“A perspectiva equivoca na qual se quer 'purificar' os valores do mundo para os aproximar do Cristo: “O Concilio se
propõe antes de tudo julgar[...] os valores mais estimados por nossos
contemporâneos e aproxima-los da sua fonte divina””
Sinopse dos erros
imputados ao Concílio Vaticano II - 12 Erros na interpretação do significado do
mundo contemporâneo.
O Concilio atribui à humanidade da sua
época uma interrogação angustiada sobre si mesma e sobre os problemas maiores:
“Em nossos dias, tomado de admiração diante de suas próprias descobertas e seu
próprio saber, o gênero humano se interroga, no entanto, muitas vezes com
angustia, sobre a evolução presente do mundo, sobre o lugar e o papel do homem
no universo, sobre o sentido de seus esforços individuais e coletivos, enfim
sobre o destino ultimo das coisas e da humanidade” (Gaudium et Spes 3).Estas
noções são retomadas, por exemplo, em GS 10:...cresce o número
daqueles que, em face da atual evolução do mundo, fazem perguntas das mais
fundamentais ou as percebem com uma nova acuidade. O que é o homem? O que
significa o sofrimento, o mal, a morte que subsistem apesar de tanto progresso,
etc?...”.
Na realidade, a grande questão “o que é
o homem?”, esta profunda questão metafísica, praticamente ninguém a formulava
nessa época. O comunismo e seus aliados de esquerda (com todas as nuances)
atacavam então em todas as frentes: a União Soviética, a China de Mao, Cuba
eram os modelos; o marxismo assolava as universidades, as escolas, toda a
cultura, inoculando, com o hedonismo celebrado pelas subculturas emergentes (a
subcultura da “droga”, a subcultura “hippy”) e pela sociedade de consumo, o
espírito revolucionário que iria dar nascimento na América e na Europa aos
grandes movimentos estudantis de 1966-1968 e ainda mais, menos de três anos
depois do encerramento do Concilio, pelo exemplo dos “Guardas Vermelhos” chineses
(1966).Considerava-se o problema do homem resolvido à luz da utopia
revolucionaria. O homem devia ser considerado como o produto do ambiente, da
história: a reviravolta marxista da práxis devia pôr as coisas no lugar,
criando um homem novo, libertado de todos os defeitos, de todas as
contradições. Mesmo aqueles que procuravam definir o homem, em sua
individualidade, recorrendo às categorias vagas e imprecisas do existencialismo
e da psicanálise, terminavam sempre por encontrar no marxismo e, pois, na revolução
social, a solução para o problema do Homem. Eis o estado do “humanismo” então
dominante.
Os anos sessenta do século XX são hoje
em dia unanimemente reconhecidos como os anos durante os quais, depois dos anos
Cinqüenta ainda “beatos”(porém não isentos dos abalos desse hedonismo que já
tinha feito sua aparição maciça no primeiro após
guerra), começa enfim a emancipação da mulher, a “liberdade sexual”; houve um
impulso subversivo generalizado no domínio político, econômico e no domínio dos
costumes, impulso cujo ímpeto, é preciso ver, se prolonga até hoje .Esses foram
os anos do “movimento estudantil” e da “contestação” organizada e sistemática
do princípio de autoridade sob todas as suas formas.
A tempestade já trovejava quando
começou o Vaticano II e estava em nossas portas quando foi concluído. Mas o
Concilio não teve nenhuma intuição dela. O que diz GS dos
jovens? “A transformação da mentalidade e das estruturas conduziu muitas vezes
a uma rediscussão dos valores recebidos, particularmente entre os jovens:
freqüentemente, eles não suportam seu estado; bem mais, a inquietação faz deles
revoltados, enquanto que, conscientes de sua importância na vida social,
desejam tomar o mais cedo possível sua responsabilidade nela” (GS 7).
Pôde se constatar, menos de três anos depois, de que maneira a massa da
juventude procurou “tomar sua responsabilidade”.
