“Em todas as partes hoje a vida das Nações foi desintegrada pelo culto cego do valor numérico” (Pio XII, Radiomensagem 24.12.1944)
PADRE CURZIO
NITOGLIA
[Tradução:
Gederson Falcometa]
20 de Julho de
2011
Proêmio
Já vimos qual é a concepção política clássica e
escolástica. Agora devemos ver como no fim da II Guerra Mundial Pio XII
compreendeu que estava tendo fim a modernidade e que a humanidade estava para
desembocar na via da pós-modernidade niilista. Ele procurou fazer compreender
que a única via percorrível para evitar um esfacelamento pior que o do segundo
conflito mundial era o retorno à sã filosofia clássica e escolástica, à
verdadeira teologia tomista e às diretivas do Magistério eclesiástico. Vejamos
juntos o ensinamento social e político de Pio XII.
“Qualidade” e não “quantidade” na “Res publica”
Em 6 de abril de 1951, Pio XII fez um Discurso aos
dirigentes do Movimento Universal por uma Confederação Mundial, no qual o Papa
refuta o otimismo democratista, que vê na democracia moderna e no culto do número
a única e melhor forma de governo. Pio XII expõe e refuta os “três dogmas” da
“política” antropocêntrica moderna.
O povo é “soberano” ou “canal”?
Segundo a tese erronêa do democratismo moderno, o
poder vem do povo, de baixo, e não de Deus ou do Alto. Ao invés, o poder vem de
Deus causa primeira e fonte de todas as coisas e é transferido dos eleitores
para o eleito, assim como a água que atravessa um canal vem da fonte (Deus) e
não do próprio canal (povo) e chega ao Governante, que é o dono e não tem
apenas seu uso. Só se aquele que governa se tornar tirano ou não governar para
o bem comum, então a sanior pars populi pode retirar de fato o poder que de
jure Deus já não subsidia, porque é exercitado contra Deus e a sua Lei. Os
homens e as famílias, para viverem juntos e virtuosamente, devem
necessariamente ter um Governante, uma Autoridade. Sim, porque a Sociedade
civil é dividida em Governantes que devem comandar (fazer leis, fazer
respeitá-las e castigar quem as viole) e súditos que devem obedecer. O
verdadeiro soberano, porém, é Deus e não a vontade popular, que no máximo pode
escolher um Governante cujo poder derivaremotamente de Deus através do povo,
que serve como um canal de forma próxima.
“Infalibilidade” do povo eleitor?
• Depois do pecado original, o homem está sujeito à
ignorância e ao erro. Somente Deus e o Magistério da Igreja, quando quer
definir e obrigar a crer em uma verdade de Fé ou de Moral, são infalíveis. O
povo eleitor não participa da infalibilidade divina, ao contrário do Magistério
pontifício ou universal. Ninguém jamais prometeu a infalibilidade ao povo,
exceto os demagogos, que servem a seus próprios interesses com decisões que
fizeram a massa manobrada tomar, refugiando-se atrás do pára-vento da
infalibilidade do eleitorado popular.
• Pio XII insiste muito na distinção entre “povo” e
“massa”. O “povo vive e se move com vida própria” [1], tem uma forma, um ato,
um ser e uma vida sua; ao invés, “a massa é multidão amorfa” ou sem forma ou
princípio de vida, matéria passiva, indeterminada, sem ato ou perfeição. O Papa
continua: “a massa é de per si inerte, e não pode ser movida senão ser de fora.
O povo vive da plenitude de vida dos homens que o compõem”. Assim, o povo é
constituído de homens inteligentes e livres, que têm princípios, convicções,
são donos de si mesmos e conhecem as suas obrigações e direitos; enquanto a
massa é pura potencialidade que é movida e dirigida por alguém de fora dela,
como um carro puxado por bois. A massa é uma entidade sub-humana privada de convicções
próprias, de princípios, de uma sã moral, sem iniciativa própria; e portanto
vive do instinto, de paixões e sentimentos desregulados sem nenhuma
subordinação à razão e à vontade livre. O homem que faz parte da massa não é “o
animal racional” aristotélico, mas “o animal sensitivo” da pós-modernidade
niilista, a qual com o conflito de 1968 fez do homem uma “ovelha louca” que –
como dizia em 1944 Pio XII – “é um joguete fácil nas mãos de qualquer um que
explore seus instintos e impressões sensíveis” [2]. O povo não é a maioria
quantitativa, mas é a parte qualitativamente melhor da sociedade. O
democratismo moderno não tem nada que ver com a ideia aristotélica e tomista da
sã democracia clássica, que é a população de um País dotada de forte personalidade
individual e social.
