I Apologia - Sobre a Obra
Por Roque Frangiotti
Fonte: Padres Apostólicos,
Volume III, Col. Patrística. Ed. Paulus
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Data de Composição
A data da composição desta obra pode
ser deduzida de alguns dados internos. O primeiro está emana própria
dedicatória: ela é dirigida "Ao imperador Tito Élio Adriano Antonino Pio
César Augusto, ao seu filho Veríssimo, filósofo, a Lúcio, filho natural do
César Augusto, ao seu filho adotivo de Pio, amante do saber, ao sacro Senado e
a todo o povo romano". Ora, estes imperadores reinaram do ano 147 ao ano
161. A Apologia deve ter sido escrita ao longo destes 15 anos. Segundo, no
capítulo 46,1, Justino menciona que uma das objeções contra a doutrina cristã
era a de "dizermos que Cristo nasceu somente há cento e cinqüenta anos sob
Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde, no tempo de Pôncio Pilotos".
Embora se deva tomar o ano cento e cinqüenta como um arredondamento, pode-se
pensar que a redação da I Apologia não se deu antes desta data. Finalmente, no
capítulo 29,2-3, Justino menciona o caso de um jovem cristão que recorreu ao
prefeito Félix de Alexandria, suplicando-lhe interceder junto ao governador da
província uma licença para se castrar. Ora, os especialistas identificam o
prefeito Félix como Minúcio Félix, o qual reinou em Alexandria do ano 148 a
154. A I Apologia, portanto, deve ter sido escrita por volta de 155.
Estrutura e conteúdo da obra
A I Ap. está assentada numa estrutura
ternária. Os caps. 1-3 formam uma introdução. Nela Justino dirige-se ao imperador
Antonino Pio e a seus filhos para pleitear a defesa dos cristãos. Roga ao
imperador que assuma pessoalmente a análise das acusações que se fazem com freqüência
contra os cristãos e julgue imparcialmente, sem preconceitos, isto é, não se
deixe levar pelo vozerio da plebe.
Os caps. 4-12 formam uma parte
substancial da 1 Ap. Nela Justino condena a atitude oficial a respeito dos
cristãos. Critica o procedimento judicial seguido regularmente pelo governo
contra os cristãos e as falsas acusações lançadas contra eles. Protesta
contra a absurda atuação das autoridades que castigam pelo simples fato de
alguém reconhecer-se cristão. Para Justino, o nome "cristão" é igual
ao de "filósofo". Não prova nem culpa nem inocência de alguém.
Estranha maneira esta de condenar alguém somente pelo fato de se chamar
"cristão". Geralmente é por um crime cometido que se condena alguém,
não por causa do nome. Aqui, o nome é crime. Mas porque, se este nome não está
unido a nenhum ato desleal? Ao contrário, Justino demonstra que as esperanças
escatológicas, o medo da condenação eterna fazem com que os cristãos sejam
leais, respeitosos, cidadãos exemplares, exceto no culto aos ídolos.
Castiga-se, assim, condenasse só pelo nome, pois basta alguém negar ser cristão
para ser libertado, basta confessá-lo para ser condenado. Os crimes dos quais
se acusam os cristãos são, portanto, calúnias. Estes, de fato, não são ateus.
Negam adoração aos deuses do império porque julgam este ato ridículo. Os
cristãos não oferecem a Deus culto material porque o culto agradável é a
imitação de suas virtudes.
A defesa dos cristãos não era,
contudo, o único fim da Apologia. A melhor defesa é expor a verdade. Justino
mostra confiança no poder da verdade. O melhor meio de refutar é, portanto,
expor publicamente a verdade da doutrina cristã. Tenta, assim, construir uma
justificação da religião cristã. Apresenta com detalhes a doutrina, o batismo e
a eucaristia, seus fundamentos históricos e as razões para abraçá-la. E então
que Justino recorre à noção de Gogos para explicar que Cristo é o primogênito
de Deus, o Logos do qual todo o gênero humano compartilha: todos os que vivem
em conformidade ao Logos são cristãos, mesmo quando são considerados ateus (1
Ap. 64,2-3).
A partir do cap. 18, Justino trata da
imortalidade da alma depois da morte com argumentos suspeitos, da ressurreição
que só é possível pela onipotência de Deus. Nos caps. 21-22, estabelece
analogias entre as doutrinas estóica e cristã. Contudo, Justino não percebe que
seu caminho é perigoso, minado, pois essa semelhança pode ser arma para negar a
divindade e originalidade do cristianismo. Justino estará procurando um meio de
se tornar acessível, de ser compreendido, de dizer que o cristianismo não era
do outro mundo? Falar a própria língua do pagão? No cap. 23, apresenta um novo
plano de demonstração da doutrina cristã. Nos caps. 24-29, só a doutrina
recebida de Cristo e dos profetas que o precederam é a verdadeira e mais antiga
que todos os escritores anteriores. Dado que o critério da verdade é a
antiguidade, Justino, como antes dele os apologistas judaicos, insiste que os
filósofos tomaram dos profetas e de Moisés as verdades que expressam em seus
ensinamentos (1 AP, 59,1-6; 60,1-7).
Nos caps. 30-53, Justino afirma que,
antes da encarnação, os demônios inventaram muitas armadilhas para apartar os
homens da fé naquele mistério. Aí Justino identifica Cristo com a alma do
mundo de Platão (Timeu, 366). Para ele, Platão teria haurido esta verdade de Nm
21,7-8. Finalmente, Justino defende os cristãos dizendo que neles o imperador
tem os melhores colaboradores. Porque os cristãos são fiéis ao Evangelho, são
também leais ao imperador e cumprem com mais fervor e prontidão do que nenhum
outro cidadão seus deveres, "pois nosso Mestre nos ensinou a dar a Deus o
que é de Deus e a César o que é de César", isto é, adoração a Deus e só serviço
e tributo a César. Portanto, não são inimigos do império, mas pela doutrina e
pelo comportamento são os melhores servidores dos governadores, para manter a
paz. Infelizmente, Justino apresenta a religião cristã como garante, como
estrutura que ajuda a manter a "ordem social". O cristianismo perde
assim toda força questionadora das estruturas dominantes, opressoras. No cap.
11, Justino diz que os cristãos não esperam num "reino deste mundo".
Logo, os cristãos não merecem ser perseguidos nem quanto à religião, nem por
sua atitude ante o império.
Como explicar, então, as perseguições
contra os cristãos? Porque gente de bem é perseguida enquanto os idólatras,
adúlteros não são molestados? Para Justino, a perseguição contra os cristãos é
instigação dos demônios. Aqui Justino se mostra inteiramente dependente de seu
meio e de seu tempo. E também um dos pontos fracos de sua argumentação. O
propósito dos demônios é de reduzir os homens a seus servos e assistentes. São
instigadores do paganismo antes da vinda de Cristo e dos hereges agora.
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I Apologia - Sobre a Obra
Por Roque Frangiotti
Fonte: Padres Apostólicos,
Volume III, Col. Patrística. Ed. Paulus
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I Apologia - Caps 1 ao 12
1. Ao imperador Tito Élio Adriano Antonino Pio César Augusto, ao seu
filho Veríssimo, filósofo, e a Lúcio, filho natural do César, filósofo e filho
adotivo de Pio, amante do saber, ao sacro Senado e a todo o povo romano.
Em prol dos homens de qualquer raça que são injustamente odiados e caluniados,
eu, Justino, um deles, filho de Prisco, que o foi de Báquio, natural de Flávia
Neápolis na Síria Palestina, compus este discurso e esta súplica.
2. A razão exige dos que são verdadeiramente piedosos e filósofos que,
desprezando as opiniões dos antigos se estas são más, estimem e, amem apenas a
verdade. De fato, o raciocínio sensato não só exige que se abandonem aos que
realizaram e ensinaram algo injustamente, mas também que o amante da verdade,
de todos os modos e acima da própria vida, mesmo que seja ameaçado de morte,
deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiça. Vós ouvis em toda
parte que sois chamados piedosos e filósofos, guardiões da justiça e amantes da
instrução; mas que o sejais realmente, é coisa que deverá ser demonstrada. 3Com
o presente escrito, não pretendemos bajular-vos, nem dirigir-vos um discurso
como mero agrado, mas pedir-vos que realizeis o julgamento contra os cristãos
conforme o exato discernimento da investigação, e não deis a sentença contra
vós mesmos, levados pelo preconceito ou pelo desejo de agradar homens
supersticiosos, ou movidos por impulso irracional ou por boato crônico. De
fato, vos dizemos: estamos convencidos de que, através de ninguém, pode ser
feito algum mal a nós, enquanto não se demonstrar que somos praticantes da
maldade ou nos reconheçamos como malvados. Vós podeis matar-nos, mas não
condenar-nos.
3. 1Para que não se pense que se trata de alguma
fanfarronada nossa e opinião audaciosa, pedimos sejam examinadas as acusações
contra os cristãos. Se for demonstrado que são reais, castiguem-nos como é
conveniente que sejam castigados os réus convictos; porém, se não há nenhum
crime para interrogá-los, o verdadeiro discurso proíbe que, por um simples
boato malévolo, se cometa injustiça contra homens inocentes ou, melhor dizendo,
a cometais contra vós mesmos, que acreditais ser justo que os assuntos sejam
resolvidos não por julgamento, mas por paixão. 2Com efeito,
todo homem sensato manifestará que a melhor exigência, ou ainda mais, que a
única exigência justa é que os súditos possam apresentar uma vida e um pensar
irrepreensíveis e que, por outro lado, igualmente os mandantes dêem sua
sentença, não levados pela violência e tirania, mas segundo a piedade e a
filosofia. Só assim governantes e governados podem gozar de felicidade.
3 Foi assim que, em algum lugar, um dos antigos disse: "Se os
governantes e os governados não forem filósofos, não é possível os Estados
prosperarem." 4Cabe a nós, portanto, expor ao exame de
todos a nossa vida e os nossos ensinamentos, para que não nos tornemos
responsáveis pelo castigo daqueles que, ignorando a nossa religião, pecam por
cegueira contra nós. Contudo, o vosso dever é também ouvir-nos e mostrar-vos
bons juízes. 5Com efeito, daqui para frente, informados como
estais, caso não ajais com justiça, não tereis nenhuma desculpa diante de Deus.