Para proteger a juventude das seduções
do Século, o Concilio deveria ter começado condenando as falsas doutrinas
dominantes, do existencialismo à psicanálise, ao marxismo, etc... Ao invés disso,
pelo abandono da distinção entre Natureza e Graça, pela elaboração de uma
nova religião “social” e “humana”, necessariamente aberta aos valores do mundo,
incluindo os valores próprios do “humanismo” dos revolucionários, pela referência
ao “novo homem, artesão de uma nova humanidade”, que cresce graças à afirmação
dos “valores” do progresso, da liberdade, do Homem (GS30,39), pela
adoção de uma visão naturalista do Reino de Deus, o Concilio contribuiu para as
subversões revolucionarias que se manifestaram pouco tempo depois,
ridicularizando por isso mesmo o otimismo e o triunfalismo com os quais tinha
querido celebrar o Homem e o Mundo. Contribuiu para essas subversões demolindo
as trincheiras que constituem a doutrina eterna da Igreja e a pastoral sã,
aparecendo assim a muitos católicos e não católicos como um componente do
movimento revolucionário. A “contestação”, no sentido mais largo do termo,
devia assim implicar e subverter uma parte importante da Catolicidade, a
começar pela própria hierarquia da Igreja.
12. 1 A afirmação espantosa segundo a
qual o homem “descobre hoje, pouco a pouco, e com mais clareza, as leis da vida
social (leges vitae socialis), mas hesita sobre as orientações que lhes
é preciso imprimir” (GS 4).
Gostaríamos de saber de que leis se
tratam. A “vida social”, na última parte do século XX, evoluiu em um sentido
cada vez mais hedonista e anticristão, graças ao grande progresso da ciência,
da técnica e pois, do desenvolvimento de um bem estar material sem precedentes.
Devemos considerar que tudo isso se produziu em seguida à “descoberta”
progressiva das “leis da vida social”, até então pouco conhecidas? Pouco
conhecidas (devemos supor) igualmente pelo Magistério da Igreja no correr dos
séculos? Já que o Concilio louva o desenvolvimento, o progresso, as “conquistas
da humanidade” (Lumen Gentium 36; GS 5; 34; 39
etc...) e se inquieta somente com que elas concorram para a unidade do gênero
humano e se realizem no respeito aos “direitos humanos”(GS4), devemos
considerar que estejam aí os valores encarnados nas “leis” pouco a pouco
descobertas, valores e leis que constituiriam, eles mesmos, as “leis da vida
social”, valores ou leis concebidas, de qualquer modo, em oposição ao
Reino social do Cristo?
Nos anos sessenta do século XX, não
havia traço da “hesitação” invocada acima: o desenvolvimento da “vida social”
mostrava, no Ocidente, uma nítida tendência a se orientar para a sociedade de
consumo, em todos os seus aspectos; as massas – atrás dos slogans revolucionários
– faziam pressão para participarem também do banquete do bem estar, que se
adivinhava faustoso, sem precedentes. Para aqueles que se lembram bem daquela
época, a frase seguinte soa totalmente falsa: “Marcada por uma situação tão
complexa [...] uma inquietação se apodera [de muitos de nossos contemporâneos]
e eles se interrogam com uma mistura de esperança e de angustia sobre a
evolução atual do mundo” (GS 4).O único verdadeiro medo, a única
autentica angustia no Ocidente, no Oriente Médio e no Oriente, era provocada
pelo comunismo, por causa da impositiva potência militar da União Soviética e
da China e por causa de sua ação subversiva em escala mundial, que utilizava o
insidioso trabalho dos partidos comunistas que paralisavam certos países (por
exemplo, a Itália) pela chantagem permanente da guerra civil, guerra civil que
só era impedida – tal era o sentimento comum – pela presença militar da
O.T.A.N. e dos Estados Unidos.
12.2 A perspectiva equivoca na qual se
quer “purificar” os valores do mundo para os aproximar do Cristo: “O Concilio
se propõe antes de tudo julgar[...] os valores mais estimados por nossos
contemporâneos e aproxima-los da sua fonte divina. Porque esses valores, na
medida em que procedem do gênio humano, que é um dom de Deus, são muito bons (valde
boni sunt); mas não é raro que a corrupção do coração humano os desvie da
ordem necessária: por isto precisam ser purificados” (GS 11).
Trata-se de que valores? Adivinha-se.
