"Mas, por infelicidade, muitos no Oriente, através dos séculos, separaram-se da unidade do corpo místico de Cristo, cuja fúlgida imagem é precisamente a união hipostática. Não é acaso justo, salutar, e conforme a vontade de Deus, que todos finalmente voltem ao único redil de Jesus Cristo?"
CARTA ENCÍCLICA
SEMPITERNUS REX CHRISTUS
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS
IRMÃOS
PATRIARCAS,
PRIMAZES,
ARCEBISPOS, BISPOS
E DEMAIS
ORDINÁRIOS LOCAIS
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ
APOSTÓLICA
SOBRE O XV
CENTENÁRIO DO
CONCÍLIO ECUMÊNICO
DE CALCEDÔNIA
INTRODUÇÃO
1. Cristo, Rei sempiterno, antes de prometer a Pedro,
filho de João, o governo da Igreja, perguntou aos discípulos que opinião tinham
de sua pessoa os homens e os próprios apóstolos. A seguir, em palavras de
singular louvor, exaltou a fé com que Pedro, por inspiração do Pai celeste,
proclamara: "Tu és Cristo, Filho de Deus vivo" (Mt 16, 16) – fé que
haveria de vencer todas as perseguições e todas as tempestades do inferno. Essa
fé, que prepara as coroas dos apóstolos, as palmas dos mártires e os lírios das
virgens, e que é virtude de Deus para salvação de todos os que crêem (cf. Rm 1,
16), foi vigorosamente defendida e esplendidamente exposta, principalmente em
três concílios ecumênicos: o de Nicéia, o de Éfeso e o de Calcedônia. Da
celebração deste último cumprem-se este ano 15 séculos. Convém, pois, que em
Roma e em todo o orbe católico se comemore solenemente este 15° centenário,
como – ao elevarmos a Deus, inspirador de salutares conselhos, as devidas ações
de graças – ordenamos que se faça.
2. E como nosso predecessor, de feliz recordação, Pio
XI quis que se comemorasse solenemente em Roma, no ano de 1925, o concílio de
Nicéia e no ano de 1931 rememorou na encíclica Lux veritatis a celebração do
concílio de Éfeso, também nós pela presente encíclica desejamos recordar, com
igual empenho, o concílio de Calcedônia. Os dois concílios de Éfeso e
Calcedônia, como tratam ambos da união hipostática do Verbo encarnado, têm
entre si íntima e profunda ligação, e desde a antigüidade foram tidos sempre em
suma veneração tanto no Oriente, que os recorda na própria liturgia, como no
Ocidente, segundo o testemunho de s. Gregório Magno. Este santo exalta-os a
ambos e coloca-os no mesmo plano que os de Nicéia e Constantinopla, celebrados
no século anterior, proferindo esta memorável sentença: "Neles como em
pedra quadrangular se assenta o edifício da fé, e quem não se radicar na sua
solidez, seja qual for a vida e feitos que tiver, poderá talvez aparentar a
firmeza da pedra, mas estará fora do edifício".(1)
3. Considerando atentamente o grande concílio de
Calcedônia, em si mesmo e nas suas circunstâncias, descobrem-se dois pontos
principais que queremos fazer ressaltar quanto possível: o primado do romano
pontífice, que brilhou manifestamente na agitada controvérsia cristológica, e o
grandíssimo alcance da definição dogmática de Calcedônia. Aqueles que pela
iniqüidade dos tempos, principalmente nas regiões do Oriente, estão separados
do seio e da unidade da Igreja, não hesitem por mais tempo em reconhecer
reverentes a supremacia do romano pontífice – seguirão nisso o exemplo e os
ensinamentos dos seus grandes antepassados. Procurem os que ainda seguem os
erros dos nestorianos ou dos eutiquianos perscrutar com vistas mais desanuviadas
o mistério de Jesus Cristo e recebam na sua integridade a definição do concílio
de Calcedônia. Essa mesma definição, estudem-na com mais verdade e penetração
maior os que, levados por exagerada preocupação de modernidade, ousam, ao
investigar o mistério da Redenção, atentar em certo modo contra a estabilidade
de balizas legítima e definitivamente assentes. Finalmente, todos aqueles que
se gloriam do nome de católicos tomem daqui novo e forte incitamento para, de
palavra e de coração, professarem, defendendo-a de qualquer mácula, a
verdadeira fé – pérola preciosíssima da qual fala o evangelho. E acrescentem
ainda – o que mais importa – o testemunho da própria vida, da qual, por
misericórdia de Deus, afastem tudo o que seja pecaminoso, indigno ou reprovável,
e na qual façam brilhar o fulgor de todas as virtudes. Serão assim
verdadeiramente consortes da divindade daquele que se dignou fazer-se partícipe
da nossa humanidade.
I. PRIMEIRAS
VICISSITUDES DA HERESIA DE ÊUTIQUES
4. Para proceder com ordem, tomemos do princípio a
exposição dos acontecimentos que se comemoram. O iniciador da controvérsia
agitada no concílio de Calcedônia foi Êutiques, sacerdote e arquimandrita de um
dos mais insignes mosteiros de Constantinopla. Querendo impugnar vigorosamente
a heresia de Nestório, que afirmava haver duas pessoas em Cristo, caiu no erro
oposto.