• O povo é similar ao corpo humano de que falava
Menenio Agrippa e depois também São Paulo, no qual todos os órgãos possuem sua
função e importância, tanto os inferiores (pés) como os superiores (cérebro), e
nenhum deles pode fazer menos que os outros porque todos são necessários, além
de terem uma hierarquia, que não empobrece nenhum, mas enobrece a todos,
fazendo-os participar do bem comum. Assim como os pés de um homem levam o seu
coração e o seu cérebro, assim também as classes humildes da Sociedade tornam
possível a subsistência das elevadas não tanto por riqueza, mas por virtude
moral e racional. Este apólogo ensina a evitar dois erros opostos: um por
defeito (o igualitarismo), segundo o qual todos são qualitativamente absolutamente
iguais e que nega toda diversidade ou desigualdade qualitativa; e o outro por
excesso (o des-igualitarismo), que exagera a diferença acidental e ergue
barreiras intransponíveis entre os homens, não tanto pela qualidade
intelectual, moral e espiritual ou de “boa educação, que é a flor da caridade”
(São Francisco Sales), mas sobretudo pela econômico-social. Estes são os
famosos “s-nobs” os “s[em]-nob[reza]”, os quais, como a Serva patrona de
Goldoni, querem a todo o custo fazer valer a posição socioeconômica que
alcançaram, muitas vezes sine nobilitate ou cum magna injustitia seu
dishonestate. O Livro Sagrado dos Provérbios recorda que “não há pessoa mais
cruel que uma escrava que se torna patroa”. A verdade se encontra in medio et
culmen (no justo meio de profundidade e agudeza e não de mediocridade e
baixeza). Entre esses dois erros opostos ou desvios morais está a doutrina da
Caridade fraterna sobrenatural propter Deum, Pai de todos os homens. Na
verdade, se todos os homens são iguais quanto à natureza humana, neles existem
diferenças acidentais, as quais, longe de suscitar a contraposição entre
“esquerda” (ódio de classe) e “direita” (s-nobismo), devem fazer que eles
cooperem caritativamente para o bom funcionamento da Sociedade, que como um
corpo físico precisa de órgãos nobres (coração e cérebro) e menos nobres (pés e
mãos). Não existem classes moralmente baixas ou vis; o importante é que todos
cumpram bem o seu dever de estado na classe em que a Providência os colocou.
Existem homens moralmente e intelectualmente baixos, vis e estúpidos, mas
talvez economicamente “altos” ou altivos, como os que desprezaram até São José
e o Menino Jesus porque eram carpinteiros e não faziam parte das elites
tradicionais, por descenderem cerca de mil anos depois do Rei Davi e serem
socialmente “caducos”.
• Pio XII recorda que, se o povo não é por si mesmo
infalível, a massa quase seguramente erra, privada de convicções, de verdadeira
liberdade, e escrava da opinião pública, que é maniputada pelos titereiros, que
puxam as cordas que seguram as marionetes.
O “sufrágio universal” é fonte de direito e verdade?