Temos uma indicação no GS 39 que, como vimos (na seção 6),
quer nos fazer crer que os reencontraremos purificados no reino de Deus: a
“dignidade do homem, a comunhão fraterna, a liberdade”, que devem servir ao
“progresso universal com liberdade humana e cristã” (LG 36). Mas é
preciso notar o seguinte:
1) Não se pode afirmar que esses valores leigos
sejam “muito bons”. O ideal puramente leigo do progresso, que compreende a
noção de uma educação do gênero humano somente
racional e exalta a felicidade e o bem estar terrestres, é totalmente
anticristã e não pode se “muito boa”. Também não podem ser “muito boas” a
“dignidade do homem”, a “fraternidade universal”, a “liberdade”, já que se
trata da celebre tríade da Revolução Francesa: os “direitos do homem” sob o
signo do deísmo e do racionalismo da filosofia iluminista maçônica, que
inspirou as celebres Cartas dos Direitos, as dos “Princípios Imortais”.
2) A afirmação segundo a qual esses valores
são “bons” mas “desviados da ordem necessária” é o resultado de um equívoco
espalhado entre os católicos liberais e seus herdeiros modernistas e
neo-modernistas, sabendo-se que esses valores, como foi dito a propósito da
Revolução Francesa, “são a aplicação de ideias do Cristianismo que esperavam
sua aplicação e que não foram reconhecidas com tais no momento de sua
aplicação” (R Amerio Iota Unum). Na realidade, a fraternidade, a
igualdade e a liberdade leigas são uma distorção de seus
equivalentes cristãos, porque decorrem de uma visão do mundo fundada unicamente no
homem concebido como um ser isento da mancha do pecado original, no homem
com toda sua exaltação e orgulho. Por consequência, esses valores se
opõem ex sese aos valores cristãos equivalentes, valores que aqueles
negam e atacam de todas as maneiras (sem falar no ideal do progresso, que não
tem de cristão nem mesmo o nome). Com efeito:
a) A
liberdade do cristão é interior e vem da fé em Cristo (João 8,31-32),
e não tem nada a ver com a liberdade enquanto autodeterminação absoluta do
indivíduo para cada escolha, com a abstenção de qualquer lei, de qualquer
restrição (libertas a coatione), colocada como fundamento da democracia
contemporânea e dos “direitos do homem”. E é precisamente a esta
liberdade-valor leiga que o Concilio se refere continuamente.
b) A fraternidade entre
todos os homens, do ponto de vista cristão, é sentida como tal porque todos os
homens vêm de Deus Pai, Criador: pressupõe a fé na Santíssima Trindade e se
alimenta do amor do próximo, amado por amor de Deus, não pela suposta
“dignidade” do homem, quer dizer de cada um de nós, sabendo-se que somos
manchados pelo pecado original e somos todos pecadores (cf. seção 5).
A fraternidade cristã não tem nada em
comum com a fraternidade do tipo político, fundada na ideologia do igualitarismo,
que se espalhou no mundo a partir da Revolução americana e da Revolução
francesa, e que também se encontra na base da democracia contemporânea. O que
permite igualmente julgar o valor eminentemente político que representa a igualdade
leiga, que, para os cristãos, ao contrário, sempre foi a igualdade de
todos nós, pecadores, diante de Deus e de cristãos diante das promessas de
Nosso Senhor, graças às quais todos nós fomos feitos “co-herdeiros”, em potência,
do Reino (Efesios 3,6).
A igualdade, a fraternidade, a
liberdade, no sentido cristão, são valores antes de tudo religiosos, fundados
na Verdade revelada. Os mesmos valores, tais como são compreendidos pelo mundo,
são, sobretudo políticos, frutos do deísmo e do racionalismo do século das
Luzes, de uma visão do mundo voluntariamente hostil ao Cristianismo. A vontade
do Concilio de “purificar” esses valores se apresenta, portanto, inteiramente
sem sentido. Como purifica-los? Para estar em harmonia com o ensino
de sempre, o Concilio deveria tê-los condenado, opondo-lhes a
autentica concepção cristã. Não houve, na realidade, nenhuma “purificação”:
houve somente, como vimos, o abastardamento da doutrina da Igreja por
sua adaptação a esses valores do mundo: e isto se produziu graças à adoção de
uma falsa noção do homem, de sua “dignidade”, de sua “vocação”, tirada de uma
noção doutrinariamente errada da Encarnação e da Redenção (cf. sessão 5).
Uma noção do homem que em vez de ser “purificada” de sua origem leiga, introduz
o “humanismo” do pensamento revolucionário na doutrina da Igreja.