5. "Muito imprudente e assaz pouco
instruído", (2) temperamento sobremaneira obstinado, afirmava Êutiques que
se deviam distinguir dois momentos: antes da encarnação eram duas as naturezas
de Cristo: a humana e a divina; mas depois da "união" existe uma só,
sendo o homem absorvido pelo Verbo. De Maria virgem nasceu o corpo do Senhor, o
qual não é da mesma substância e matéria que o nosso; apesar de ser humano, não
é consubstancial a nós nem àquela que o deu à luz segundo a carne;(3) por
conseguinte, não foi numa verdadeira natureza humana que Jesus Cristo nasceu,
padeceu, foi crucificado e ressurgiu do sepulcro.
6. Não advertiu Êutiques que antes da união de modo algum
existiu a natureza humana de Cristo, pois esta começou a existir no instante da
sua concepção; depois da união, é absurdo sustentar que das duas naturezas se
fez apenas uma, pois de modo nenhum duas naturezas verdadeiras e concretas se
podem reduzir a uma só, tanto mais que a natureza divina é infinita e imutável.
7. Quem examinar, segundo as normas da sã razão, tais
opiniões verá logo que todo o mistério da economia divina se dissolve assim em
sombras vãs e inconsistentes.
8. Aos homens doutos de então, tal doutrina pareceu
manifestamente inovadora, absurda, de todo em todo contrária aos oráculos dos
profetas, aos textos do evangelho, ao símbolo dos apóstolos e ao dogma de fé
definido em Nicéia, doutrina, enfim, buscada nos subterrâneos de Valentino e
Apolinário.
9. Acusado de heresia por Eusébio, bispo de Doriléia,
Êutiques, que já andava com pertinácia disseminando os seus erros por vários
mosteiros, foi condenado no sínodo particular reunido em Constantinopla, sob a
presidência de são Flaviano, Bispo dessa cidade. Ele, porém, proclamando
injusta a condenação de quem só fazia reprimir a renascente heresia de
Nestório, apelou para a sentença de alguns bispos de reconhecida autoridade.
Tais cartas de apelação chegaram também ao bispo da Sé Apostólica, são Leão Magno,
esse santo cujas refulgentes e sólidas virtudes, cujo vigilante empenho em
promover a religião e a concórdia, cuja fortaleza em defender a verdade e a
dignidade da cátedra romana e cuja destreza no governo igual à sua eloqüência
harmoniosíssima vêm sendo pelo decurso dos séculos objeto de perene admiração.
Ninguém mais bem indicado e mais capaz do que ele para debelar o erro de
Êutiques, pois nas suas alocuções e nas suas cartas não cessava de celebrar com
pia magnificência e com piedade magnífica, o arcano e inefável mistério de uma
pessoa e duas naturezas em Cristo. "A Igreja católica vive e prospera pela
sua fé nesta verdade: que em Jesus Cristo não se deve crer a humanidade sem
verdadeira divindade, nem a divindade sem verdadeira humanidade".(4)
O "latrocínio"
de Éfeso
10. Mas o arquimandrita Êutiques, pouco esperançoso de
obter a proteção do romano pontífice e entrando pelo caminho das artimanhas e
enganos, por meio de Crisáfio, íntimo seu e amicíssimo de Teodósio II,
conseguiu obter do imperador que sua causa fosse de novo examinada e se
reunisse outro concílio em Éfeso, sob a presidência de Dióscoro, bispo de
Alexandria. Este, que era amicíssimo de Êutiques e acérrimo inimigo de
Flaviano, bispo de Constantinopla, repetia a miúdo – iludido pela aparente
semelhança das doutrinas – que assim como Cirilo, seu predecessor, havia
defendido a doutrina de uma só pessoa em Cristo, assim lhe cabia agora defender
com todas as forças uma só natureza em Cristo, depois da "união". S.
Leão Magno, com intuitos de paz, não recusou enviar a Éfeso os seus legados,
que levaram, entre outras, duas cartas, uma ao sínodo, outra a Flaviano, nas
quais os erros de Êutiques eram refutados com a clareza de uma doutrina exata e
copiosa
11. Neste Sínodo Efesino – que s. Leão com justiça
chamou "latrocínio" – tudo foi transtornado pela violência, sob as
ordens de Dióscoro e Êutiques. Foi negada a presidência aos legados
pontifícios, proibida a leitura das cartas do sumo pontífice, extorquidos com
fraudes e ameaças os sufrágios dos bispos. Flaviano, entre outros, foi acusado
de heresia, deposto da sua sede e jogado numa prisão, onde terminou os seus
dias. A temeridade do insano Dióscoro chegou mais tarde ao ponto de – com
inqualificável ousadia – lançar o dardo da excomunhão contra a suprema
autoridade apostólica. Logo que s. Leão foi informado pelo diácono Hilário dos
atropelos cometidos no criminoso conciliábulo, reprovou tudo o que ali se havia
feito e decretado, e impôs a sua retratação. A dor imensa que o consternava só
ia aumentando à medida que ia recebendo os apelos dos muitos bispos
injustamente depostos.