Não se deve castigar um nome
4. 1Não se deve julgar que alguém seja bom ou mau por
levar um nome, se prescindimos das ações que tal nome supõe. Além disso, se se
examina aquilo de que nos acusam, somos os melhores homens. 2Todavia,
como não consideramos justo pretender que nos absolvam por nosso nome se
estamos convictos de maldade; do mesmo modo, se nem por nosso nome, nem por
nossa conduta se constata que tenhamos cometido crime, o vosso dever é
empenhar-vos para não vos tornardes responsáveis de castigo, condenando
injustamente aqueles que não foram convencidos judicialmente. 3Com
efeito, em sã razão, de um nome não se pode originar elogio ou reprovação, se
não se puder demonstrar por fatos alguma coisa virtuosa ou vituperável. 4Não
castigais ninguém que foi acusado diante dos vossos tribunais antes que ele
seja réu convicto. Contudo, quando se trata de nós, tomais o nome como prova,
sendo que, se for pelo nome, deveríeis antes castigar os nossos acusadores. 5De
fato, acusam-nos de ser cristãos, isto é, bons, mas odiar o que é bom não é
coisa justa. 6AIém disso, basta que um acusado negue com a
palavra ser cristão, vós o pondes em liberdade, como quem não tem outro crime a
ser acusado; mas quem confessa que é cristão, vós o castigais apenas por essa
confissão. O que se deveria fazer é examinar a vida tanto daquele que confessa,
como daquele que nega, a fim de pôr às claras, por suas obras, a qualidade de
cada um. 7De fato, da maneira como alguns, apesar de terem
aprendido de seu mestre Cristo a não negá-lo, são induzidos a isso ao serem
interrogados; da mesma forma, com sua vida má, eles talvez dêem motivo àqueles
que estão dispostos a caluniar de impiedade e iniqüidade todos os cristãos.
8 Mas nem nisso se procede retamente. Sabe-se que o nome e a
aparência de filósofo, alguns se arrogam sem terem praticado nenhuma ação digna
de sua profissão, e não ignorais que aqueles dos antigos que professam opiniões
e doutrinas contrárias entram todos na denominação comum de filósofos. 9Entre
eles, houve os que ensinaram o ateísmo, e os que foram poetas contam as
imprudências de Zeus com seus filhos. Todavia, não proibis ninguém de professar
as doutrinas deles; ao contrário, dais prêmios e honras para aqueles que clara
e elegantemente insultam os vossos deuses.
A obra dos demônios
5. 1O que pode haver nisso? Nós fizemos profissão de não
cometer nenhuma injustiça e não admitir essas ímpias opiniões. Vós, porém, não
examinais nossos juízos, mas, movidos de paixão irracional e aguilhoados por
demônios perversos, nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso
algum por isso.
2 Digamos a verdade: antigamente, alguns demônios perversos, fazendo
suas aparições, violaram as mulheres, corromperam os jovens e mostraram
espantalhos aos homens. Com isso, ficaram apavorados aqueles que não julgavam
pela razão as ações praticadas e assim, levados pelo medo e não sabendo que
eram demônios maus, deram-lhes nomes de deuses e chamaram cada um com o nome
que cada demônio havia posto em si mesmo. 3Quando Sócrates, com
raciocínio verdadeiro e investigando as coisas, tentou esclarecer tudo isso e
afastar os homens dos demônios, estes conseguiram, por meio de homens que se
comprazem na maldade, que ele também fosse executado como ateu e ímpio,
alegando que ele estava introduzindo novos demônios. Tentam fazer o mesmo
contra nós. 4De fato, por obra de Sócrates, não só entre os
gregos se demonstrou pela razão a ação dos demônios, mas também entre os
bárbaros, pela razão em pessoa, que tomou forma, se fez homem e foi chamado
Jesus Cristo. Pela fé que nele temos, não dizemos que os demônios que fizeram
essas coisas são bons, mas demônios malvados e ímpios, que não alcançam ou
praticam ações semelhantes, nem mesmo aos homens que aspiram à virtude.
Não somos ateus
6. 1Por isso, também nós somos chamados de ateus; e,
tratando-se desses supostos deuses, confessamos ser ateus. Não, porém, do Deus
verdadeiríssimo, pai da justiça, do bom senso e das outras virtudes, no qual
não há mistura de maldade.2A ele e ao Filho, que dele veio e nos
ensinou tudo isso, ao exército dos outros anjos bons, que o seguem e lhe são
semelhantes, e ao Espírito profético, nós cultuamos e adoramos, honrando-os com
razão e verdade, e ensinando generosamente, a quem deseja sabê-lo a mesma coisa
que aprendemos.
Não castigueis nossos acusadores
7. 1Poderão nos objetar que alguns detidos foram
condenados como malfeitores. 2Pode ser. Contudo, muitas vezes
condenais muitos outros, depois de averiguar a vida de cada um dos acusados,
mas não os condenais pelos motivos de que antes foram condenados. 3De
modo geral, não há inconveniente em confessar que, da mesma forma que entre os
gregos, aos que seguem as opiniões que lhes agradam todo mundo lhes dá o nome
de filósofos, como também entre os bárbaros levam um nome comum os que foram e
pareceram sábios, o mesmo acontece com os cristãos. 4Nós vos
pedimos, portanto, que sejam examinadas as ações de todos os que vos são
denunciados, a fim de que o culpado seja castigado como iníquo, mas não como
cristão; por outro lado, aquele que for comprovadamente inocente, seja
absolvido como cristão, por não ter cometido nenhum crime. 5Com
efeito, não pedimos que castigueis os nossos acusadores, pois eles já padecem
bastante com a maldade que levam consigo e com a sua ignorância do bem.
Não queremos mentir
8. 1Considerai que vos dissemos essas coisas para o
vosso interesse, pelo fato de que está em nós a possibilidade de negar, quando
somos interrogados. 2Todavia, não queremos viver na mentira,
pois, desejando a vida eterna e pura, aspiramos à convivência com Deus, Pai e
artífice do universo. E, por isso, nós nos apressamos a confessar a nossa fé,
pois estamos persuadidos e acreditamos que esses bens podem ser conseguidos por
aqueles que por suas obras demonstraram ter seguido a Deus e desejado sua
convivência, onde nenhuma maldade poderá nos atingir. 3De fato,
dizendo de maneira breve, isso é o que esperamos, isso é o que aprendemos de
Cristo e ensinamos. 4De modo semelhante, Platão também disse
que Minos e Radamante castigarão os iníquos que se apresentam diante deles. Nós
afirmamos que isso acontecerá, mas através de Cristo, e que o castigo que
receberão em seus corpos unidos às suas almas será eterno, e não só por um
período de mil anos, como ele disse. Se alguém diz que isso é incrível ou
impossível, nós é que fomos enganados e não outro, até que não sejamos acusados
de ter cometido alguma injustiça em nossas ações.
Vaidade da idolatria
9. 1Também não honramos, com muitos sacrifícios e coroas
de flores, esses que os homens, depois de dar-lhes forma e colocá-los nos
templos, chamam de deuses. Com efeito, sabemos que são coisas sem alma e
mortas, que não têm forma de Deus. Nós não cremos que Deus tenha semelhante
forma, que alguns dizem imitar para tributar-lhes honra. Na verdade, o nome e
figura que levam são daqueles maus demônios que um dia apareceram no mundo. 2Por
acaso, é preciso explicar-vos, se já o sabeis, a maneira como os artesãos
dispõem a matéria, ora polindo e cortando, ora fundindo e cinzelando?3Não
só consideramos isso irracional, mas também um insulto a Deus, pois, tendo ele
glória e forma inefável, dá-se o nome de Deus a coisas corruptíveis e que
necessitam de cuidado. Muitos, apenas mudando a figura e dando forma
conveniente através da arte, dão o nome de deus àquilo que serviu de instrumento
ignominioso. 4E vós sabeis perfeitamente que os artesãos de
tais deuses são pessoas dissolutas, que vivem envoltas na maldade, o que não
vou contar aqui em pormenores. Entre eles não faltam os que corrompem as
escravas que trabalham ao lado deles. 5É estupidez dizer que
homens intemperantes fabricam e transformam deuses para ser adorados e que tais
pessoas servem como guardas dos templos nos quais aqueles são colocados! E não
percebem que já é impiedade pensar ou dizer que os homens podem ser guardiões dos
deuses!
O melhor sacrifício é a virtude
10. 1Além disso, aprendemos que Deus não tem necessidade
de nenhuma oferta material dos homens, pois vemos que é ele quem nos concede
tudo. Em troca, nos foi ensinado, e disso estamos persuadidos e assim o cremos,
que lhe são gratos somente aqueles que lhe procuram imitar os bens que lhe são
próprios: o bom senso, a justiça, o amor aos homens e tudo o que convém a um
Deus que não pode ser chamado por nenhum nome imposto. 2Também
nos foi ensinado que, por ser bom, no princípio ele fez todas as coisas de uma
matéria informe, por amor aos homens. Recebemos a crença de que ele concederá a
sua convivência, participando do seu reino, tornados incorruptíveis ou
impassíveis, aos homens que por suas obras se mostrem dignos do desígnio de
Deus. 3De fato, do mesmo modo como no princípio nos fez do não
ser, assim também cremos que àqueles que escolheram o que lhe é grato,
concederá a incorruptibilidade e a convivência com ele, como prêmio dessa mesma
escolha. 4Com efeito, ser criados no princípio não foi mérito
nosso; mas agora ele nos persuade e nos conduz à fé para que sigamos o que lhe
é grato, por livre escolha, através das potências racionais, com que ele mesmo
nos presenteou. 5Consideramos ainda ser de interesse para todos
os homens que não se impeça a eles de aprender estes ensinamentos, mas sejam
exortados neles. 6De fato, o que as leis humanas não
conseguiram, o Verbo divino já o teria realizado, se os malvados demônios não
tivessem espalhado muitas calúnias ímpias, tomando como aliada a paixão que
habita em cada um, má para tudo e multiforme por natureza; nós não temos nada a
ver com essas calúnias.
Nosso reino não é deste mundo
11. 1Até vós, apenas ouvindo que esperamos um reino,
logo supondes, sem nenhuma averiguação, que se trata de reino humano, quando
nós falamos do reino de Deus. Isso aparece claro pelo fato de que, ao sermos
interrogados por vós, confessamos ser cristãos, sabendo como sabemos que tal
confissão traz consigo a pena de morte. 2De fato, se
esperássemos um reino humano, o negaríamos para evitar a morte e procuraríamos
viver escondidos, a fim de conseguir o que esperamos; mas como não depositamos
nossa esperança no presente, não nos importamos que nos matem, além do que, de
qualquer modo, haveremos de morrer.