• Uma das votações mais célebres da história humana
foi a que condenou à morte Jesus e premiou Barrabás. Agora, pode-se perguntar:
o sufrágio universal exprime a vontade da massa manobrável e manobrada ou a do
povo ou sanior pars Societatis? O povo é uma Sociedade civil, orgânica, viva e
vivente, hierárquica como todo corpo, ordenada, não achatada e nivelada, na
qual as diferenças constituem sua harmonia e beleza (imagine-se uma mão em que
os cinco dedos fossem todos iguais: seria monstruosa!). Então, se todos podem
pronunciar-se do mesmo modo e com o mesmo valor sobre todas as coisas, e se na
contagem dos votos expressos todos valem a mesma coisa, de facto este sistema
exprime a vontade da massa e não da sanior pars populi. Por exemplo, durante o
processo de Jesus, alguns dos Escribas e dos Sacerdotes eram contrários à sua
condenação, e o mesmo Pilatos o era; mas a massa incitada pelo Sinédrio votou
majortariamente pela morte de Jesus e pela liberdade de Barrabás. Isto
significa que o sistema do sufrágio universal, que confere somente à maioria
númerica ou quantitativa, em detrimento da qualificativa, o direito de
estabelecer uma lei e uma verdade, não representa a vontade do autêntico povo
orgânico e vivo, mas da massa amorfa e informe, pronta para ser manipulada,
como a argila pelo oleiro. Assim, através da eleição ou sufrágio universal, na
qual vence a maioria quantitativa ou numérica e não a qualificativa, não é o
povo vivo que decide. Pio XII estigmatizava esta tendência e a definia como o
“culto cego do valor numérico” [3]. O cidadão não conta por aquilo que é ou
vale segundo o seu grau de civilidade, mas como quantidade, número ou voto ou
contribuição eleitoral que torna possível ao “poder”, no sentido “deteriorante”
do termo, continuar a manter o consenso e o governo. Diante deste perigo para o
qual se estava dirigindo também a Europa, Pio XII procurou remediar propondo a
reafirmação dos princípios da filosofia perene teórica e social e procurando
indicar uma ordem social futura na qual as instituições políticas pudessem
depender não do “culto cego do número”, mas da ordem orgânica e natural da
sanior pars Societatis. Na verdade, segundo o democratismo moderno e
antropocêntrico o mundo político não é uma Sociedade de famílias que se unem
por tendência naturalmente inscrita no homem a fim de conseguir o “viver
virtuoso”, mas uma engrenagem artificial e mecânica, na qual prevalece a
quantidade ou matéria e não tem nenhuma relevância a qualidade ou forma
intrínseca. No campo cultural e moral, já não dominam os valores objetivos
conformes à lei natural e divina, mas a liberdade individual como valor
absoluto ou fim e não como meio para atingir um propósito, liberada pois de
todo vínculo e lei objetiva. O propósito do Estado é ajudar as famílias e os
indivíduos que o compõem a conseguir a “vida virtuosa” na linha traçada pelo
Decálogo, o que permite fazer alcançar o bem individual, privado e comum. A
modernidade tem uma concepção de Estado e de política mecanicista, com o homem,
a família e a Sociedade civil não naturalmente ordenados a seu fim, que é o bem
comum natural, virtuoso e sobrenatural, e sim como uma máquina (vide Descartes
e o homem animal máquina) não orgânica ou viva, mas estudada e projetada (já a
partir de Maquiavel, para chegar,
através dos idéologos de 1789, até o marxismo revisado e ao teoliberalismo)
como um conjunto de rodas ou mecanismos, que se movem não pela vida que possuem
dentro de si mesmos (“vivere est movere seipsum”, dizia Aristóteles), senão por
um movimento que vem do exterior ou “heterodirigido”. A quantidade não é nem
pode ser o critério supremo. Ora, na democracia moderna ou democratismo, é o
“culto do número”, ou seja, a quantidade de votos, que se torna critério
supremo de verdade e bondade. Um exemplo muito prático para fazer entender a
absurdidade deste sistema ideológico-político: se somos 10 pessoas na Torre
Eiffel e se decide que devemos jogar-nos dela, e 6 pessoas dizem que sim, as
outras 4 pessoas seriam obrigadas – segundo o democratismo igualitarista – a
seguir a maioria quantitativa, mas evidentemente não qualificativa, na própria
irracionalidade suicida: assim, se a maioria decide que o aborto é legal, o
infanticídio torna-se lei de Estado. Não é a qualidade ou quem raciocina
segundo a verdade e a justiça, mas o “número amorfo”, que estabelece o que é
verdadeiro e bom!
É possível “hoje” uma Sociedade cristã?