Recurso de
Flaviano e de outros bispos à Sé Apostólica
12. Merece ser referido o que ao pastor supremo da
Igreja escreveram então Flaviano e Teodoreto de Ciro. São de Flaviano estas
palavras: "Como tudo se voltasse contra mim com premeditação, depois que
(Dióscoro) proferiu contra mim aquela injusta sentença, de acordo com os seus
desejos e apesar de eu ter apelado para a Sé Apostólica de Pedro, príncipe dos
apóstolos, e para todo o sínodo, sujeito à vossa santidade, logo me rodeou
multidão de soldados e impedindo-me que me refugiasse junto do altar como
tentava, procuraram arrastar-me para fora da Igreja". (5) De Teodoreto são
estas outras: "Se Paulo, pregoeiro, da verdade... recorreu ao grande
Pedro... muito mais nós, humildes e pequeninos... recorremos à vossa Sé
Apostólica, afim de recebermos de vós um remédio para as feridas da Igreja. A
vós compete em todas as questões ter a suprema autoridade... Eu espero a
sentença da vossa Sé Apostólica... Antes de mais nada peço que me digais se me
devo conformar ou não com esta deposição injusta: espero a vossa
decisão".(6)
Intervenção do
papa s. Leão Magno
13. Desejoso de pôr fim a tantas indignidades, instou
são Leão com Teodósio e Pulquéria, por meio de freqüentes cartas, para que
remediassem tão triste situação, convocando em território da Itália novo
concílio que reparasse as injustiças cometidas em Éfeso. Quando, rodeado de uma
coroa de bispos, recebeu na Basílica Vaticana ao imperador Valentiniano III
acompanhado da rainha mãe Galla Placídia e da esposa Eudóxia, esconjurou-os com
lamentos e lágrimas a que fizessem quanto lhes fosse possível para obter pronto
socorro às calamidades da Igreja. Escreveu um imperador ao outro, escreveram as
rainhas. Tudo em vão. Teodósio, tolhido pela astúcia e pelo engano, nada moveu
para reparar o mal feito. Morrendo, porém, ele improvisamente, passou a reinar
sua irmã Pulquéria, que desposou Marciano e o associou ao império. Ambos se
tornaram ilustres pela piedade e sabedoria no governo. Anatólio, ilegitimamente
posto por Dióscoro em lugar de Flaviano, subscreveu a carta de s. Leão a
Flaviano sobre a encarnação; os restos mortais de Flaviano foram trasladados
processionalmente a Constantinopla; restituídos às suas sedes os bispos
depostos. Começou a predominar o aborrecimento da heresia eutiquiana, a tal
ponto que já não parecia necessário convocar um concílio, tanto mais que,
devido às invasões dos bárbaros, era insegura a situação do Império romano.
14. Apesar de tudo, celebrou-se o concílio, por desejo
do imperador e com anuência do sumo pontífice.
O concílio de
Calcedônia: o primado da Sé Apostólica 15. Calcedônia era uma cidade da Bitínia,
junto ao Bósforo na Trácia, em face de Constantinopla, situada na margem
oposta. Aqui, na grandiosa basílica de s. Eufêmia, virgem e mártir, no dia oito
de outubro, partindo de Nicéia, onde para este fim se tinham congregado,
reuniram-se os padres, todos das partes do oriente, exceto dois africanos,
prófugos da própria pátria.
16. Colocado no centro o códice dos evangelhos, diante
das grades do santo altar postaram-se dezenove representantes do imperador e do
senado. O ofício da legação pontifícia era exercido pelos piedosíssimos varões,
Pascasino, bispo de Lilibeo na Sicília, Lucêncio, bispo de Áscoli, Bonifácio e
Basílio, presbíteros, aos quais se uniu Juliano, bispo de Cós, para ajudá-los
com o seu diligente trabalho. Os legados do romano pontífice tomaram o primeiro
lugar entre os bispos. São os primeiros a serem chamados, tomam primeiro a
palavra, e são também os primeiros a assinarem as atas. Em força da autoridade
que lhes é delegada, confirmam ou excluem os sufrágios dos outros, como aparece
claramente na condenação de Dióscoro, que eles confirmaram com as seguintes
palavras: "O santíssimo, beatíssimo arcebispo da grande e antiga Roma,
Leão, por nosso intermédio e do presente santo sínodo, juntamente com o
beatíssimo e digno de todo louvor bem-aventurado Pedro apóstolo, que é pedra e
base da santa Igreja católica e o fundamento da verdadeira fé, espoliou-o
(Dióscoro) da dignidade episcopal e afastou-o de todo ministério
sacerdotal".(7)
17. De resto, consta claramente da epístola sinodal
enviada a Leão, que os legados pontifícios não só exerceram a autoridade
presidencial, mas que este direito e honra lhes foi reconhecido por todos os
Padres sem exceção. Com efeito escreveram eles: "Tu presidias como a
cabeça aos membros, mostrando tua benevolência naqueles que ocupavam o teu
posto".(8)
18. Não é nossa intenção percorrer aqui todos os
pontos do concílio, mas apenas relevar brevemente aqueles que servem melhor
para pôr em claro a inteira verdade e fomentar a religião. Assim, uma vez que
se trata da questão da dignidade da Sé Apostólica, não podemos passar em
silêncio o cânon 28 do concílio, no qual à sé de Constantinopla, como cidade
imperial, se atribuía o segundo lugar de honra, logo após a sede romana. Embora
não haja nada nele contra o divino primado de jurisdição, que era coisa clara
para todos, entretanto esse cânon, exarado na ausência e contra a vontade dos
