho. Quando toca à existência de Deus, a fé é um
remédio para os pequeninos (ignorantes e fracos) e uma confirmação para os mais
adiantados na ciência.
Há por último o ateu por orgulho. Dos três
ateus, esse é o mais infeliz e o mais perigoso de todos. Ele possui tudo o que
os outros dois não possuem, exceto a humildade. Ele também é um homem de
ciência, como o sábio, mas a sua ciência é usada para a promoção de si mesmo e
não para a promoção da verdade e do bem comum. A religião dele é
a religião de Satanás.
"… Embora o Anjo (caído) estivesse em verdade rebaixado pelo abandono
dos bens superiores, embora ele estivesse, com Santo Agostinho diz, caído ao
nível de seu bem próprio, ainda assim ele elevou-se a seus próprios olhos, e
esforçou-se mediante argumentos poderosos (magna negotiatione) para provar
completamente aos outros que ele não almejava senão a uma maior semelhança com
Deus, pois desse modo ele procederia com menos dependência de Sua graça e Seus
favores, e de maneira mais pessoal (magis singulariter), e o mesmo por não se
comunicar com inferiores."
Ele usa dos conhecimentos adquiridos como
argumentos para provar que ele e os demais não precisam de Deus, que isso os
fará pessoas melhores e mais livres. Ele é muito humanista e convincente nas
palavras, um sedutor que vende seu orgulho como se fosse ciência. Esse ateu é
aquele que jamais se dará por vencido, não importam os argumentos empregados
pelos sábios.
A única coisa efetiva que se pode fazer
nesse caso é afastar-se dele e afastar os pequeninos de sua influência, porque
ele se considera mais sábio que os santos e os doutores, mais valente que os
mártires e os missionários, melhor e mais poderoso que Deus. E não obstante
toda essa sua presunção, eis que as suas palavras são desmentidas pelo o que
ele realmente é: os nossos olhos nos atestam que ele é precisamente o oposto de
tudo aquilo que ele proclama. Ele é o maior inimigo de si mesmo e dos demais. A
sua cegueira diante da evidência de sua corrupção moral, tal como a cegueira de
Satanás, já é o castigo pelo seu orgulho injustificável.
Convém aos sábios protegerem as pessoas
mais simples contra a megalomania desse terceiro tipo de ateu, o qual é por sua
própria escolha um mentiroso e um corruptor de si próprio e dos outros.
Se fosse possível aos nossos concidadãos
entenderem a gravidade e importância de militar contra esse tipo de ateísmo,
certamente a profissão pública dele seria proibida e jamais um mestre, político
ou magistrado ateu poderia ser tido como amigo da nação.
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