Somos vossos aliados para a paz
12. 1Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a
manutenção da paz, pois professamos doutrinas, como a de que não é possível
ocultar de Deus o malfeitor, o avaro, o conspirador ou o homem virtuoso, e que
cada um caminha para o castigo ou salvação eterna, conforme o mérito de suas
ações. 2Com efeito, se todos os homens conhecessem isso,
ninguém escolheria por um momento a maldade, sabendo que caminharia para sua
condenação eterna pelo fogo, mas se conteria de todos os modos e se adornaria
com a virtude, a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos. 3De
fato, aqueles que agora, por medo das leis e dos castigos por vós impostos, ao
cometer seus crimes procuram escondê-los, porque sabem que sois homens e que,
por isso, é possível ocultá-los de vós, se se inteirassem e se persuadissem de
que não se pode ocultar nada a Deus, não só uma ação, mas sequer um pensamento,
ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os modos, como vós mesmos
haveis de convir. 4Todavia, até parece que temeis que todos se
decidam a fazer o bem e não tenhais a quem castigar, coisa que conviria melhor
a verdugos do que a príncipes bons.5Estamos persuadidos, porém, de
que isso também, como dissemos, é obra dos demônios perversos, os quais exigem
sacrifícios e culto dos que vivem irracionalmente; contudo, jamais supusemos
que vós, amantes da piedade e da filosofia, façais algo irracionalmente. 6Mas
se também tendes mais estima pelo costume do que pela verdade, fazei o que
podeis; sabei, porém, que os governantes que colocam a opinião acima da verdade
só podem fazer o que fazem os bandidos em lugar despovoado. 7Que
isso, porém, não vos será de bom augúrio, o Verbo o demonstra, ele que é o rei
mais alto, o governante mais justo que conhecemos, depois de Deus que o gerou. 8Com
efeito, do mesmo modo como todos recusam a pobreza, o sofrimento e a desonra
paterna, assim também não haverá homem sensato que aceite aquilo que a razão
ordena não aceitar. 9Que tudo isso aconteceria, como digo, o
predisse nosso Mestre, que é ao mesmo tempo filho e legado de Deus pai e
soberano do universo, Jesus Cristo, do qual também originou-se o nosso nome de
cristãos. 10Disso provém nossa firmeza em aceitar seus
ensinamentos, pois se manifesta realizado tudo quanto ele predisse que
aconteceria. Eis a obra de Deus: dizer as coisas antes que aconteçam e depois
mostrar o acontecido tal qual ele foi predito. 11Poderíamos
terminar aqui o nosso discurso, sem acrescentar mais nada, considerando que
pedimos coisas justas e verdadeiras. Todavia, como sabemos não ser fácil mudar
às pressas uma alma possuída pela ignorância, determinamos acrescentar mais
alguns breves pontos, a fim de persuadir os amantes da verdade, pois sabemos
que quando esta é proposta, a ignorância bate em retirada.
I Apologia - Caps 13 a 22
Profissão de fé cristã
13. 1Que não somos ateus, quem estiverem são juízo não o
dirá, pois cultuamos o Criador deste universo, do qual dizemos, conforme nos
ensinaram, que não tem necessidade de sangue, libações ou incenso. Em lugar de
todas as ofertas, nós o louvamos conforme nossas forças, com palavras de oração
e ação de graças. Aprendemos que o único louvor digno dele não é queimar no
fogo o que por ele foi criado para nosso alimento, mas oferecê-lo para nós
mesmos e para os necessitados. 2Depois, mostrando-nos a ele
agradecidos, dirigir-lhe por nossa palavra louvores e hinos por ter-nos criado,
por todos os meios de saúde, pela variedade das espécies e mudanças das
estações, ao mesmo tempo que lhe suplicamos que nos conceda de novo a incorruptibilidade
pela fé que nele temos. 3Em seguida, demonstramos que, com
razão, honramos também Jesus Cristo, que foi nosso Mestre nessas coisas e para
isso nasceu, o mesmo que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, procurador na
Judéia no tempo de Tibério César. Aprendemos que ele é o Filho do próprio Deus
verdadeiro, e o colocamos em segundo lugar, assim como o Espírito profético,
que pomos no terceiro. De fato, tacham-nos de loucos, dizendo que damos o
segundo lugar a um homem crucificado, depois do Deus imutável, aquele que
existe desde sempre e criou o universo. É que ignoram o mistério que existe
nisso e, por isso, vos exortamos que presteis atenção quando o expomos.
Homens novos pela fé em Cristo
14. 1De antemão vos avisamos que tenhais cuidado, para
não serdes enganados por esses mesmos demônios que acabamos de acusar e assim
eles vos impeçam totalmente de ler e entender o que dizemos, pois eles lutam
para tê-los como seus escravos e servidores. Por aparições em sonhos ou por
artes de magia, eles se apoderam de todos aqueles que, de um ou outro modo, não
trabalham por sua própria salvação. Depois de crer no Verbo, nós nos afastamos
deles e, por meio do Filho, seguimos o único Deus unigênito. 2Antes,
nós nos comprazíamos na dissolução; agora, abraçamos apenas a temperança;
antes, nos entregávamos às artes mágicas; agora, nos consagramos ao Deus bom e
ingênito; antes, amávamos, acima de tudo, o dinheiro e as rendas de nossos
bens; agora, colocamos em comum o que possuímos e disso damos uma parte para
todo aquele que está necessitado; 3antes, nós nos odiávamos e
nos matávamos mutuamente e não compartilhávamos o lar com aqueles que não
pertenciam à nossa raça pela diferença de costumes; agora, depois da aparição
de Cristo, vivemos todos juntos, rezamos por nossos inimigos e tratamos de
persuadir os que nos aborrecem injustamente, a fim de que, vivendo conforme os
belos conselhos de Cristo, tenham boas esperanças de alcançar conosco os mesmos
bens que esperamos de Deus, soberano de todas as coisas.
4Todavia, para que não pareça que pretendemos vos enganar, acreditamos
ser oportuno, antes da demonstração, recordar alguns ensinamentos do mesmo
Cristo, deixado para vós, como poderosos imperadores, a tarefa de examinar se,
de fato, é isso que nos ensinaram e que nós ensinamos. 5Seus discursos, porém,
são breves e sintéticos, pois ele não era nenhum sofista, mas sua palavra era
uma força de Deus.
A doutrina de Cristo
15. 1Sobre a temperança, ele disse o seguinte: "Aquele
que olhar para uma mulher para desejá-la, diante de Deus já cometeu adultério
em seu coração". 2E: "Se o teu olho direito te
escandaliza, arranca-o, pois é melhor entrar no reino dos céus com um só olho
do que ser mandado para o fogo eterno com os dois". 3E:
"Aquele que se casa com a divorciada de outro marido comete
adultério". 4E: "Há alguns que foram mutilados pelos
homens, há também aqueles que já nasceram mutilados; mas há aqueles que se
mutilaram a si mesmos por causa do reino dos céus. Mas nem todos compreendem
isso".5De modo que, para o nosso Mestre, não só são pecadores
os que contraem duplo matrimônio, conforme a lei humana, mas também os que
olham para uma mulher para desejá-la. Com efeito, para ele não só se rejeita
aquele que de fato comete adultério, mas também aquele que quer cometê-lo, pois
diante de Deus, tanto as obras como os desejos estão manifestos. 6Entre
nós há muitos homens e mulheres que, tornando-se discípulos de Cristo desde
criança, permanecem incorruptos até os sessenta e setenta anos. E eu me glorio
de mostrá-los entre toda a raça dos homens. 7Isso sem contar a
multidão inumerável dos que se converteram de uma vida dissoluta e aprenderam
esta doutrina, pois Cristo não veio chamar os justos e os temperantes para a
penitência, mas os ímpios, intemperantes e injustos. 8De fato,
ele disse: "Não vim chamar os justos, mas os pecadores para a penitência?.
O Pai celestial prefere a penitência do pecador ao seu castigo.
9Sobre amar a todos, ensinou o seguinte: "Se amais os que vos amam,
que novidade fazeis? Os fornicadores também não fazem isso? Eu, porém, vos
digo: Orai por vossos inimigos, amai os que vos odeiam e orai pelos que vos
caluniam".
10Sobre repartir o que temos com os necessitados e não fazer nada por
ostentação, ele disse: "Dai a todo aquele que vos pedir, e não vos
afasteis daquele que quer pedir-vos um empréstimo. De fato, se emprestais
apenas àqueles de quem esperais receber, que novidade fazeis? Até os publicanos
fazem isso. 11Vós, porém, não entesoureis para vós sobre a
terra, onde a traça e a ferrugem destroem e os ladrões escavam, mas entesourai
para vós nos céus, onde nem a traça, nem a ferrugem destroem. 12Com
efeito, o que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? O
que dará em troco dela? Entesourai, portanto, nos céus, onde nem a traça, nem a
ferrugem destroem". 13E: "Sede bons e
misericordiosos, assim como vosso Pai é bom e misericordioso e faz sair o seu
sol sobre pecadores, justos e maus. 14Não vos preocupeis sobre
o que comer ou vestir. Não valeis mais do que os pássaros e as feras? E Deus as
alimenta. 15Não vos preocupeis, portanto, sobre o que comereis
ou que vestireis, pois vosso Pai celeste sabe que tendes necessidade dessas
coisas. 16Buscai antes o reino dos céus, e tudo isso vos será
dado em acréscimo. Com efeito, onde está o tesouro, aí também está o pensamento
do homem". 17E: "Não façais essas coisas para serdes
vistas pelos homens, pois nesse caso não tereis recompensa de vosso Pai que
está nos céus?.
16. 1Sobre sermos pacientes, prontos para servir a todos
e alheios à ira, ele disse o seguinte: "Àquele que te golpeia numa face,
oferece-lhe a outra, e a quem quer tirar-te a túnica ou o manto, não o impeças. 2Quem
se irritar, será réu do fogo. A quem te contratar para uma milha, acompanha-o
duas. Que as vossas obras brilhem diante dos homens, a fim de que, vendo-as,
admirem vosso Pai que está nos Céus". 3Portanto, não
devemos oferecer resistência, pois ele não quer que sejamos imitadores dos
malvados, mas mandou-nos afastar a todos da vergonha e do desejo do mal pela
paciência e mansidão. 4E isso vos podemos demonstrar através de
muitos que viveram entre vós, que deixaram seus hábitos violentos e tirania,
vencidos ora contemplando a constância de vida de seus vizinhos, ora considerando
a estranha paciência dos companheiros de viagem ao ser defraudados, ora pondo à
prova companheiros de negócio.
5Sobre não jurar nunca mas dizer sempre a verdade, ele nos ordenou o
seguinte: "Nunca jureis; todavia o vosso não seja não, e o vosso sim seja
sim, pois tudo que passa disso provém do maligno".
6Sobre adorar unicamente a Deus, ele nos persuadiu, dizendo: "O
maior mandamento é este: Adorarás ao Senhor teu Deus e só a ele servirás de
todo o teu coração e com toda a tua força, ao Senhor Deus que te criou". 7Certa
vez que alguém se aproximou dele e lhe disse: "Bom Mestre", ele
respondeu: "Ninguém é bom a não ser Deus, que fez todas as coisas".
8Aqueles, porém, que se vê que não vivem como ele ensinou, sejam
declarados como não cristãos, por mais que repitam com a língua os ensinamentos
de Cristo, pois ele disse que se salvariam, não os que apenas falassem, mas que
também praticassem as obras. 9De fato, ele disse:
"Não todo aquele que me diz: "Senhor, Senhor, entrará no reino
dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. 10Porque
aquele que me ouve e faz o que eu digo, ouve aquele que me enviou. 11Muitos
me dirão: ?Senhor, Senhor, não foi em teu nome que comemos, bebemos e fizemos
prodígios?? Então eu lhes responderei: -?Apartai-vos de mim, operadores de
iniqüidade'. 12Então haverá choro e ranger de dentes, quando os
justos brilharem como o sol e os injustos forem mandados para o fogo eterno. 13Porque
muitos virão em meu nome, vestidos por fora com peles de ovelha, mas por dentro
são lobos roubadores. Por suas obras os conhecereis. Toda árvore que não dá bom
fruto é cortada e lançada ao fogo". 14Aqueles que não
vivem conforme os ensinamentos de Cristo e são cristãos apenas de nome, nós
somos os primeiros a vos pedir que sejam castigados.