• Imediatamente não é provável, porque natura non
facit saltus, sed procedit gradatim. Todavia, deve-se sempre manter vivo o
princípio ou ideal da filosofia política perene, do Magistério tradicional e do
“Direito público eclesiástico”, os quais ensinam que naturalmente o homem deve
ser submisso a Deus seu Criador, e sempre naturalmente a Sociedade civil deve a
Deus, que criou o homem animal naturaliter socialis, o culto que lhe é devido. A
natureza impele o homem, a família e o Estado a viverem virtuosamente em comum,
observando os Mandamentos que Deus inscreveu na nossa natureza e que depois
revelou para tornar mais fácil a sua observância. Assim também, a Autoridade
naturalmente tende a estimular o bem e a punir o mal, porque esta e a sua
finalidade natural e intrínseca. Ora, apesar da degradação do homem, da família
e da Sociedade (civil e religiosa) contemporâneas, a natureza não pode mudar
substancialmente; pode sofrer maus influxos, mas tende ao seu fim, e nada é
mais forte que a natureza, especialmente se ajudada pela Graça, que é dada de
forma suficiente a todos os homens. Assim, o Estado, a família e o indivíduo
tendem ao seu fim natural: o viver virtuosamente na via traçada pelo Decálogo;
e a Autoridade tende a fazer que ele seja respeitado e a punir sua
transgressão, apesar das depravações com que podem ferir o homem e a Sociedade
os detentores da Autoridade, nas várias épocas históricas.
• Pio XII havia
compreendido perfeitamente que o mundo contemporâneo no campo cultural, moral e
espiritual estava para desembocar na via do niilismo e havia exclamado: “A
liberdade individual, liberta de todos os vínculos, de todas as normas e
regras, de todos os valores objetivos individuais e sociais, na realidade é uma
anarquia mortal, sobretudo na educação da juventude” (24 de dezembro de 1944).
Nunca uma profecia de desgraça foi mais certeira! E nunca a utopia do otimismo
exagerado com respeito ao encontro entre o homem moderno e a Igreja (João
XXIII), entre antropocentrismo e teocentrismo [4] (Paulo VI e João Paulo II)
foi mais errada e fora da realidade. Pio XII recorda que, enquanto organismo ou
corpo social é conforme à natureza e então é reto, verdadeiro e bom, o
“mecanicismo”, e a Sociedade mecanicista projetada pelos ideólogos
revolucionários, é inadequado e incapaz de explicitar a finalidade inerente à
natureza humana. Na verdade, as peças de uma máquina não se movem por si
mesmas, mas são movidas de fora. É por isso que a massa é “manipulável”, como o
foi pelo Sinédrio durante o processo de Jesus. A natureza é obra de Deus, obra
direta d’Ele como Causa primeira e principal, enquanto a máquina é obra do
homem e dirigida por ele.
O laicismo moderno
• Já citamos os Padres e o Magistério sobre a
subordinação hierárquica entre Estado e Igreja. O leitor pode valer-se de um
livro muito precioso, infelizmente já não à venda, compilado por dois
professores da Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão: Giorgio
Balladore-Pallieri & Giulio Vismara, Acta pontificia Juris Gentium usque ad
annum MCCCIV, Milão, 1946. Ele recolhe os documentos pontíficios desde o século
II até Bonifácio VIII. O Magistério retornou ao tema a partir do “Direito novo”
nascido com a modernidade iluminista, que propunha a separação total entre
Estado e Igreja. Do Papa Pio VI (+1799) a Pio XII (+1958) é confirmada a
doutrina da união e subordinação hierárquiva dos dois poderes segundo a nobreza
dos fins (temporal e espiritual). O Estado cristão existiu desde Constantino
até a Revolução francesa.
• Leão XIII o recorda: “Houve um tempo em que a
Filosofia do Evangelho governava os Estados. Quando a força do espírito cristão
estava penetrada nas leis civis, nas instituições temporais, nos costumes dos
povos; […] quando procediam concordemente o sacerdócio e o Império. […]. Se a
Europa cristã domou as hordas bárbaras, […] se vitoriosamente repeliu as
invasões dos muçulmanos, se tem o primado da civilização, […] não há dúvida que
em grande parte ela o deve à religião. Sem dúvida, todos esses benefícios
teriam durado, se houvesse de igual modo durado a concórdia entre os dois
poderes” (Immortale Dei, 1885). Leão XIII depois passa a explicar como tal
harmônia foi rompida pelo “espírito de novidade do século XVI”, o qual
“primeiro ataca a religião [subjetivismo luterano], depois a filosofia
[subjetivismo cartesiano] e por fim o Estado [democratismo rousseauniano]”, de
modo que o “direito natural” foi substituído por um “novo direito”, subjetivo e
fundado sobre o Individualismo relativista (Immortale Dei, 1885).