12. 3 A apreciação injustificada dos
“direitos do homem” e dos combates em seu favor, que na época do Concilio já
eram travados: “ O homem moderno caminha para um desenvolvimento mais completo
de sua personalidade, para uma descoberta e uma afirmação sempre crescente de
seus direitos [...].Por isto a Igreja, em virtude do Evangelho que lhe foi
confiado, proclama os direitos dos homens (iura hominum), reconhece e tem em
grande estima o dinamismo de nosso tempo que em toda parte, dá um novo impulso
a esses direitos. Esse movimento no entanto deve ser impregnado do espírito do
Evangelho e garantido contra toda ideia de falsa autonomia [para com a lei
divina –ndr]” (GS 41).
Sabemos que os “direitos do homem” não
são a mesma coisa que os “direitos naturais”, que sempre necessariamente foram
admitidos pela Santa Igreja. Com efeito, estes últimos vêm de Deus, os
primeiros, ao contrário, vêm do homem: são fundados na ideia (não cristã) da
auto-suficiência e da perfeição intrínseca do Homem enquanto homem, depois da
rejeição do dogma do pecado original.
“O gênero humano é governado por duas
leis: o direito natural e o costume. O direito natural é aquele que está
contido nas Santas Escrituras e no Evangelho” (Decr. Grat.). O preceito
fundamental da lei natural ou direito natural é: “faça o bem e evite o mal” (S.
Tomas IIa IIae, q. 94, a. 2), um preceito ético, de origem divina,
perfeitamente compreendido e integrado pela recta ratio, colocado
como fundamento da observação do Decálogo e de todas as relações jurídicas
naturais e positivas, de tal modo que os direitos (iura) individuais
devem sempre ter por objeto “aquilo que é justo” (“ius est objectum
iustitiae”, S Tomas IIa IIae, q.57, a.1); justo segundo a ordem moral
estabelecida por Deus, (pela lex aeterna e divina) e
confirmada pela Revelação e pelo ensino da Igreja, não segundo as opiniões
pessoais e os desejos dos homens.
Os “direitos do homem”, ao contrário,
são “afirmados” pelo sujeito como pretensões universais para a aquisição e para
o gozo de tudo aquilo que o sujeito (o Homem) deseja porque ele o avalia
conforme sua dignidade de individuo, que se considera moralmente e
intelectualmente auto-suficiente, capaz de determinar sozinho o que é justo e o
que é bom. E entre esses direitos figura até o direito “à felicidade”,
sancionado pela Declaração da Independência dos Estados Unidos da América. Pela
força das circunstancias a reivindicação desses direitos se manifesta muitas
vezes sob formas extremistas, subversivas e mesmo violentas, porque exprimem na
realidade a vontade de poder e o instinto de dominação, individual e de massa,
que caracterizam particularmente o modo de vida bárbaro e corrompido de nosso
tempo.
De que modo o Concilio “impregnou” com
o espírito do Evangelho o movimento pelos direitos do homem? Reafirmando o
ensino da Igreja sobre a lei e os direitos naturais? Certamente não foi. Ao
contrario procurou dar aos “direitos do homem” uma plataforma
ideológica católica constituída pela falsa doutrina, que já citamos,
de uma dignidade do homem muito elevada e sublime porque resultante da união do
Cristo com cada homem em virtude da Encarnação e da Redenção que já se produziu
para todos: “Ora somente Deus, que criou o homem à sua imagem e o resgatou
do pecado (atque a peccato redemit) pode responder a estas questões
[questões levantadas pelo desenvolvimento da personalidade e pela afirmação dos
direitos do homem – ndr] com plenitude [...]. Quem quer que siga o Cristo,
homem perfeito, torna-se ele próprio mais homem (et ipse magis homo
fit)” (GS 41). Mas não foi revelado que aqueles que seguem
Nosso Senhor, pela fé e pelas obras, recebem a “potestam filios Dei fieri”
(João 1,12)? E agora nos vêm dizer que eles se tornam, ao contrário,
“mais homens”! Se esta não é a marca de uma doutrina invertida, o que é então?
Notemos bem que a falsa ideia de uma
dignidade superior do homem enquanto homem (que decorre da ideia também falsa
da sua perfeição e de sua auto-suficiência intrínsecas), no lugar de ser
combatida pelo Concilio, se encontra reforçada pela atribuição
ao homem enquanto tal, a cada homem, de uma redenção objetiva
e anônima pelo Cristo! Desta maneira, não é o movimento pelos “direitos do
homem” que se impregna do Espírito do Evangelho: é este último, tal como é
interpretado pela ala progressista do Concilio, que se impregna do espírito
subversivo e contestatário do movimento pelos “direitos do homem”.