legados do romano pontífice, portanto clandestino e sub-reptício, é destituído
de todo valor jurídico e foi reprovado e condenado por são Leão em várias
cartas. Marciano e Pulquéria concordaram com essa sentença anulatória, e até o
próprio Anatólio o fez, escusando sua infeliz ousadia com os seguintes termos
de uma carta a s. Leão: "Saiba vossa beatitude que eu não tenho nenhuma
culpa no que foi decretado ultimamente no sínodo ecumênico de Calcedônia, em
favor da sé de Constantinopla... mas foi o reverendíssimo clero da Igreja de
Constantinopla que se empenhou nisso...; embora toda a força e confirmação
desse ato seja reservada a vossa beatitude".(9)
II. "PEDRO
FALOU PELA BOCA DE LEÃO"
19. Mas venhamos já ao âmago de toda a questão, isto
é, a solene definição de fé em que foi repudiado e condenado o pernicioso erro
de Eutiques. Na sessão quarta do mesmo sagrado concílio, pediram os
representantes imperiais que fosse redigido novo símbolo de fé, mas Pascasino,
legado pontifício, interpretando o parecer comum, respondeu que tal não era
necessário, bastando os símbolos de fé e cânones já recebidos pela Igreja,
tendo preeminência entre estes, na questão presente, a carta de Leão a
Flaviano: "Em terceiro lugar (isto é, depois dos Símbolos Niceno e
Constantinopolitano com as respectivas declarações feitas por s. Cirilo no
concílio de Éfeso) os escritos do beatíssimo e apostólico Leão, Papa da
universal Igreja, em condenação das heresias de Nestório e Êutiques, mostraram
qual seja o conteúdo da verdadeira fé. E da mesma maneira o santo sínodo abraça
esta fé e a segue".(10)
20. É útil recordar aqui que esta importantíssima
carta de s. Leão a Flaviano sobre a encarnação do Verbo foi lida na terceira
sessão do concílio: e apenas se calou a voz do leitor, todos clamaram numa só
alma e num brado só: "Esta é a fé dos padres, a fé dos apóstolos. Todos
assim cremos, os ortodoxos assim crêem. Quem assim não crê seja anátema. Pedro
falou pela boca de Leão".(11)
21. Depois disso todos, unanimemente, confessaram que
o documento do pontífice romano concordava plena e perfeitamente com os
Símbolos Niceno e Constantinopolitano. Entretanto, na quinta sessão do
concílio, dados os insistentes pedidos dos representantes de Marciano e do
senado, foi exarada nova profissão de fé por um conselho escolhido de bispos de
diversas regiões, que se tinham reunido no oratório da Basílica de s. Eufêmia.
Consta de um prólogo, do Símbolo Niceno e do Constantinopolitano, que foi então
pela primeira vez promulgado, e da solene condenação da doutrina de Êutiques.
Esta regra de fé foi unanimemente aprovada pelos padres conciliares.
22. Julgamos proveitoso, veneráveis irmãos,
demorar-nos um pouco na explicação do documento do romano pontífice,
preclaríssimo assertor da fé católica. Primeiramente, contra a seguinte
afirmação de Êutiques: "Confesso que antes da união nosso Senhor possuía
duas naturezas; mas depois da união confesso uma só natureza", (12) não
sem indignação o santíssimo antístite opõe o facho esplendoroso da verdade:
"Admiro-me de que esta sua tão absurda e perversa profissão não fosse
reprovada por nenhuma condenação dos juízes...; pois é tão ímpio dizer que
antes da encarnação o unigênito Filho de Deus tinha duas naturezas, quanto
afirmar que depois que o Verbo se fez carne tem uma só natureza".(13) Nem
com menor força refuta a Nestório que resvala no erro contrário: "Por
causa desta unidade de pessoa, que se deve entender na dualidade de natureza,
se lê que o Filho do homem desceu do céu, quando o Filho de Deus assumiu a
carne da Virgem da qual nasceu. E também se diz que o Filho de Deus foi
crucificado e sepultado embora tenha sofrido não na divindade pela qual o
Unigênito é consempiterno e consubstancial ao Pai, mas na enfermidade da
natureza humana. E é assim que todos confessamos no Símbolo que o unigênito
Filho de Deus foi crucificado e sepultado".(14)
23. Além da distinção das duas naturezas em Cristo,
segue-se também claramente daqui a distinção das propriedades e operações desta
dupla natureza: "Salva portanto a propriedade de cada uma das duas
naturezas que se uniram numa só pessoa, a baixeza foi assumida pela majestade,
a fraqueza pela força, a mortalidade pela eternidade".(15) E ainda:
"Assim, sem diminuição, cada natureza possui a sua propriedade"(16)
24. Entretanto, a dupla cadeia das propriedades e
operações atribui-se a uma única pessoa do Verbo, porque "um só... e o
mesmo é... verdadeiramente Filho de Deus e verdadeiramente Filho do
Homem".(17) E por isso: "Cada uma das duas formas opera em comunhão
com a outra o que lhe é próprio, isto é, o Verbo opera o que é próprio do
Verbo, e a carne executa o que é próprio da carne".(18) Aparece aqui a
doutrina conhecida sob a denominação de "comunicação dos idiomas",
que com todo o direito s. Cirilo defendeu contra Nestório, apoiando-se neste
sólido princípio de que as duas naturezas de Cristo subsistem na única pessoa
do Verbo, gerado pelo Pai, quanto à divindade, antes de todos os séculos e
nascido de Maria, no tempo, quanto à humanidade.