Súditos do império
17. 1Quanto a tributos e contribuições, procuramos
pagá-los antes de todos àqueles que estabelecestes para isso em todos os
lugares, assim como fomos ensinados por Cristo. 2Porque naquele
tempo, alguns se aproximaram dele, para perguntar-lhe se se deveria pagar
tributo a César. Ele respondeu: "Dizei-me: que imagem tem a moeda?"
Eles responderam: "A de César." Então ele tornou a responder-lhes:
"Então dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus".
3Portanto, nós somente a Deus adoramos, mas em tudo o mais nós servimos a
vós com gosto, confessando que sois imperadores e governantes dos homens e
rogando que, junto com o poder imperial, também se encontre que tenhais
prudente raciocínio. 4Todavia, se não atendeis às nossas
súplicas, nem esta exposição pública que vos fazemos de todo o nosso modo de
viver, em nada ficaremos prejudicados, pois cremos, ou melhor, estamos
persuadidos de que cada um pagará a pena, conforme mereçam as suas obras, pelo
fogo eterno, e que terá que prestar contas a Deus, segundo as faculdades que
recebeu do próprio Deus, conforme nos indicou Cristo, dizendo: "A quem
Deus deu mais, mais será exigido por Deus?.
A imortalidade da alma
18. 1Vede o fim que tiveram os imperadores que vos
precederam: todos morreram de morte comum. Se a morte terminasse na
inconsciência, seria uma boa sorte para todos os malvados. 2Admitindo,
porém, que a consciência permanece em todos os nascidos, não sejais negligentes
em convencer-vos e crer que essas coisas são verdade. 3De fato,
a necromancia, o exame das entranhas de crianças inocentes, as evocações das
almas humanas e os que são chamados entre os magos de espíritos dos sonhos e
espíritos assistentes, os fenômenos que acontecem sob a ação dos que sabem
essas coisas devem persuadir-vos de que, mesmo depois da morte, as almas
conservam a consciência. 4Do mesmo modo, poderíamos citar os
que são arrebatados e agitados pelas almas dos mortos, aos quais todos chamam
de possessos ou loucos; aqueles que entre vós são chamados de oráculos de
Anfiloco, de Dodona, de Piton e outros semelhantes; 5as
doutrinas de escritores como Empédocles e Pitágoras, Platão e Sócrates, aquela
caverna de Homero, a descida de Ulisses para averiguar essas coisas, e outros
que disseram coisas parecidas. 6Recebei-nos, portanto, pelo menos
de modo semelhante a esses, pois não cremos menos do que eles em Deus e sim
mais do que eles: esperamos recuperar nossos próprios corpos depois de mortos e
enterrados, porque dizemos que para Deus não há nada impossível.
A ressurreição não é impossível
19. 1Para quem reflete, o que pareceria mais incrível do
que se, estando fora do nosso corpo, alguém dissesse que de uma pequena gota do
sêmen humano seria possível nascer ossos, tendões e carnes com a forma em que
os vemos, e víssemos isso em imagem? 2Façamos uma suposição. Se
não fôsseis o que sois e de quem sois e alguém vos mostrasse o sêmen humano e
uma imagem pintada de um homem, afirmando que esta se forma daquele, por acaso
acreditaríeis antes de vê-lo nascido? Ninguém se atreveria a contradizer isso. 3Do
mesmo modo, por nunca ter visto um morto ressuscitar, a incredulidade agora vos
domina. 4Da mesma forma, como no princípio não teríeis crido
que de uma pequena gota nasceriam tais seres e, no entanto, os vêdes nascidos,
assim também considerai que não é impossível que os corpos humanos, depois de
dissolvidos e espalhados como sementes na terra, ressuscitem a seu tempo, por
ordem de Deus e se revistam da incorruptibilidade.
5Na verdade, não saberíamos dizer de qual potência digna de Deus falam
aqueles que afirmam que tudo voltará ao lugar de onde procede e que, fora
disso, ninguém pode nada, nem mesmo Deus. Nós, porém, vemos bem isto: esses
mesmos não teriam acreditado ser possível ter nascido tais e quais eles e o
mundo todo se vêem ter nascido.
6Além disso, aprendemos que é melhor crer naquilo que está acima da nossa
própria natureza e que é impossível aos homens, do que ser incrédulos como o
vulgo. Sabemos que Jesus Cristo, nosso Mestre, disse: "O que é impossível
para os homens, é possível para Deus". 7E disse mais:
"Não temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais podem fazer;
temei antes aquele que, depois da morte, pode lançar alma e corpo no
inferno". 8Deve-se saber que o inferno é o lugar onde
serão castigados os que tiverem vivido iniqüamente e não acreditaram que
acontecerão essas coisas ensinadas por Deus, através de Cristo.
Afinidades pagãs
20. 1Também a Sibila e Histapes disseram que todo o
corruptível deveria ser consumido pelo fogo; 2os filósofos
estóicos têm por dogma que o próprio Deus se dissolverá em fogo e afirmam que
novamente, por transformação, o mundo renascerá. Nós, porém, consideramos Deus,
o criador de todas as coisas, superior a todas as transformações. 3Por
fim, se há coisas que dizemos de maneira semelhante aos poetas e filósofos que
estimais, e outras de modo superior e divinamente, e somos os únicos que
apresentamos demonstração, por que se nos odeiam injustamente mais do que a
todos os outros?4Assim, quando dizemos que tudo foi ordenado e feito
por Deus, parecerá apenas que enunciamos um dogma de Platão; ao falar sobre
conflagração, outro dogma dos estóicos; ao dizer que são castigadas as almas
dos iníquos que, ainda depois da morte, conservarão a consciência, e que as dos
bons, livres de todo castigo, serão felizes, parecerá que falamos como vossos
poetas e filósofos; 5que não se devem adorar obras de mãos
humanas, não é senão repetir o que disseram Menandro, o poeta cômico, e outros
com ele, que afirmaram que o artífice é maior do que aquele que o fabrica.
21. 1Também quando dizemos que o Verbo, primeiro rebento
de Deus, nasceu sem relação carnal, isto é, Jesus Cristo, nosso Mestre, e que
ele foi crucificado, morreu e, depois de ressuscitado, subiu ao céu, não
apresentamos nada de novo se se levam em conta os que chamais de filhos de
Zeus. 2De fato, sabeis bem a quantidade de filhos que os vossos
estimados escritores atribuem a Zeus: Hermes, o Verbo intérprete e mestre de
todos; Asclépio, que foi médico e que, depois de ter sido fulminado, subiu ao
céu; Dioniso, depois que foi esquartejado; Héracles, depois de se atirar ao
fogo para fugir dos trabalhos; os Dióscoros, filhos de Leda, Perseu de Dânae e
Belerofonte, nascido de homens, sobre o cavalo Pégaso. 3Para
que ainda falar de Ariadne e dos que, semelhante a ela, se diz que são
colocados nas estrelas? Passo por alto também vossos imperadores mortos, aos
quais tendes sempre como dignos da imortalidade e nos apresentais algum infeliz
que jura ter visto César incinerado subir da pira ao céu.
4Também não é necessário repetir aqui as ações que se contam de cada um
dos supostos filhos de Zeus, pois vós as conheceis perfeitamente. E suficiente
dizer que isso foi escrito para utilidade e encorajamento dos que se educam,
pois todos consideram belo ser imitadores dos deuses. 5Todavia,
esteja longe de toda alma sensata pensar sobre os deuses, da mesma forma que
sobre que, segundo eles, Zeus é o principal e pai de todos os outros, pensar
que ele tenha sido parricida, nascido de parricida e, vencido pelos baixos e
vergonhosos prazeres do amor, tenha ido até Ganimedes e numerosas mulheres com
as quais se uniu, e aceitar que seus filhos praticassem ações semelhantes. 6A
verdade é que, como já dissemos, foram os demônios malvados que fizeram tais
coisas. Quanto a alcançar a imortalidade, nos foi ensinado que só a alcançam
aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus, assim como cremos que
serão castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e não se
converteram.
Jesus, Filho de Deus
22. 1Quanto ao Filho de Deus, que se chama Jesus, ainda
que parecesse homem de modo comum, por sua sabedoria mereceria chamar-se filho
de Deus, pois todos os escritores chamam o Deus supremo de pai de homens e de
deuses.2Afirmamos que ele, de modo especial e fora do nascimento
comum, como já dissemos, nasceu de Deus como Verbo de Deus, embora isso
coincida com o que afirmais sobre Hermes, a quem chamais de Verbo anunciador ou
mensageiro de Deus. 3Se nos lançam em rosto que ele foi
crucificado, também isso é comum com os antes citados filhos de Zeus, que
admitis terem sofrido. 4Com efeito, conta-se que eles não
sofreram um mesmo gênero de morte, mas diferentes, de modo que nem no fato de
ter sofrido uma paixão particular fica-se atrás em relação a eles. Ao
contrário, prosseguindo o discurso, demonstraremos que lhes é muito superior
ou, melhor dizendo, já está demonstrado, pois aquele que é superior
manifesta-se por suas obras. 5Nós anunciamos que ele nasceu de
uma virgem, mas isso para vós pode ser semelhante a Perseu. 6Por
fim, que ele curasse coxos, paralíticos e enfermos de nascimento e
ressuscitasse dos mortos, também nisso parecerá que dizemos coisas semelhantes
ao que se conta ter feito Asclépio.
I Apologia - Caps 23 a 35
PLANO APOLOGÉTICO
23. 1E para que se torne evidente para vós, vamos
apresentar-vos a prova de que aquilo que dizemos, por tê-lo aprendido de Cristo
e dos profetas que os precederam, é a única verdade e a mais antiga do que
todos os escritores que existiram. Não pedimos que se aceite a nossa doutrina
por coincidir com eles, mas porque dizemos a verdade. 2Demonstraremos
também que Jesus Cristo é propriamente o único Filho nascido de Deus, como seu
Verbo, seu Primogênito e sua Potência. Feito homem pelo seu desígnio, ele nos
ensinou essas verdades para a transformação e condução do gênero humano. 3Por
fim, antes de tornar-se homem entre os homens, houve alguns, digo, os demônios
malvados, antes mencionados, que se adiantaram a dizer, por meio dos poetas,
terem acontecido os mitos que inventaram. De modo que também foram eles que
fizeram as obras vergonhosas e ímpias que disseram contra nós, sem que para
isso haja qualquer testemunha ou demonstração.