12.4 Uma avaliação e uma apreciação da
cultura, identificada sem mais à noção neo iluminista, cientificista,
corrente naquela época, incluindo a exaltação da “conquista do cosmo”;
avaliação que conduziu o Concilio até ao elogio da cultura de massa,
então começando, como um novo “humanismo”: a cultura, no sentido genérico,
designa “tudo aquilo pelo que o homem afina e desenvolve as múltiplas
capacidades de seu espírito e de seu corpo; esforça-se por submeter o universo
pelo conhecimento e o trabalho; humaniza a vida social[...]”, tendo como fim o
“progresso de todo o gênero humano” (GS 53). O Concilio vê com
satisfação a emergência de uma “forma de cultura mais universal”, com a
contribuição da “cultura de massa”, que “faz avançar e exprime a unidade do
gênero humano” (GS 54), nos fazendo “testemunhas do nascimento de
um novo humanismo”, à altura da “missão que nos é atribuída de construir um
mundo melhor na verdade e na justiça” (GS 55).
Dir-se-ia frases extraídas de discursos
ou de cartazes de alguma sociedade mazziniana de
antigamente. [nota: Mazzini (Giuseppe)(1805-1872), agitador
italiano, fundador de uma sociedade secreta (a Jovem Itália), Em
1848, fez parte do triunvirato romano] Não se poderia imaginar uma
apreciação mais errada, mais afastada da realidade do que esta: considerar a
“cultura de massa” como portadora de um novo humanismo; ela, que foi um dos
sinais característicos da volta de nossos costumes à barbárie porque ela
destruiu toda verdadeira cultura, conduzindo-nos até à triste dominação do
“politicamente correto”.
Aqui está a pastoral
ruim. A esta “cultura” leiga (vista, temos que dizer,
sob o seu pior aspecto) em pleno desenvolvimento segundo o Concilio, o que
devem opor os católicos? Talvez sua visão do mundo fundada no sobrenatural? De
maneira nenhuma. Com efeito, “a cultura humana deve, hoje, progredir, de modo a
desabrochar integralmente e harmoniosamente a pessoa humana [...]” (GS 56).
A “cultura” é para a “pessoa”, para a “dignidade do homem” e não para a gloria
de Deus. A “cultura” é antropocêntrista. E os católicos deverão se
abrir a essa cultura, cooperar com ela, tendo a “obrigação de
trabalhar com todos os homens na construção de um mundo mais humano” (GS 57).
Os católicos deverão lutar por uma “cultura humana em harmonia com a pessoa,
sem distinção de raça, de sexo, de nação, de religião ou de
condição social” (GS 60). É o gênero de cultura programada pela ONU
e por suas instituições, de onde as características da noção católica de
cultura devem necessariamente desaparecer.
É preciso, segundo o Concilio voltar-se
para a construção de uma “pessoa humana em sua integridade”, que deve ser
educada por meio de uma “cultura universal”; por conseqüência, toda a atividade
cultural coletiva deve ser impregnada do “espírito humano e
cristão” (GS 61). Esta expressão é corrente nos textos do
Concilio: Lumen Gentium 36 afirma, como já vimos, que os fiéis
leigos devem cooperar com o “progresso universal na liberdade humana e cristã”.
O que é humano está colocado no mesmo plano daquilo que é cristão, e mesmo
acima, porque a cooperação no diálogo com o mundo – que agora é a missão essencial
– encontra seu fundamento nos valores humanos, aos quais os valores cristãos
devem se adaptar. O decreto sobre o apostolado dos leigos (Apostolicam
Actuositatem 27) afirma que a cooperação com os não cristãos é
“reclamada pelos valores humanos comuns”, os quais devem, pois, unir os
homens acima das religiões, assim como o quer a religião da
Humanidade.
12.5 A apreciação do “direito à
informação”, sobre a base de uma avaliação utópica de suas vantagens, a saber,
que “a publicação rápida dos acontecimentos e das coisas fornece ao indivíduo
um conhecimento mais completo e ao mesmo tempo contínuo sobre o assunto,
tornando cada cidadão capaz de contribuir eficazmente para o bem comum e o
progresso de toda a sociedade” (Inter Mirifica 5).