A definição de
Calcedônia
25. Esta excelsa doutrina, haurida do Evangelho, sem
contradizer o que fora decretado no concílio de Éfeso, condena Êutiques sem
poupar a Nestório, e com ela concorda plenamente a definição dogmática do
concílio de Calcedônia, que igualmente ensina clara e firmemente duas distintas
naturezas em Cristo na unidade de pessoa com as seguintes palavras: "O
santo, grande e universal concílio... condena (aqueles) que fantasiam duas
naturezas do Senhor antes da união e imaginam uma única depois da união. Nós,
portanto, seguindo os santos Padres, ensinamos sem discrepância a confessar a
um só e mesmo Filho e Senhor nosso Jesus Cristo, o mesmo perfeito na divindade
e perfeito na humanidade, Deus verdadeiro e homem verdadeiro, composto de alma
racional e corpo, consubstancial ao Pai segundo a divindade, e consubstancial a
nós segundo a humanidade, em tudo semelhante a nós, exceto no pecado; gerado do
Pai segundo a divindade antes dos séculos, e, por nós e pela nossa salvação,
gerado de Maria virgem, Mãe de Deus, segundo a humanidade, nos últimos tempos;
o único e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito; que se deve reconhecer em
duas naturezas, sem confusão, sem mutação, sem divisão, sem separação; que a
diferença das naturezas de nenhuma maneira foi destruída pela união, mas ao
contrário foi salva a propriedade de cada uma das duas naturezas que concorrem
numa só pessoa e subsistência; e assim, não em duas pessoas partido ou dividido
mas o único e mesmo Filho e Unigênito Deus Verbo, Senhor Jesus
Cristo".(19)
Clareza e precisão
de termos
26. Se por acaso se pergunta por que as expressões do
concílio de Calcedônia se distinguem pela nitidez e eficácia em combater o
erro, julgamos que o motivo principal reside no uso de termos apropriadíssimos,
com a exclusão de toda ambigüidade. De fato, na definição de Calcedônia,
atribui-se a mesma significação às vozes de pessoa e hipóstase (prósopon e
hypóstasis). Ao contrário, ao termo de natureza (physis) dá-se um sentido
diverso, e nunca se usa com a significação dos dois primeiros.
27. Portanto falsamente opinavam outrora os
nestorianos e eutiquianos, e o repetem hoje alguns historiadores, que o
concílio de Calcedônia tenha corrigido o que fora definido no de Éfeso. Ao
contrário, ambos mutuamente se completam. E é mesmo nos posteriores segundo e
terceiro concílios ecumênicos de Constantinopla que a síntese da
fundamentalíssima doutrina cristológica aparece mais vigorosa e clara.
28. É de lamentar que alguns antigos adversários do
concílio de Calcedônia, chamados também monofisitas, partindo da errada
inteligência de algumas expressões dos antigos, tenham rejeitado uma fé tão
pura, sincera e íntegra. Embora se opusessem a Êutiques que falava absurdamente
de uma mistura das naturezas em Cristo, aferraram-se entretanto com pertinácia
à conhecida locução: "Uma natureza encarnada do Deus Verbo", que s.
Cirilo Alexandrino usou como se proviesse de s. Atanásio, entendendo-a porém no
reto sentido, pois que transportava a significação de natureza para pessoa. Os
Padres de Calcedônia eliminaram o que havia de incerto e vacilante naqueles
termos: de fato, equiparando a terminologia trinitária com a que se usa para
exprimir a encarnação do Verbo, identificaram natureza e essência (ousía), como
identificaram pessoa e hipóstase, e julgaram que os dois primeiros termos se
devem distinguir absolutamente dos dois segundos, enquanto os referidos
dissidentes equiparam natureza à pessoa, mas não à essência. Deve-se pois
dizer, com modo de falar comum e sem equívoco, que em Deus há uma natureza e
três pessoas, em Cristo uma pessoa e duas naturezas.
29. Pelo motivo acima aduzido é principalmente na
terminologia que ainda atualmente alguns dissidentes do Egito, Etiópia, Síria,
Armênia e outras partes, parecem afastar-se da maneira exata de exprimir a
doutrina do mistério da encarnação, como se pode presumir dos seus livros
litúrgicos e teológicos.
30. De resto, já no século XII, uma grande autoridade
do mundo armeno assim expunha candidamente o seu sentir nesta matéria:
"Dizemos haver em Cristo uma natureza, não como Êutiques estabelecendo
confusão de naturezas, nem como Apolinário que põe diminuição, mas como Cirilo
de Alexandria, que no livro dos "Escólios contra Nestório" diz:
"Uma é a natureza do Verbo Encarnado, conforme ensinaram os Padres... nós
também o dizemos seguindo a tradição dos santos, mas de modo nenhum
introduzindo, como ensinam os heterodoxos, ou confusão ou transformação ou
alteração alguma na união de Cristo. Afirmamos uma natureza, no sentido de
hipóstase, como em Cristo também vós dizeis; o que é exato, e nós o concedemos,
e que vale o mesmo que a nossa asserção: `Uma natureza...' Nem rejeitamos a
expressão 'duas naturezas', desde que não se entenda como divisão como quis
Nestório, antes para acentuar contra Êutiques e Apolinário a
não-confusão".(20)
31. Se o júbilo e a alegria tocam seu auge ao
realizar-se aquilo que canta o Salmo: "Oh! como é bom e agradável
habitarem os irmãos juntamente" (Sl 132, 1), se a glória de Deus aparece
com fulgor irmanada à máxima utilidade de todos, quando a plenitude da verdade
e da caridade une entre si as ovelhas do rebanho de Cristo, considerem todos
aqueles que acima enumerávamos com o coração cheio de afeto e de pesar, se é
permitido ou se convém, principalmente devido a inicial equívoco de palavras,
manterem-se ainda por mais tempo afastados da Igreja, única e santa, que foi
fundada sobre safiras (cf. Is 54, 11), isto é, sobre os apóstolos e profetas, e
têm por pedra angular a Jesus Cristo! (cf. Ef 2, 20)
Alguns desvios
modernos
32. Vai também diretamente contra a profissão de fé do
concílio de Calcedônia certa doutrina largamente difundida fora do âmbito da
Igreja católica e à qual deu ocasião aparente uma passagem da epístola de s.