Que inimigo fez tudo isto?
• Pio XII fez esta pergunta no Discurso aos homens da
Ação Católica, “Nel contemplare”, de 12 de outubro de 1952. Pacelli exclama:
“Não perguntais qual é o inimigo, nem que roupa veste. Ele se encontra em todas
as partes e no meio de todos; sabe ser violento e desonesto. […]. Ele quer a
natureza sem a graça; a razão sem a Fé; a liberdade sem a Autoridade. É um
inimigo que se tem tornando cada vez mais concreto, com uma inescrupolisidade
que nos deixa ainda atônitos: Cristo, sim; Igreja não. Depois: Deus sim; Cristo
não. Finalmente o grito ímpio: Deus está morto, Deus nunca sequer existiu”.
Como se vê, segundo Pio XII, que remonta ao Magistério constante e então infalível
da Igreja de Gelásio I (+469), a separação ou divórcio entre Estado e Igreja é
um mal, um pecado, uma apostasia gravíssima do homem, da família e do Estado e
da Igreja que Ele fundou. A teoria, o ideal ou o princípio é o da união e
cooperação hierarquizada entre Estado e Igreja. Todavia, algumas vezes, para
evitar um mal maior, tem-se de tolerar praticamente, mas não teoricamente, um
culto e uma religião não católica, os quais não possuem direitos, mas devem ser
tolerados como uma dor de dente até que o dentista possa arrancar o dente
cariado: “Aquilo que não corresponde à verdade e à norma moral não tem
objetivamente nenhum direito à existência, nem à propaganda” [5]. Também o Papa
reprova a “neutralidade religiosa do Estado”, porque a única situação normal é
a de união e colaboração entre os dois poderes.
Ruptura entre Vaticano II e Tradição apostólica
• Por tudo se evidencia como a doutrina da “Liberdade
religiosa” em foro externo e em público para todas as correntes de pensamento
filosófico e teológico promulgada pelo Concílio Vaticano II (Dignatis Humanae,
7 de dezembro de 1965) está em oposição e contradição com a Tradição apostólica
e o Magistério constante da Igreja. L’Avvenire, o diário da “Conferência
Episcopal Italiana”, em 8 de junho de 2011, na página 27, publicou um editorial
de Flávio Felice intitulado Liberalismo norte-americano filho do Cristianismo,
no qual se lê: “A imprescindibilidade da pessoa humana foi elaborada por um
pensador profundamente cristão, John Locke. […] Segundo a tradição do
liberalismo de inspiração cristã: Rosmini, Sturzo e outros, recordados
recentemente por Bento XVI na carta enviada a Giorgio Napoli em 17 de março
passado, o liberalismo é tal enquanto elege a pessoa como o fim da vida
associada”. É o culto do Homem, que toma o lugar de Deus, ou da coincidentia
oppositorum entre o antropocentrismo e o teocentrismo. Gaudium et Spes n. 24
especifica: “O homem, única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por
si mesma (propter se ipsam)”. Durante “a homilia da 9a. Sessão do Concílio
Vaticano II”, em 7 de dezembro de 1965, o Papa Montini veio a proclamar: “A
religião, que é o culto de Deus que quis ser homem e a religião — porque o é —
que é o culto do homem que se quer Deus encontraram-se. Que aconteceu? Combate,
luta, anátema? Tudo isso poderia ter-se dado, mas de fato não se deu. A antiga
história do bom samaritano foi o exemplo e a norma segundo os quais se orientou
o nosso Concílio. Com efeito, um imenso amor para com os homens penetrou
totalmente o Concílio. A descoberta e a consideração renovada das necessidades
humanas […] absorveram toda a atenção deste Concílio. Vós, humanistas do nosso
tempo, que negais as verdades transcendentes, dai ao Concílio ao menos este
louvor e reconhecei este nosso humanismo novo: também nós — e nós mais que ninguém — temos o culto do
homem” [6]. Karol Wojtyla em 1976 quando ainda Cardeal, pregando um retiro
espiritual a Paulo VI e aos seus colaboradores, publicou em italiano com o
título de Sinal de contradição. Meditações, (Milão, Gribaudi, 1977), inicia a
meditação “Cristo revela plenamente o homem ao homem” (cap. XII, pp. 114-122)
com Gaudium et Spes n. 22 e assevera: “A reunião conciliar, aplicando à sua
volta a categoria do mistério ao homem, explica o caráter antropológico ou até
antropocêntrico da Revelação oferecida aos homens em Cristo. Esta Revelação se
concentra sobre o homem […]. O Filho de Deus, através da sua Encarnação, se
uniu a todos os homens, e tornou-se – como homem – um de nós. […] Aqui estão os
pontos centrais a que se poderia reduzir o ensinamento conciliar sobre o homem
e sobre seu mistério” (pp. 115-116). O Papa João Paulo II afirma na sua segunda
encíclica (de 1980), “Dives in misericordia”, n. 1: “Enquanto as várias
correntes do pensamento humano no passado e no presente eram e continuam a ser
propensas a dividir e a até contrapor o teocentrismo e o antropocentrismo, a
Igreja [conciliar, N. Do T.] […] busca conectá-los […] de forma orgânica e
profunda. E este é um dos pontos fundamentais, e talvez o mais importante, do
magistério do último Concílio”.