A experiência demonstrou que nada disso
corresponde à realidade. O bombardeamento quotidiano de notícias de todos os
gêneros pelas “mass medias” não produziu na massa dos indivíduos um
“conhecimento mais completo e continuo” dos fatos, capaz de favorecer a
contribuição para o “bem comum” e o “progresso”. Produziu, ao contrário, uma
sorte de saturação mental e daí uma tendência generalizada para o
enfraquecimento da capacidade de discernir, de compreender efetivamente a
“significação” dos fatos, que aliás são em geral esquecidos tão rápido quanto
foram apreendidos. Já se poderia compreender na época do Concilio, que o circo
planetário da informação era em substancia uma usina para fabricar o NADA.
12.6 A apreciação otimista do homem que
se descreve em quase todos os artigos de Gaudium et Spes como
se sua inteligência e sua vontade não estivessem feridas pelo pecado original,
aparece afastada da realidade, pois propõe, de fato, de novo, a idéia não
cristã e utópica de um homem bom por natureza, de um gênero humano naturaliter cheio
dos melhores sentimentos.
O homem de GS (GS 4-11)
aparece mergulhado no exercício, por suas próprias forças, de sua inteligência
e de sua vontade, perscrutando a si mesmo e perscrutando os sinais dos tempos
pela compreensão e a conquista da natureza, pela tomada positiva da consciência
de sua “dignidade”, de seus “direitos”, limitado ao máximo pelas “contradições”
provocadas pelo desenvolvimento social. Não se diz nunca que nele há também uma
tendência radical para o mal, que obscurece seu julgamento e
torce sua vontade, razão pela qual sem a ajuda da Graça (“sem Mim nada podeis”
João 15, 5) não são possíveis nem um julgamento claro nem uma vontade reta. Se
não se diz isso, é porque o Sobrenatural está de fato excluído do “humanismo”
preconizado pelo Vaticano II, cujo otimismo queria nos apresentar uma imagem
xaroposa, retórica e falsa do homem e de suas aspirações. Consideremos esta
passagem: “As pessoas e os grupos têm sede de uma vida plena e livre, de uma
vida digna do homem, que ponha a seu próprio serviço todas as imensas
possibilidades que lhe oferece o mundo atual” (GS 9). Uma imagem
tão edificante, tão “politicamente correta” das reivindicações individuais e
sociais, proclamadas em geral em nome dos “direitos do homem”, negligencia a
realidade, quer dizer o fato de que em mais de uma vida “plena e livre”
(expressão genérica), as pessoas e os grupos tinham e têm sede de poder, de
domínio, de gozo, têm sede de se impor e de comandar, de se vingar dos
prejuízos experimentados, reais ou supostos. E, ademais, a vida “digna do
homem” é, do ponto de vista católico, a vida “plena e livre” daquele que
satisfez suas reivindicações, sobretudo materiais, ou a vida daquele que quer
fazer em tudo a vontade de Deus segundo o ensino de Nosso Senhor, levando por consequência
uma vida que, aos olhos do mundo, não é nem “plena” nem “livre”, mas que o é
aos olhos de Deus?
A visão otimista do homem conduziu o
Concilio a dar uma definição do homem universal ou “pessoa em sua
integralidade” que não é católica: “[...] a cada homem continua a se impor o
dever de salvaguardar a integralidade de sua personalidade, onde predominam os
valores de inteligência, vontade, consciência e fraternidade, valores que têm,
todos, os seus fundamentos em Deus criador e que foram curados e elevados de
uma maneira admirável no Cristo” (GS 61). Este retrato é incoerente
do ponto de vista lógico, porque a inteligência, a vontade e a consciência são
faculdades do homem, e não valores, ao passo que a fraternidade só pode
ser um valor; no entanto são todas postas no mesmo plano. Mas o valor cristão
por excelência, a caridade, onde está? Onde estão a humildade, a obediência, o
espírito de sacrifício, o desejo de agradar a Deus em tudo? E se afirma de novo
que Jesus veio “elevar” o homem, “curando” suas qualidades de toda imperfeição,
quando Ele se encarnou não para exaltar nossas qualidades, mas para curar
nossas enfermidades, para que pudéssemos delas nos curar acreditando Nele: “non
enim veni vocare iustos sed peccatores” (Marcos 2,17).