Paulo aos Filipenses (Fl 2, 7) arbitrária e erradamente interpretada.
Referimo-nos à chamada doutrina "kenótica", segundo a qual se chega a
despojar a Cristo da divindade do Verbo; invenção nefanda, que, tão reprovável
como o docetismo, seu oposto, reduz a nome vão e inconsistente todo o mistério
da Encarnação e da Redenção. "O verdadeiro Deus nasceu, assim o proclama
solenemente s. Leão Magno, em íntegra e perfeita natureza de verdadeiro homem;
perfeito quanto ao que é seu, e perfeito quanto ao que é nosso".(21)
33. Embora nada impeça que a humanidade de Cristo seja
mais profundamente estudada também sob o aspecto psicológico, não falta quem
nessas investigações tão difíceis e sutis abandone as normas antigas mais do
que é justo, e construa novas teorias usando indevidamente, para as sustentar,
da autoridade do concílio de Calcedônia.
34. Tais autores descrevem a natureza humana de Cristo
de tal forma que parece conceber-se como um sujeito de per si, como se não
subsistisse na pessoa do Verbo. Ora, o concílio de Calcedônia, plenamente de
acordo com o de Éfeso, afirma com meridiana clareza que ambas as naturezas do
nosso Redentor estão unidas "em uma só pessoa e subsistência" e
proíbe pôr em Cristo dois indivíduos, de modo que se coloque junto ao Verbo um
como "homem assumido", dotado de inteira autonomia própria.
35. S. Leão não só inculca a mesma doutrina, mas
indica também a fonte de onde ela deriva: "Tudo o que foi escrito por nós,
diz ele, se prova ser tirado da doutrina dos apóstolos e do
evangelho".(22)
Doutrina
evangélica e apostólica
36. E em verdade, a Igreja desde os primeiros tempos,
seja nos documentos escritos, seja nos sermões e nas preces litúrgicas,
professou clara e categoricamente que o unigênito Filho de Deus, consubstancial
ao Pai, nosso Senhor Jesus Cristo, Verbo encarnado, nasceu nesta terra,
padeceu, foi pregado na cruz, e depois de ressuscitar do sepulcro, subiu aos
céus. Além disso a Sagrada Escritura atribui ao único Jesus Cristo, Filho de
Deus, predicados humanos, e ao mesmo Cristo, Filho do Homem, predicados
divinos.
37. O evangelista s. João declara: "O Verbo se
fez carne" (Jo 1, 14); s. Paulo escreve: "Como fosse em forma de Deus..,
humilhou-se a si mesmo feito obediente até a morte" (Fl 2, 6-8); ou:
"Quando chegou a plenitude dos tempos enviou Deus o seu Filho, feito da
mulher" (Gl 4, 4); e o mesmo divino Redentor pronuncia sem hesitação:
"Eu e o Pai somos uma coisa só" (Jo 10, 30); e de novo: "Saí do
Pai e vim ao mundo" (Jo 16, 28). A origem superna do nosso Redentor brilha
também nesta passagem do evangelho: "Desci do céu, não para fazer a minha
vontade, mas a vontade daquele que me enviou" (Jo 6, 38); e nesta outra:
"O que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os céus" (Ef 4, 10).
Essa linguagem, comenta-a assim luminosamente s. Tomás de Aquino: "O que
desceu é o mesmo que subiu. Aqui se designa a unidade de pessoa de Deus e do
homem. Desceu com efeito... o Filho de Deus assumindo a natureza humana, subiu
o Filho do homem segundo a natureza humana à sublimidade da vida imortal. E
assim é o mesmo o Filho de Deus que desceu e o Filho do homem que
subiu".(23)
38. Essa mesma doutrina fora já preclaramente exposta
pelo nosso predecessor Leão Magno nestes termos: "Porque... o que
principalmente nobilita os homens que haviam de ser justificados é o fato de o
Unigênito de Deus se ter dignado fazer-se também Filho do homem, de forma que o
mesmo Deus, homooúsios do Pai, isto é, da mesma natureza que o Pai, fosse
igualmente verdadeiro homem e consubstâncial, segundo a carne, com sua mãe.
Alegramo-nos de uma e outra coisa, pois não somos salvos senão por ambas
juntamente: em nada dividindo o visível do invisível, o corpóreo do incorpóreo,
o passível do impassível, o palpável do impalpável, a forma de servo da forma
de Deus. Porque apesar de uma dessas coisas permanecer desde a eternidade, a
outra começou no tempo. Uniram-se ambas e já não podem separar-se nem ter
fim".(24)
39. Portanto, só quando se crê com fé incontaminada e
santa que em Cristo há uma única pessoa, isto é, a do Verbo, na qual se unem as
duas naturezas, perfeitamente distintas entre si, a divina e a humana, com
propriedades e operações diversas, é que a magnificência e piedade da obra da
nossa redenção aparecem em tal forma que nunca será demais o que delas se
disser.