Provas
a) Odeiam-se apenas aos cristãos
24. 1A primeira prova é que, quando dizemos tais coisas
aos gregos, somos os únicos a serem odiados pelo nome de Cristo e nos tiram a
vida, sem termos cometido crime algum, como se fôssemos pecadores. E tendes
alguns aqui e outros ali que cultuam árvores, rios, ratos, gatos, crocodilos e
uma multidão de animais irracionais. O interessante é que nem todos cultuam os
mesmos, mas uns são honrados num lugar, outros em outro, de modo que todos são
ímpios entre si, por não ter a mesma religião. 2Esta é a única
coisa que podeis nos recriminar: não veneramos os mesmos deuses que vós e não
oferecemos libações e gorduras aos mortos, não colocamos coroas nos sepulcros,
nem celebramos sacrifícios sobre eles.3No entanto, sabeis
perfeitamente que os mesmos animais, por alguns são considerados deuses, por
outros feras e por outras vítimas para sacrifícios.
b) A transformação por Cristo
25. 1Em segundo lugar, porque homens de toda raça, que
antes cultuávamos a Dioniso, filho de Sêmele, e Apolo, filho de Leto, deuses
que por seus amores perversos fizeram coisas que, por decoro, nem se podem
nomear; os que dentre nós adoravam a Perséfone e Afrodite, que foram
aguilhoados de amor por Adônis e cujos mistérios ainda celebrais, ou Asclépio,
ou algum outro dos chamados deuses, agora, apesar de sermos ameaçados com a
morte, desprezamos a todos eles por amor a Jesus Cristo. 2Consagramo-nos
ao Deus ingênito e alheio a toda paixão. O Deus em quem acreditamos não se
dirigirá, aguilhoado de amor, a uma Antíope, nem a outros do mesmo estilo, nem
a Ganimedes, nem terá que ser desatado, com a ajuda de Tétis, por aquele famoso
centimano, nem de se preocupar para apagar esse favor com Aquiles, filho de
Tétis, e perder uma multidão de gregos em troca da concubina Briseida. 3O
que fazemos é nos compadecer daqueles que praticam tais coisas e sabemos bem
que os responsáveis por eles são os demônios.
c) Os hereges não são perseguidos
26. 1Em terceiro lugar, porque, mesmo depois da ascensão
de Cristo ao céu, os demônios levaram certos homens a dizer que eles eram
deuses e estes não só não foram perseguidos por vós, mas chegastes até a
decretar-lhes honras. 2Dessa forma, certo Simão, samaritano
originário de uma aldeia chamada Giton, tendo feito, no tempo de Cláudio César,
prodígios mágicos, por obra dos demônios que nele agiam em vossa cidade
imperial de Roma, foi considerado deus e como deus foi por vós honrado com uma
estátua, levantada junto ao rio Tibre, entre as duas pontes, com esta inscrição
latina: A SIMÃO, DEUS SANTO. 3E quase todos os samaritanos,
embora pouco numerosos nas outras nações, o adoram, considerando-o como Deus
primordial. Também uma certa Helena, que naquele tempo o acompanhou em suas
peregrinações e que antes estivera no prostíbulo, é chamada de primeiro
pensamento nascido dele. 4Sabemos também que certo Menandro,
igualmente samaritano, natural da aldeia de Carapatéia, discípulo de Simão,
possuído também pelos demônios, apareceu em Antioquia e enganou muitos com suas
artes mágicas, chegando a persuadir seus seguidores de que jamais iriam morrer.
E existem ainda alguns de sua escola que continuam crendo nele. 5Por
fim, um tal Marcião, natural do Ponto, está agora mesmo ensinando seus
seguidores a crer num Deus superior ao Criador e, com a ajuda dos demônios, fez
com que muitos, pertencentes a todo tipo de homens, proferissem blasfêmias e
negassem o Deus Criador do universo, admitindo, em troca, não sabemos que outro
Deus, ao qual, supondo maior, se atribuem obras maiores do que àquele. 6Todos
os que procedem destes, como dissemos, são chamados cristãos, da mesma forma
que aqueles que não participam das mesmas doutrinas entre os filósofos recebem
da filosofia o nome comum com que são conhecidos. 7Ora, se
também eles praticam todas essas vergonhosas obras que se propalam contra nós,
isto é, jogar por terra o castiçal, unirmo-nos promiscuamente e alimentarmo-nos
de carnes humanas, não o sabemos. Todavia, estamos certos de que não são
perseguidos, nem condenados por vós, ao menos por causa de suas doutrinas. 8Além
disso, nós mesmos compusemos uma obra contra todas as heresias que existiram
até o presente. Se quiserdes lê-Ia, nós a colocaremos em vossas mãos.
A pureza da vida cristã
27. 1Nós, por outro lado, a fim de não cometer pecado ou
impiedade, professamos a doutrina de que expor os recém-nascidos é obra de
perversos. Primeiro, porque vemos que quase todos vão acabar na dissolução, não
só as meninas, mas também os meninos. Do mesmo modo como se conta que os
antigos mantinham rebanhos de bois, cabras, ovelhas ou cavalos de pasto, assim
se reúnem agora rebanhos de crianças com a única finalidade de usar torpemente
delas, e toda uma multidão, tanto de mulheres como de andróginos e pervertidos,
está preparada em cada província para semelhante abominação. 2Para
isso recolheis taxas, contribuições e tributos, ao passo que o vosso dever
seria o de arrancá-las pela raiz do vosso império. 3Quando se
abusa de tais seres, além de tratar de uma união própria de pessoas sem Deus,
ímpia e torpe, não faltará quem se una, conforme a circunstância, com um filho,
um parente ou um irmão. 4Há também aqueles que prostituem seus
próprios filhos e mulheres; outros mutilam-se publicamente para a torpeza e
referem esses mistérios à mãe dos deuses. Finalmente, em todos aqueles que
considerais como deuses, a serpente se pinta como símbolo e grande mistério. 5E
aquilo mesmo que vós praticais e honrais publicamente, vós o atribuís a nós,
como se tivéssemos decaído e a luz divina não nos assistisse. Todavia, como
estamos livres por não praticar nada disso, vossas calúnias não nos causam
nenhum dano; ao contrário, danificam aqueles que cometem essas torpezas e ainda
levantam falso testemunho contra nós.
O homem é racional e livre
28. 1Entre nós, o príncipe dos maus demônios se chama
serpente, satanás, diabo ou caluniador, como podeis ver, caso desejardes
averiguar isso, através de nossas Escrituras. Ele e todo o seu exército,
juntamente com os homens que o seguem, será enviado ao fogo para ser castigado
pela eternidade sem fim, coisa que foi de antemão anunciada por Cristo.2Na
verdade, a paciência que Deus mostra em não fazê-lo imediatamente, tem como
causa o seu amor pelo gênero humano, pois ele prevê que alguns se salvarão pela
penitência, entre os quais alguns que talvez ainda não tenham nascido.3No
princípio, ele criou o gênero humano racional, capaz de escolher a verdade e
praticar o bem, de modo que não existe homem que tenha desculpa diante de Deus,
pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade. 4Se
alguém não crê que Deus se preocupe com essas coisas, ou terá que confessar com
sofismas que não existe, ou existindo, se compraza com a maldade ou permaneça
insensível como uma pedra. Virtude e vicio seriam puros nomes e os homens
considerariam as coisas como boas ou más unicamente por sua opinião, o que é a
maior impiedade e iniqüidade.
A castidade cristã
29. 1Também evitamos a exposição das crianças, pois
tememos que algumas delas, não sendo recolhidas, venham a morrer e sejamos réus
de homicídio. Nós, ou nos casamos desde o princípio para a única finalidade de
gerar filhos, ou renunciamos ao matrimônio, permanecendo absolutamente castos. 2Para
vos mostrar que a união promíscua não é um mistério que celebramos, houve o
caso que um dos nossos apresentou um memorial ao prefeito Félix em Alexandria,
pedindo-lhe que autorizasse seu médico para cortar-lhe os testículos, pois os
médicos daquele lugar diziam que tal operação não podia ser feita sem permissão
do governador. 3Félix negou-se absolutamente a assinar o pedido
e o jovem permaneceu solteiro, contentando-se com o testemunho de sua
consciência e o de seus companheiros na fé. 4Cremos que não
estaria fora de lugar recordar aqui Antínoo, que viveu nesses tempos, a quem
todos, por medo, se prostraram para honrar como deus, apesar de saber muito bem
quem ele era e de onde vinha.
A profecia é a prova máxima
30. 1Poderiam nos objetar: "Que inconveniente há em
que esse que nós chamamos Cristo seja um homem que vem de outros homens e que,
por arte mágica, fez os prodígios que dizemos e, por isso, pareceu ser filho de
Deus?? Apresentaremos, pois, a demonstração, não dando fé àqueles que nos
contam os fatos, mas crendo por necessidade naqueles que os profetizaram antes
de acontecer, da forma que os vemos cumpridos ou que estão se cumprindo diante
dos nossos olhos, tal como foram profetizados - demonstração que acreditamos
que parecerá a vós mesmos a mais forte e a mais verdadeira.
A Versão dos Setenta
31. 1Entre os judeus, houve profetas de Deus, através
dos quais o Espírito profético anunciou antecipadamente os acontecimentos
futuros, e os reis, que segundo os tempos se sucederam entre os judeus,
apropriando-se de tais profecias, guardaram-nas cuidadosamente tal como foram
ditas e tal como os próprios profetas as consignaram em seus livros, escritos
em sua própria língua hebraica. 2Quando Ptolomeu, rei do Egito,
se preocupou em formar uma biblioteca e nela reunir os escritos de todo o
mundo, tendo tido notícia dessas profecias, mandou uma embaixada a Herodes, que
então era rei dos judeus, pedindo-lhe que mandasse os livros deles. 3O
rei Herodes mandou os livros, como dissemos, em sua língua hebraica. 4Todavia,
como seu conteúdo não podia ser entendido pelos egípcios, Ptolomeu pediu, por
meio de uma nova embaixada, que Herodes enviasse homens para os verter para a
língua grega . 5Depois disso, os livros permaneceram entre os
egípcios até o presente e os judeus os usam no mundo inteiro. Estes, porém, ao
lê-los, não entendem o que está escrito, mas considerando-nos inimigos e
adversários, matam-nos, como vós o fazeis, e atormentam-nos sempre que podem
fazê-lo, como podeis facilmente verificar. 6Com efeito, na
guerra dos judeus agora terminada, Bar Kókeba, o cabeça da rebelião, mandava
submeter a terríveis torturas somente os cristãos, caso estes não negassem e
blasfemassem Jesus Cristo.