12.7 A apreciação do processo
histórico, que se considerava então em curso de realização, como processo
tendendo para a unidade do gênero humano (cf. § 2.7), no qual, no fim, as
nações seriam dissolvidas: “O próprio movimento da história torna-se tão rápido
que se custa a segui-lo. O destino da comunidade humana torna-se um e não se
diversifica mais em histórias distintas separadas entre si” (GS 5: Consortionis
humanae sors una efficitur et non amplius inter varias velut historias
dispergitur). Esta tese da “filosofia da história” do Vaticano II foi
confirmada pelos fatos? Pareceria que sim, no ano 2002. Entretanto, é preciso
explicitar os seguintes pontos:
1) A unificação sócio-econômica do
gênero humano estava tomando forma graças ao desenvolvimento material da ciência,
da técnica, da economia e com o concurso da cultura de massa; desenvolvimento
que parece hoje ter resultado em uma espécie de modelo econômico universal
representado pelo “mercado global”, quer dizer o capitalismo sob sua pior
forma, a forma ultraliberal e especulativa, um monstro econômico e financeiro
que nenhum Estado consegue mais controlar.
2) A forma política universal desse
processo (uma vez desaparecida a utopia comunista) consolidou-se na democracia,
democracia de massa, dos “direitos do homem”, corrompida e corruptora, que pesa
em nossos ombros, inimiga de todas as verdades do Cristianismo.
3) Trata-se de um processo
artificial, provocado conjuntamente pela avidez humana levada ao extremo, pela
política de poder de certas nações e pela adesão da Igreja às ideias do Século,
não pelo desejo natural dos povos nem por exigências políticas e econômicas
objetivas.
4) Este processo, com todos os
seus males, estava ainda embrionário no começo dos anos sessenta, dominados
pelo dualismo democracia e comunismo e pela oposição frontal dos “blocos”. Se o
Concilio tivesse condenado esse processo, seria praticamente certo que ele não
teria atingido a amplitude quantitativa e qualitativa que conhecemos hoje.
Realmente, a adesão a esse processo por parte da Hierarquia católica favoreceu
o seu encaminhamento; queremos dizer que a ação “ecumênica” da Hierarquia
católica contribuiu poderosamente para a “unificação” do gênero humano e a
Igreja “conciliar” tornou-se hoje, um dos fatores que
concorrem para manter a “unidade” artificial do gênero humano.
5) Esta unidade na realidade só é
aparente e isso é demonstrado pelo fato de que ela permitiu ao Islã, tornado
rico graças ao petróleo, retomar, depois de muitos séculos, sua ofensiva em
escala mundial pela penetração maciça em todos os países e em particular nos países
europeus, nos quais implantou numerosas e poderosas colônias, compactas e
agressivas. O dualismo político da época dos “blocos” se renovou, mas de uma
forma mais dissimulada, com o inimigo se achando no interior das muralhas e sem
declaração de guerra, ao contrário sob o símbolo da paz, da unidade, da
fraternidade, dos “direitos do homem”. O Islã, que identifica religião e
política, é constitutivamente impermeável a qualquer forma de democracia e
considera como um dever “religioso” conquistar a mundo todo para Alá e Maomé.
Diante disto, o gênero humano “unificado na paz, no progresso material, na
democracia,” é um gênero humano aberto, como nunca no passado, à conquista
islâmica (sem excluir a hipótese de uma volta imprevista do comunismo, diante
do caráter ambíguo da adesão da Rússia à “democracia”).
6) A constatação da
impossibilidade de uma “história separada” para cada nação, aparentemente
verídica, na realidade não é aceitável, sobretudo do ponto de vista católico.
Pela simples razão de que a Igreja tinha e tem o dever de se preocupar antes de
tudo com as nações e as sociedades católicas, de defender sua individualidade,
tanto no plano dos princípios como no plano político no sentido estrito e,
portanto, de se inquietar para que sua história seja mesmo “separada”, na
medida do possível, daquela do resto do mundo que lhe é hostil. Em outros
termos: a conservação e a defesa da individualidade nacional católica exigem
o reconhecimento do direito a uma história “separada”, direito que Deus todo
poderoso sempre garantiu – por exemplo, para o antigo Israel, pequeno e frágil
como foi, enquanto observasse fielmente seus mandamentos; eles exigem o
reconhecimento do direito de construir uma sociedade de acordo
com os princípios do Cristianismo: direito sobre o qual o Concilio não fala
nunca, tendo optado por uma sociedade “pluralista” (GS 75; Gravissimus
Educationis 6,7).
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