40. Oh! sublime misericórdia e justiça de Deus, que
veio em socorro dos pecadores e os transformou em filhos! Oh! como se abaixaram
os céus para que, desfazendo-se a escuridão do inverno, aparecessem as flores
sobre a nossa terra (cf. Ct 2, 11s.) e fôssemos transformados em homens novos,
nova criação, nova feitura, povo santo de filhos de Deus! O Verbo de Deus
verdadeiramente padeceu na sua carne, derramou na cruz o próprio sangue e
ofereceu ao eterno Padre, pelos nossos pecados, uma satisfação mais que
abundante. Brilha, portanto, esperança segura de salvação para aqueles que a
ele aderem com fé sincera e caridade ardente e, com os auxílios da sua graça,
produzem frutos de justiça.
III. APELO AO
REGRESSO
41. A recordação de tão insignes e gloriosos fastos da
Igreja faz que o nosso pensamento se volte espontaneamente e cheio de afeto
paterno para os orientais. O sacrossanto concílio ecumênico de Calcedônia é um
dos seus maiores títulos de glória, destinado a permanecer, sem dúvida, através
de todos os séculos. Nele, sob a presidência da Sé Apostólica, foi
vigilantemente defendida de um ímpio e ousado ataque, e maravilhosamente
exposta por uma aguerrida e numerosa corte de bispos orientais, a doutrina da
unidade de Cristo, em cuja única pessoa se juntam distintamente, sem se
confundirem, as duas naturezas, divina e humana. Mas, por infelicidade, muitos
no Oriente, através dos séculos, separaram-se da unidade do corpo místico de
Cristo, cuja fúlgida imagem é precisamente a união hipostática. Não é acaso
justo, salutar, e conforme a vontade de Deus, que todos finalmente voltem ao
único redil de Jesus Cristo?
42. Quanto a nós, queremos que fique bem patente que
os nossos propósitos são propósitos de paz e não de perturbação (cf. Jr 29,
11). De resto, à vista está termos demonstrado também com fatos esta nossa
disposição de ânimo. E se, por necessidade, disso nos gloriamos, gloriamo-nos
no Senhor, que é quem concede toda a boa vontade. Seguindo as pisadas dos nossos
antecessores, trabalhamos assiduamente para que o retorno à Igreja católica se
tornasse mais fácil aos orientais. Defendemos os seus legítimos ritos,
promovemos estudos sobre questões orientais, promulgamos leis a eles
favoráveis, acompanhamos com grande solicitude os trabalhos da Sagrada
Congregação para a Igreja oriental, concedemos ao patriarca dos armenos a
dignidade da púrpura romana.
43. E quando recentemente o furor da guerra trazia
consigo a carestia, a fome e as doenças, nós, sem fazer distinções entre esses
ou aqueles que nos chamam Pai, procuramos suster o aluvião de calamidades,
procuramos auxiliar as viúvas, os meninos, os velhos e os enfermos. Quem nos
dera ter podido ajudá-los na medida dos nossos desejos! Todos aqueles que pelas
circunstâncias de épocas difíceis se separaram desta Sé Apostólica, para a qual
presidir é servir, desta sé, erigida por Deus como rocha inconcussa da verdade,
não queiram já tardar mais em prestar-lhe a devida submissão e reverência, e
sigam os exemplos de Flaviano – esse novo João Crisóstomo em sofrer
valorosamente pela justiça –; os exemplos dos Padres do concílio de Calcedônia
– membros digníssimos do corpo místico de Cristo -, de Marciano – Príncipe
forte, clemente e sábio –, de Pulquéria – lírio alvíssimo de régia e intemerata
beleza. Dessa volta dos irmãos separados à unidade da Igreja prevemos que há de
jorrar uma fonte copiosa de bens para o orbe cristão.
44. Bem sabemos que um cúmulo de preconceitos
inveterados opõe tenaz estorvo a que a prece de Jesus feita ao eterno Pai, na
última ceia pelos discípulos do Evangelho: "Que todos sejam uma só
coisa" (Jo 17, 21), obtenha a almejada realização. Mas sabemos também que
é tão grande a força da oração – quando os que oram com fé inabalável e pureza
de consciência se unem em fileiras compactas – que pode mesmo arrastar
montanhas e lançá-las ao mar (cf. Mc 11, 23). Queremos, pais, e muito desejamos
que todos aqueles que têm a peito a volta ao abraço da unidade cristã – e
ninguém que seja de Cristo tenha em pouca conta assunto de tanta importância
elevem preces e súplicas a Deus, autor da ordem, da unidade e da beleza, a fim
de que os louváveis desejos de todos os bons sejam quanto antes realidade.
Aplanam o caminho para alcançar esta meta as investigações históricas que hoje,
mais que nas épocas anteriores, são levadas a cabo com maior tranqüilidade e
menos paixão.
União contra os
inimigos de Deus e de Cristo
45. Há outro motivo ainda a exigir imperiosamente que
os esquadrões de nome cristão se arregimentem quanto antes sob uma só bandeira
para combaterem assim coesos contra os rijos ataques do inimigo infernal. A
quem não aterroriza o ódio e a ferocidade, com a qual os inimigos de Deus, em
muitas regiões da terra, procuram destruir e ameaçam exterminar tudo o que é
divino e cristão? Ante às avançadas adversas, confederadas, não podem
permanecer por mais tempo separados e dispersos quantos, assinalados com o
sagrado caráter do batismo, têm por dever de ofício a obrigação de pelejar as
batalhas de Cristo.
Comunhão de
martírio e de sangue
46. Os grilhões, as agonias, as torturas, os gemidos e
o sangue daqueles que, conhecidos ou ignorados – e são multidão imensa –,
recentemente e ainda agora padeceram e padecem pela constância na virtude e
pela procissão da fé, a todos impelem, com voz cada dia mais retumbante, a que
tornem ao santo abraço da união com a Igreja.