Profecias sobre Jesus
7Nos livros dos profetas já encontramos anunciado que Jesus, nosso
Cristo, deveria vir nascido de uma virgem; que ele chegaria à idade adulta,
curaria toda doença, toda fraqueza e ressuscitaria dos mortos; que seria
invejado, desconhecido e crucificado; que morreria, ressuscitaria e subiria aos
céus; que ele é e se chama Filho de Deus; que ele enviaria alguns para
proclamar essas coisas a todo o gênero humano e seriam os homens das nações
aqueles que mais creriam nele. 8E essas profecias foram feitas
umas cinco, outras três, outras dois mil e outras mil e oitocentos anos antes
que ele aparecesse no mundo. Com efeito, é sabido que os profetas se sucederam
uns aos outros, de geração em geração.
32. 1Moisés, que foi o primeiro dos profetas, disse
literalmente: "Não faltará príncipe de Judá, nem chefe saído de seus
músculos, até que venha aquele a quem está reservado. Ele será a esperança das
nações, amarrando seu jumentinho à vinha e lavando sua roupa no sangue da
uva" . 2Portanto, é vosso dever averiguar com todo o rigor
e inteirar-vos até quando os judeus tiveram príncipe e rei saído deles, até à
aparição de Jesus Cristo, nosso Mestre e intérprete das profecias
desconhecidas, tal como foi de antemão dito pelo Espírito Santo profético, por
meio de Moisés, que não faltaria príncipe dos judeus até aquele para o qual
está reservada a realeza. 3Judá foi o antepassado dos judeus, e
dele os judeus receberam esse nome, e vós, depois da aparição de Cristo,
imperastes sobre os judeus e vos apoderastes de toda a sua terra. 4As
palavras: "Ele será a esperança das nações" queria dizer que gente de
todas as nações esperará novamente a sua vinda, coisa que podeis ver com os
vossos próprios olhos e comprovar na realidade, pois gente de todas as raças de
homens espera aquele que foi crucificado na Judéia, depois de cuja a morte
imediatamente a terra dos judeus foi tomada ao poder de lanças e entregue a
vós. 5A expressão: "Amarrando seu jumentinho à vinha e
lavando sua roupa no sangue da uva" era símbolo do que havia de acontecer
a Cristo e do que seria feito por ele. 6Com efeito, foi assim
que, na entrada de certa aldeia, estava um jumentinho amarrado a uma parreira,
e ele mandou que seus discípulos lho levassem e, depois que o jumentinho foi
levado, montou sobre ele e assim entrou em Jerusalém, onde estava o maior
templo dos judeus, o mesmo que mais tarde foi destruído por vós. Depois da
entrada em Jerusalém, ele foi crucificado, a fim de que se cumprisse o resto da
profecia. 7De fato, a passagem de que lavaria sua roupa no
sangue da uva, era anúncio antecipado de sua paixão, significando que sofreria
para lavar com seu sangue aqueles que acreditariam nele. 8Com
efeito, o que o Espírito divino chama pelo profeta "sua roupa", são
os homens que crêem nele, nos quais habita a semente que procede de Deus, e que
é o Verbo. 9E fala-se também do "sangue da uva", para
dar a entender que aquele que havia de aparecer teria certamente sangue, mas
não de sêmen humano, e sim de virtude divina. 10O Verbo é a
primeira virtude ou potência depois de Deus, Pai e soberano de todas as coisas,
e Filho seu. Como esse se tornou carne e nasceu homem, nós o diremos mais
adiante.11De fato, do mesmo modo que o sangue da uva não é feito
pelo homem, mas por Deus, da mesma forma dava-se a entender nessas palavras que
o sangue de Cristo não procederia de sêmen humano, mas de virtude de Deus, como
já dissemos. 12E Isaías, outro profeta, diz a mesma coisa com
outras palavras: "Levantar-se-á uma estrela de Jacó e uma flor subirá da
raiz de Isaí; e as nações esperaram sobre o seu braço ." Com efeito, uma
estrela brilhante se levantou e uma flor subiu da raiz de Isaí, que é Cristo. 13De
fato, ele foi concebido, com a força de Deus, por uma virgem descendente de
Jacó, que foi pai de Judá, antepassado dos judeus, de quem eu já falei; segundo
o oráculo, Isaí foi o seu avô e Cristo, segundo a sucessão das gerações, é
filho de Jacó e de Judá.
A concepção virginal
33. 1Escutai agora como foi literalmente profetizado por
Isaías que Cristo seria concebido por uma virgem. Ele diz o seguinte: "Eis
que uma virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe porão o nome ?Deus
conosco? ". 2O que os homens poderiam considerar incrível
e impossível de acontecer, Deus o indicou antecipadamente por meio do Espírito
profético, para que quando acontecesse, não lhe fosse negada a fé, e sim,
justamente por ter sido predito, fosse acreditado.3Esclareçamos
agora as palavras da profecia para que, por não entendê-la, objetem o mesmo que
nós dizemos contra os poetas, quando nos falam de Zeus que, para satisfazer sua
paixão libidinosa, uniu-se com diversas mulheres. 4Portanto,
"Eis que uma virgem conceberá" significa que a concepção seria sem
relação carnal, pois, se esta houvesse, ela não mais seria virgem; mas foi a
força de Deus que veio sobre a virgem e a cobriu com a sua sombra e fez com que
ela concebesse permanecendo virgem. 5Foi assim que naquele
tempo, o mensageiro, enviado da parte de Deus à mesma virgem, deu-lhe a boa
notícia, dizendo: "Eis que conceberás do Espírito Santo em teu ventre e
darás à luz um filho, que se chamará Filho do Altíssimo, e lhe porás o nome de
Jesus, pois ele salvará o seu povo de seus pecados" . Assim nos ensinaram
os que consignaram todas as lembranças referentes ao nosso Salvador Jesus
Cristo, e nós lhes demos fé, pois o Espírito Santo profético, como já
indicamos, disse pelo citado Isaías que o geraria. 6Portanto,
por Espírito e força que procede de Deus não é licito entender a não ser o
Verbo, que é o primogênito de Deus, como Moisés, profeta antes mencionado, o
deu a entender. Vindo ele sobre a virgem e cobrindo-a com sua sombra, não por
meio de relação carnal, mas por sua força, fez com que ela concebesse. 7Quanto
a Jesus, é nome da língua hebraica, que significa em grego Sotér, isto é,
Salvador. 8Daí que o mensageiro disse à virgem: "Tu lhe
porás o nome de Jesus, pois ele salvará o seu povo de seus pecados". 9Que
aqueles que profetizam não são inspirados por nenhum outro, mas pelo Verbo
divino, suponho que mesmo vós o admitis.
Lugar de nascimento
34. 1Escutai agora como Miquéias, outro profeta,
predisse o lugar da terra em que ele nasceria. Assim diz: "E tu, Belém,
terra de Judá, de modo algum és a menor entre os príncipes de Judá, pois de ti
sairá o chefe que apascentará o meu povo" .2Sabe-se que há no
país dos judeus uma aldeia que dista de Jerusalém trinta e cinco estádios e que
nela nasceu Jesus Cristo, como podeis comprovar pelas listas do recenseamento,
feitas sob Quirino, que foi o vosso primeiro procurador na Judéia.
Várias profecias
35. 1Também foi predito que Cristo, depois de nascer,
viveria oculto aos outros homens, até à idade adulta. Escutai o que foi dito
antecipadamente a esse respeito. 2É o seguinte: "Um menino
nasceu, um pequenino nos foi dado, cujo império está sobre os ombros" ,
aludindo essas palavras à força da cruz, à qual, ao ser crucificado, juntou os
ombros, como a seqüência do discurso mostrará mais claramente. 3E,
de novo, o mesmo profeta Isaías, inspirado pelo Espírito profético, disse:
"Eu estendi as minhas mãos para um povo que não crê e contradiz, aos que
andam por um caminho que não é bom. 4E agora me vêm pedir
julgamento e têm a ousadia de aproximar-se de Deus" . 5E
outra vez, por meio de outro profeta, diz com outras palavras: "Eles
transpassaram meus pés e minhas mãos, e lançaram sorte sobre a minha
roupa" . 6Na verdade, Davi, rei e profeta, que disse isso,
não sofreu nada disso, mas Jesus Cristo estendeu as suas mãos quando foi
crucificado pelos judeus que o contradiziam e falavam que ele não era o
Messias. Com efeito, como disse o profeta, levaram-no arrastando e, fazendo-o
sentar-se numa cadeira de juiz, disseram-lhe: "julga-nos". 7"Transpassaram
as minhas mãos e os meus pés" significava os cravos que na cruz
transpassaram seus pés e mãos. 8E depois de crucificá-lo,
aqueles que o crucificaram lançaram sorte sobre as suas roupas e as repartiram
entre si. 9Que tudo isso aconteceu assim, podeis comprová-lo
pelas Atas redigidas no tempo de Pôncio Pilatos. 10Citamos
também a profecia de outro profeta, Sofonias, que literalmente profetizou que
ele montaria sobre um jumentinho e desse modo entraria em Jerusalém. 11São
estas as suas palavras: "Alegra-te muito, filha de Sião; dá gritos, filha
de Jerusalém. Eis que o teu rei vem a ti manso, montado sobre um jumento, sobre
um jumentinho, filho de um animal de jugo" .
I Apologia - Caps 36 a 48
Regras de interpretação
36. 1Percebamos que quando ouvis que os profetas falam
como em própria pessoa, não deveis pensar que assim falam os próprios homens
inspirados, mas é o Verbo divino que os move. 2Algumas vezes
ele fala como que anunciando de antemão o que vai acontecer, outras como se
estivesse no lugar de Deus, Soberano e Pai do universo, outras na pessoa de
Cristo, e outras ainda, das pessoas que respondem ao seu Pai e Senhor. Algo
semelhante acontece com vossos próprios escritores, em que um é aquele que
escreveu tudo, mas são várias as pessoas que entram no diálogo. 3Não
entendendo isso, os judeus, que são aqueles que possuem os livros dos profetas,
não só não reconheceram a Cristo já vindo, mas também odeiam a nós, que dizemos
que ele de fato veio, e mostramos que, como fora profetizado, foi por eles
crucificado.
37. 1Para que também isso fique claro para vós, eis aqui
algumas palavras que foram ditas pelo profeta Isaías, antes mencionado, na
pessoa do Pai: "O boi conhece o seu dono e o jumento a manjedoura de seu
senhor; mas Israel não me conheceu e o meu povo não me entendeu. 2Ai
da nação pecadora, do povo cheio de pecados; descendência má, filhos iníquos:
abandonastes o Senhor" . 3De novo, em outra passagem em
que o mesmo profeta fala igualmente na pessoa do Pai: "Que casa me
edificareis? - diz o Senhor. 4O céu é o meu trono, e a terra o
escabelo dos meus pés" . 5E outra vez, em outra passagem:
"As vossas luas novas e os vossos sábados, a minha alma os detesta; o
vosso dia de grande jejum e a vossa ociosidade, eu não os suporto. Nem mesmo
quando vos apresentais diante de mim eu vos escutarei. 6Vossas
mãos estão cheias de sangue. 7Até quando me trazeis flor de
farinha ou incenso, isso é abominação para mim; não quero a gordura de
carneiros ou sangue de novilhos. 8Com efeito, quem pediu essas
coisas de vossas mãos? Desata antes toda atadura de injustiça, rompe as cordas
dos contratos injustos, cobre aquele que está nu e aquele que não tem teto,
reparte o teu pão com o faminto" . 9Portanto, com essas
passagens podeis entender que tais são os ensinamentos que os profetas dão na
pessoa de Deus.