________________________________________
[1] Pio XII, Radiomensangem ao mundo inteiro, 24 de
dezembro de 1944. Segundo Aristóteles (De anima), a vida consiste no “movimento
intrínseco”: alimentar-se, crescer individualmente e reproduzir-se ou continuar
a espécie. Na verdade, quem não se alimenta não cresce, mas degenera e morre e
não pode perpetuar a espécie. O movimento é intrínseco (“movere seipsum”) ao
sujeito vivente: a planta, o animal e o homem se alimentam, crescem e se
reproduzem. Os três vivem, têm um princípio de vida que é uma alma, que é
vegetal para as plantas: elas alimentam-se, crescem, reproduzem-se
assexuadamente, e não têm nenhum tipo de conhecimento ou apetite sensível ou
instintivo; falta a elas a razão e a vontade racional e livre, que possui só o
homem, que tem uma alma racional, espiritual e pois incorruptível, porque não
está sujeita a divisão. Hoje está na moda – mas a teoria remonta ao século
XVIII e foi lançada por filósofos sensistas ingleses – dizer que o animal é
“inteligente” ou que o homem tem o mesmo grau de consciência e apetite ou
desejo do animal bruto. Isto é desmentindo pela experiência. Por exemplo: uma
abelha, que também é muito hábil instintivamente, se bate a cabeça contra um
vidro de uma janela meio aberta, passa a repetir todos os dias o mesmo erro e
não é capaz de deslocar-se neum um centímentro para sair da meia parte da
janela não aberta. Outro exemplo, a que assisti pessoalmente. Um cão muito
alegre e alerta – de nome “Nero” – permanece dentro de um quarto, latindo
instintivamente para fazer a porta se abrir, mas a porta tem, além da maçaneta,
uma haste que penetra verticalmente o piso. Mas o cão, para tentar sair, em vez
de deixar o parafuso levantado, o abaixa com as patas e torna impossível a mim
abrir a porta do lado de fora. Tenho de chamar um chaveiro, que, não tendo
estudado “filosofia moderna” na universidade, tem o bom senso de exclamar: “Que
estúpido este cão! Mesmo a criança mais sonolenta teria compreendido que
precisava levantar a haste”. Por quê? Porque o cão, muito alerta quanto ao
instinto e à sensibilidade, não tem inteligência racional.
[2] Radiomessangem ao mundo inteiro, 24 de dezembro
1944.
[3] Radiomessangem ao mundo inteiro, 24 de dezembro de
1944.
[4] Cf. C. Fabro, La svolta antropologica di Karl
Rahner, Milano, Rusconi, 1974.
[5] Cfr. Pio XII, Discorso al V Congresso nazionale
dell’Unione Giuristi Cattolici Italiani “Ci riesce”, 6 de dezembro de 1953.
[6] Enchiridion Vaticanum. Documento del Concilio
Vaticano II. Testo ufficiale e traduzione italiana,Bologna, Edizioni Dehoniane
Bologna, 9a. ed., 1971, Discorsi e messaggi, pp. 282-283.
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