47. A esperança de que hão de voltar os irmãos e
filhos há tanto tempo separados desta Sé Apostólica fez-se mais prometedora
pela áspera cruz dos martírios sanguinolentos de tantos outros irmãos e filhos.
Ninguém estorve ou despreze a salutar ação de Deus! Com paterna e premente
insistência convidamos e chamamos ao regozijo e aos benefícios desse retorno
também os nestorianos e monofisitas. Estejam persuadidos de que será para nós a
mais refulgente jóia da coroa do nosso apostolado o poder, ao recebê-los de
novo, cumulá-los de amor e de honra, a eles que nos são tanto mais caros,
quanto mais intenso é o desejo da sua volta, em nós suscitado pelo já tão longo
tempo da sua separação.
CONCLUSÃO
48. Desejamos, por fim, veneráveis irmãos, que ao
celebrar-se, por vossa diligente operosidade, a comemoração do concílio de
Calcedônia, se sintam todos impelidos a aderir, com firmíssima fé, a Cristo,
rei e redentor nosso. Ninguém, aliciado pelas falácias de humana filosofia ou
enganado pelos equívocos da linguagem humana, abale com as suas dúvidas ou
altere com desacertadas inovações o dogma definido em Calcedônia – que em
Cristo há duas naturezas, a divina e a humana, verdadeiras e perfeitas, unidas
juntamente, não confundidas, e subsistentes na única pessoa do Verbo. Ligados
com mais estreitos vínculos ao Autor da nossa salvação, que é "Caminho de
vida santa, Verdade da doutrina divina, e Vida de felicidade eterna",(25)
amem todos nele a própria natureza resgatada, a própria liberdade redimida, e
cheios de gozo, depondo a estultícia do mundo senil, entrem na posse da
sabedoria daquela instância espiritual, que não conhece envelhecimento.
49. Esses nossos ardentíssimos votos e desejos,
acolha-os Deus uno e trino, cuja natureza é bondade e cuja vontade é poder,
pela intercessão da virgem Maria, Mãe de Deus, dos santos apostólos Pedro e
Paulo e de s. Eufêmia, virgem calcedonense e gloriosa mártir. E vós, veneráveis
irmãos, uni as vossas preces às nossas e fazei que chegue ao conhecimento do
maior número possível quanto vos escrevemos. Agradecendo-vos de antemão,
enviamos com ternura, a vós e a todos os sacerdotes e fiéis entregues ao vosso
insigne zelo pastoral, a bênção apostólica, para que ajudados por ela tomeis
com maior vigor o jugo, nem pesado nem duro, de Cristo rei, e vos torneis
sempre mais semelhantes, pela humildade, àquele de cuja glória desejais
participar.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 8 de
setembro, festa da Natividade de Maria santíssima, no ano de 1951, XIII do
nosso pontificado.
PIO PP. XII
Notas
(1) Registrum Epistularum, I, 25 (al. 24): PL 77, 478;
ed. Ewald, I, 36.
(2) S. Leão M., Ep. 28 ad Flavianum, l: PL 54, 755s.
(3) Cf. Flaviano, Ep. 26 ad Leonem M.: PL 54, 745.
(4) S. Leão M., Ep. 28, 5: PL 54, 777.
(5) Schwartz, Acta Conciliorum Oecumenicorum, II, vol.
II, parte I, p. 78.
(6) Teodoreto, Ep. 52 ad Leonem M.,1.5.6: PL 54, 847 e
851; cf. PG 83,1311s. e 1315s.
(7) Mansi, Conciliorum amplissima collectio, VI, 1047
(Act. III); Schwartz, II, vol. I, pars altera, p. 29 (225] (Act. II).
(8) Concílio de Calcedônia, Ep. 98 ad Leonem M., 1: PL
54, 951; Mansi, VI, 147.
(9) Anatólio, Ep.132 ad Leonem M., 4: PL 54,1084;
Mansi, VI, 278s.
(10) Mansi, VII,10.
(11) Schwartz, II, vol. I, para altera, p. 81 [277]
(Act. III); Mansi, VI, 971 (Act. II).
(12) S. Leão M., Ep. 28, 6: PL 54, 777.
(13) Ibid.
(14) S. Leão M., Ep. 28, 5: PL 54, 771; cf. s.
Agostinho, Contra sermonem Arianorum, c. 8: PL 42, 688.
(15) S. Leão M., Ep. 28, 3: PL 54, 763. Cf. s. Leão
M., Serm. 21, 2: PL 54,192.
(16) S. Leão M., Ep. 28, 3: PL 54, 765; cf. Serm. 23,
2: PL 54, 201.
(17) S. Leão M., Ep. 28, 4: PL 54, 767.
(18) Ibid.
(19) Mansi, VIII,114 e 115.
(20) Assim, Nerses IV (†1173) in Libello confessionis
fidei, ad Alexium supremum exercitas byzantini Ducem (I. Cappelletti, s.
Narsetis Claiensis, Armenorum Catholici, opera, I, Venetiis,1833, pp.182-183.
(21) S. Leão M., Ep. 28, 3: PL 54, 763. Cf. Serm. 23,
2: PL 54, 201.
(22) S. Leão M., Ep.152: PL 54,1123.
(23) S. Tomás, Comm. in Ep. ad Ephesios, c. IV, lect.
III, circa finem.
(24) S. Leão M., Serm. 30, 6: PL 54, 233s.
(25) S. Leão M., Serm. 72, 1: PL 54, 390.
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