38. 1Quando o Espírito profético fala na pessoa de
Cristo, ele se expressa assim: "Eu estendi as minhas mãos a um povo que
não crê e contradiz, aos que andam por um caminho que não é bom" . 2E,
novamente: "Entreguei minhas costas aos açoites e minhas faces às
bofetadas, e não afastei o meu rosto da vergonha das cuspidas. 3E
o Senhor se tornou o meu auxílio; por isso eu não fui confundido, mas
transformei o meu rosto em rocha dura, e soube que não seria confundido, pois
está perto aquele que me justifica" . 4E o mesmo quando
diz: "Eles lançaram sorte sobre as minhas roupas, e transpassaram as
minhas mãos e os meus pés; 5mas eu adormeci e me entreguei ao sono e
ressuscitei, porque o Senhor me protegeu" . 6E outra vez
quando diz: "Cochichavam com os seus lábios e balançaram a cabeça,
dizendo: Salve-se a si mesmo . 7Podeis comprovar que tudo isso
cumpriu-se através dos judeus em Cristo. 8Com efeito, estando
já na cruz, eles retorciam os lábios e balançavam a cabeça, dizendo: "Quem
ressuscitou mortos livre-se a si mesmo".
Profecia cumprida
39. 1Quando o Espírito profético fala, profetizando
sobre o futuro, ele diz assim: "Porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém
a palavra do Senhor de Jerusalém; ele julgará no meio das nações e argüirá um
povo numeroso. Quebrarão suas espadas e farão arados, e transformarão suas
lanças em foices; uma nação não pegará a espada contra outra nação, nem saberão
mais o que é a guerra" . 2Que assim tenha acontecido,
podeis comprová-lo. 3Com efeito, de Jerusalém saíram doze
homens pelo mundo, e estes ignorantes e incapazes de eloqüência; todavia, pela
força de Deus, persuadiram todo o gênero humano de que haviam sido enviados por
Cristo para ensinar a todos a palavra de Deus. Nós, que antes nos matávamos
mutuamente, agora não só não fazemos guerra contra os nossos inimigos, mas
também, por não mentir nem enganar os juízes que nos interrogam, morremos
felizes de confessar a Cristo. 4Pudéssemos nós aplicar ao nosso
caso o dito: "A língua jurou, mas a alma não jurou". 5Seria
ridículo que os soldados que se contratam convosco e se alistam em vossas
bandeiras pusessem a lealdade para convosco acima de sua própria vida, acima
dos pais, pátria e tudo o que lhes pertence, embora nada de imperecível lhes
pudésseis oferecer, e nós, que amamos a incorrupção, não suportemos tudo a troco
de receber o que esperamos daquele que tem poder para no-lo dar.
Profecia sobre os apóstolos
40. 1Escutai agora o que foi predito sobre os que
pregaram a sua doutrina e anunciaram a sua vinda. O já mencionado profeta e rei
diz assim por obra do Espírito profético: "O dia transmite a palavra a
outro dia, e a noite anuncia o conhecimento a outra noite. 2Não
há discursos nem palavras, cuja voz não se ouça. 3Sobre toda a
terra se espalhou o som deles, e até aos confins do orbe da terra chegaram as
suas palavras. 4No sol colocou a sua tenda, e este, como esposo
que sai do seu quarto, se regozijará como gigante para percorrer o seu caminho
" . 5Além disso, acreditamos ser oportuno e apropriado ao
nosso intento mencionar outras palavras profetizadas pelo mesmo Davi, através
das quais podeis inteirar-vos de como o Espírito profético exorta os homens a
viver 6e como mostra a conspiração que Herodes, rei dos judeus,
os próprios judeus, Pilatos, que foi vosso procurador na Judéia, e seus
soldados tramaram juntos contra Cristo.
7Notai também como se profetiza que pessoa de toda raça de homens
deveriam crer nele, que Deus o chama de seu Filho e promete submeter-lhe todos
os seus inimigos; ainda como os demônios, enquanto podem, procuram escapar do
poder de Deus Pai e soberano de tudo e de Cristo; por fim, como Deus chama
todos à penitência antes de chegar o dia do julgamento. 8As
profecias dizem o seguinte: "Bem-aventurado o homem que não anda no
desígnio dos ímpios, não pára no caminho dos pecadores, nem se assenta no
assento da perdição, mas se compraz na lei do Senhor e que dia e noite medita
em sua lei. 9Será como árvore plantada junto às correntes das
águas, que dará seu fruto no devido tempo e suas folhas não cairão, e em tudo o
que fizer será bem sucedido. 10Não assim os ímpios, não assim,
mas como o pó que o vento espalha sobre a face da terra. Por isso, os ímpios
não se levantarão no dia do julgamento, nem os pecadores no conselho dos
justos. De fato, o Senhor conhece o caminho dos justos e o caminho dos ímpios
perecerá. 11Por que as nações fremiram e os povos meditaram
novidades? Os reis da terra apresentaram-se e os príncipes se juntaram contra o
Senhor e contra o seu Ungido, dizendo: ?Rompamos suas amarras e arranquemos de
nós o seu jugo'. 12Aquele que habita nos céus rir-se-á deles, e
o Senhor os fará objeto de sua zombaria. Então, falar-lhes-á com ira e com sua
indignação os perturbará. 13Eu, porém, fui constituído por ele
como rei sobre Sião, seu monte santo, para anunciar o seu decreto. 14O
Senhor me disse: Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei. 15Pede-me
e te darei as nações como tua herança e os confins da terra como tua
propriedade. Apascenta-los-ás com cetro de ferro, como vaso de oleiro as farás
em pedaços. 16E agora, reis, entendei; instruí-vos, vós que
julgais a terra. 17Servi ao Senhor no temor, e no tremor
regozijai-vos nele. 18Aprendei a disciplina; não aconteça que,
em certo momento, o Senhor se irrite e pereçais saindo do caminho justo, quando
de repente sua ira se acender. 19Felizes todos os que nele
confiam."
Profecia sobre o Reino de Cristo
41. 1Em outra profecia, o Espírito profético, dando a
entender, através de Davi, que Cristo haveria de reinar depois de crucificado,
diz assim: ?Louvai o Senhor, terra inteira, e anunciai dia a dia a sua
salvação, porque o Senhor é grande e digno do maior louvor, temível sobre todos
os deuses. Com efeito, todos os deuses das nações são imagens de demônios, mas
Deus fez os céus. 2Glória e louvor em sua presença, força e
orgulho no lugar de sua santificação. Glorificai ao Senhor, aquele que é Pai
dos séculos. 3Tomai graça e entrai em sua presença, adorando-o
em seus santos átrios. Toda a terra tema diante de sua face, endireite seu
caminho e não se perturbe. 4Que as nações se alegrem: o Senhor
reinou pelo madeiro".
Cristo, nossa alegria
42. 1Esclarecemos também o caso no qual o Espírito
profético fala do futuro como já realizado, como já se pode conjecturar na
passagem antes mencionada, a fim de que também nisso os que lêem não tenham
desculpa. 2O que é absolutamente conhecido como algo que
acontecerá, é predito pelo Espírito profético como já conhecido. Que as coisas
devam ser assim, ponde toda atenção de vossa mente ao que vamos dizer. 3Davi
fez a profecia citada, mil e quinhentos anos antes que Cristo feito homem fosse
crucificado, e nenhum dos antes nascidos ofereceu, ao ser crucificado, alegria
para as nações, e ninguém também depois dele. 4Em troca,
Cristo, que foi crucificado, morreu e ressuscitou em nosso tempo, não só reinou
ao subir ao céu, mas pela sua doutrina, pregada pelos apóstolos em todas as
nações, é a alegria de todos os que esperam a imortalidade que ele nos
prometeu.
Profecia e livre-arbítrio
43. 1Do que dissemos anteriormente, ninguém deve tirar a
conclusão de que afirmamos que tudo o que acontece, acontece por necessidade do
destino, pelo fato de que dizemos que os acontecimentos foram conhecidos de
ante-mão. Por isso, resolveremos também essa dificuldade. 2Nós
aprendemos dos profetas e afirmamos que esta é a verdade: os castigos e
tormentos, assim como as boas recompensas, são dadas a cada um conforme as suas
obras. Se não fosse assim, mas tudo acontecesse por destino, não haveria
absolutamente livre-arbítrio. Com efeito, se já está determinado que um seja
bom e outro mau, nem aquele merece elogio, nem este, vitupério. 3Se
o gênero humano não tem poder de fugir, por livre determinação, do que é
vergonhoso e escolher o belo, ele não é irresponsável de nenhuma ação que faça. 4Mas
que o homem é virtuoso e peca por livre escolha, podemos demonstrar pelo
seguinte argumento: 5Vemos que o mesmo sujeito passa de um
contrário a outro. 6Ora, se estivesse determinado ser mau ou
bom, não seria capaz de coisas contrárias, nem mudaria com tanta freqüência. Na
realidade, nem se poderia dizer que uns são bons e outros maus, desde o momento
que afirmamos que o destino é a causa de bons e maus, e que realiza coisas
contrárias a si mesmo, ou que se deveria tomar como verdade o que já
anteriormente insinuamos, isto é, que virtude e maldade são puras palavras, e
que só por opinião se tem algo como bom ou mau. Isso, como demonstra a
verdadeira razão, é o cúmulo da impiedade e da iniqüidade.7Afirmamos
ser destino ineludível que aqueles que escolheram o bem terão digna recompensa
e os que escolheram o contrário, terão igualmente digno castigo. 8Com
efeito, Deus não fez o homem como as outras criaturas. Por exemplo: árvores ou
quadrúpedes, que nada podem fazer por livre determinação. Nesse caso, não seria
digno de recompensa e elogio, pois não teria escolhido o bem por si mesmo, mas
nascido já bom; nem, por ter sido mau, seria castigado justamente, pois não o
seria livremente, mas por não ter podido ser algo diferente do que foi.
Platão depende de Moisés
44. 1Esta doutrina foi ensinada a nós pelo Espírito
profético que, por meio de Moisés, nos testemunha que falou ao primeiro homem
que havia criado do seguinte modo: ?Olha que diante de tua face está o bem e o
mal: escolhe o bem? . 2E, de novo, através de Isaías, outro
profeta, sabemos que, na pessoa de Deus, Pai e soberano do universo, foi dito o
seguinte sobre esse mesmo assunto: 3"Lavai-vos e
purificai-vos, tirai a maldade de vossas almas. Aprendei a fazer o bem, julgai
o órfão, fazei justiça à viúva; então, vinde e conversaremos, diz o Senhor.
Mesmo que vossos pecados sejam como a púrpura, eu os deixarei brancos como a
lã; mesmo que sejam como escarlate, e os tornarei brancos como a neve. 4Se
quiserdes e me escutardes, comereis os bens da terra; mas se não me escutardes,
a espada vos devorará, porque assim falou a boca do Senhor" . 5A
expressão anterior "A espada vos devorará" não quer dizer que os que
desobedecerem serão passados a fio de espada, mas por "espada"
deve-se entender o fogo, cuja presa são os que escolheram praticar o mal. 6Por
isso, diz: "A espada vos devorará, porque assim falou a boca do
Senhor." 7Se tivesse falado da espada que corta e se
separa imediatamente, não teria dito "devorará". 8De
modo que o próprio Platão, ao dizer: "A culpa é de quem escolhe. Deus não
tem culpa", falou isso por tê-lo tomado do profeta Moisés, pois sabe-se
que este é mais antigo do que todos os escritores gregos. 9Em
geral, tudo o que os filósofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e
da contemplação das coisas celestes, aproveitaram-se dos profetas, não só para
poder entender, mas também para expressar isso. 10Daí que
parece haver em todos algo como germes de verdade. Todavia, demonstra-se que
não o entenderam exatamente, pelo fato de que se contradizem uns aos outros. 11Concluindo:
Se dizemos que os acontecimentos futuros foram profetizados, nem por isso
afirmamos que aconteçam por necessidade do destino; afirmamos sim que Deus
conhece de antemão tudo o que será feito por todos os homens e é decreto seu
recompensar cada um segundo o mérito de suas obras e, por isso, justamente
prediz, por meio do Espírito profético, o que para cada um virá da parte dele,
conforme o que suas obras mereçam. Com isso, ele constantemente conduz o gênero
humano à reflexão e à lembrança, demonstrando-lhe que cuida e usa de
providência para com os homens.
12Todavia, pela ação dos maus demônios, decretou-se pena de morte contra
aqueles que lerem os livros de Histaspes, da Sibila e dos profetas, a fim de
impedir, por meio do terror, que os homens consigam, lendo-os, o conhecimento
do bem, e retê-los como seus escravos; coisa que definitivamente os demônios
não puderam conseguir. 13Com efeito, não só os lemos
intrepidamente, mas também, como vedes, nós vô-los oferecemos, para que os
examineis, pois estamos seguros de que agradarão a todos. Mesmo que consigamos
persuadir algumas poucas pessoas, nosso ganho será muito grande, pois, como
bons agricultores, receberemos do amo a nossa recompensa.
Ascensão e glória de Jesus
45. 1Agora escutai o que disse o profeta Davi sobre o
fato de que Deus, Pai do universo, levaria Cristo ao céu, depois de sua
ressurreição dos mortos, e retê-lo-ia consigo até ferir os demônios, seus
inimigos, e até se completar o número dos que por ele, de antemão conhecidos
como bons e virtuosos, em respeito dos quais justamente ainda não foi levada a
cabo a conflagração universal. 2As palavras do profeta são
estas: "Disse o Senhor ao meu Senhor: Senta-te à minha direita, até que eu
ponha os teus inimigos como escabelo de teus pés. 3O Senhor te
enviará o cetro de poder de Jerusalém, e tu dominarás em meio aos esplendores
de teus inimigos. 4Contigo o império no dia de tua potência, em
meio aos esplendores de teus santos. Do meu seio, antes do astro da manhã, eu
te gerei? . 5Portanto, o que ele diz "Enviar-te-á de
Jerusalém o cetro de poder" era anúncio antecipado da palavra poderosa
que, saindo de Jerusalém, os apóstolos pregaram por toda parte e que nós, a
despeito da morte decretada dos que ensinam ou absolutamente confessam o nome
de Cristo, em todo lugar também a abraçamos e ensinamos. 6E se
também vós ledes como inimigos estas nossas palavras, além de matar-nos, como
já dissemos antes, nada podeis fazer. A nós, isso nenhum dano causará; a vós,
porém, e a todos os que injustamente nos odeiam e não se convertem,
trazer-vos-á castigo de fogo eterno.
Cristãos antes de Cristo
46. 1Alguns, sem motivo, para rejeitar o nosso
ensinamento, poderiam nos objetar que, ao dizermos que Cristo nasceu somente há
cento e cinqüenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde, no tempo
de Pôncio Pilatos, os homens que o precederam não têm nenhuma responsabilidade.
Tratemos de resolver essa dificuldade. 2Nós recebemos o
ensinamento de que Cristo é o primogênito de Deus e indicamos antes que ele é o
Verbo, do qual todo o gênero humano participou. 3Portanto,
aqueles que viveram conforme o Verbo são cristãos, quando do foram considerados
ateus, como sucedeu entre os gregos com Sócrates, Heráclito e outros
semelhantes; e entre os bárbaros com Abraão, Ananias, Azarias e Misael, e
muitos outros, cujos fatos e nomes omitimos agora, pois seria longo enumerar. 4De
modo que também os que antes viveram sem razão, se tornaram inúteis e inimigos
de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razão; mas os que viveram e
continuam vivendo de acordo com ela, são cristãos e não experimentam medo ou
perturbação. 5O motivo pelo qual ele nasceu homem de uma
virgem, pela virtude do Verbo conforme o desígnio de Deus, Pai e soberano do
universo, e foi chamado Jesus e, depois de crucificado e morto, ressuscitou e
subiu ao céu, o leitor inteligente poderá perfeitamente compreendê-lo pelas
longas explicações que foram dadas até aqui. 6De nossa parte,
como não é necessário demonstrar esse ponto agora, passaremos às demonstrações
mais urgentes.
Sobre a ruína de Jerusalém
47. 1Escutai o que foi predito pelo Espírito profético
sobre á devastação futura da terra dos judeus. As palavras foram ditas como que
na pessoa daqueles que se maravilham com o acontecido. 2São as
seguintes: "Sião ficou deserta, Jerusalém ficou solitária, e a casa, nosso
santuário, foi profanada; a glória que nossos pais bendisseram tornou-se presa
do fogo e todas as suas maravilhas se fundiram. 3A esse
respeito, tu suportaste, te calaste e nos humilhaste muito" . 4Que
Jerusalém tenha ficado deserta, tal como fora predito, é coisa de que estais
bem convencidos. 5E não só se predisse a sua devastação, mas
também, pelo profeta Isaías, que a nenhum deles seria permitido habitar nela,
com estas palavras: "A terra deles está deserta, e os próprios inimigos a
devoram diante deles; e deles não haverá ninguém que nela se encontrasse e
decretastes pena de morte contra o judeu que nela habite" . Que vós mesmos
montastes guarda para que ninguém nela fosse encontrado, é coisa que sabeis
perfeitamente.
Os milagres de Cristo
48. 1Que nosso Cristo curaria todas as enfermidades e
ressuscitaria mortos, escutai as palavras com que isso foi profetizado. 2São
estas: "Diante dele, o coxo saltará como cervo e a língua dos mudos se
soltará, os cegos recobrarão a vista, os leprosos ficarão limpos e os mortos
ressuscitarão e começarão a andar". 3Que tudo isso foi
feito por Cristo, vós o podeis comprovar pelas Atas redigidas no tempo de
Pôncio Pilatos. 4Sobre como foi de antemão indicado que ele
haveria de ser morto, juntamente com os homens que nele esperam, escutai as
palavras do profeta Isaías: 5"Eis como pereceu o justo, e
ninguém reflete em seu coração; varões justos são tirados do meio, e ninguém considera.
O justo é tirado da vista da iniqüidade, e ficará em paz: seu sepulcro é tirado
do meio".
A gentilidade
49. 1Novamente olhai o que o profeta Isaías diz: os
povos das nações que não o esperavam, iriam adorá-lo; ao contrário, os judeus
que o esperavam, o desconheceram quando ele veio. As palavras são ditas na
pessoa de Cristo.
2Ei-las: "Manifestei-me aos que não perguntavam por mim, fui
encontrado por aqueles que não me buscavam. Eu disse: ?Eis-me aqui' a uma nação
que não invocava o meu nome. 3Estendi minhas mãos a um povo que
não crê e contradiz, aos que andam por caminho não bom, mas atrás de seus
pecados. 4O povo que me exaspera está diante de mim" . 5Foi
assim que os judeus, que possuíam as profecias e esperavam continuamente
Cristo, quando este veio não o reconheceram; e não apenas isso, pois inclusive
o maltrataram. Ao contrário, os gentios, que nunca tinham ouvido falar dele até
que os apóstolos, tendo saído de Jerusalém, lhes contaram sua vida e lhes
entregaram as profecias, cheios de alegria e de fé, renunciaram aos ídolos e se
consagraram ao Deus ingênito, por meio de Cristo. 6Que de
antemão foram conhecidas essas ignomínias que se propagariam contra os que
confessam a Cristo e como são miseráveis aqueles que o blasfemam, dizendo que é
bom preservar os antigos costumes, escutai como o profeta Isaías o diz
brevemente. 7São suas as palavras: "Ai daqueles que chamam
amargo ao doce e doce, ao amargo!".
A paixão e glória de Cristo
50. 1Escutai agora as profecias relativas à paixão e
desonras que, feito homem, ele sofreria por nós, e a glória com que voltará. 2São
estas: "Porque entregaram sua alma à morte e foi contado entre os iníquos,
ele tomou os pecados de muitos e se reconciliará com os iníquos . 3Eis
que meu servo entenderá, será levantado e glorificado muito. 4Do
mesmo modo como muitos ficarão atônitos à tua vista - tão desonrada está a tua
figura dos homens e tua glória tão longe dos homens - assim muitas nações
ficarão maravilhadas e reis permanecerão silenciosos, porque aqueles para os
quais não foi anunciado verão, e os que não ouviram, entenderão. 5Senhor
quem creu naquilo que ouviu de nós? Para quem foi revelado o braço do Senhor?
Anunciamos diante dele como menino, como raiz em terra sedenta. 6Ele
não tem beleza nem glória; nós o vimos e não tinha beleza nem formosura, mas o
seu aspecto estava desonrado e debilitado em comparação com os homens.7Homem
sujeito ao açoite e que sabe suportar a enfermidade, seu rosto está escondido,
foi desonrado e desprezado. 8Leva sobre si nossos pecados e
padece por nós, e nós consideramos que ele estava em fadiga, em açoite e
desgraça. 9Ele foi ferido por causa de nossas iniqüidades e
debilitado por causa de nossos pecados. A disciplina da paz estava sobre ele,
fomos curados
por sua chaga. 10Todos nós andávamos errantes como
ovelhas, cada um se desviou pelo próprio caminho. Entregou-se por nossos
pecados e, ao ser maltratado, não abre a boca. Foi levado como ovelha ao
matadouro; como cordeiro que fica mudo diante daquele que o tosquia, ele também
não abre a boca. 11Em sua humilhação, o seu julgamento foi
tirado".
12Depois de ser crucificado, até seus discípulos o abandonaram e negaram.
Depois, porém, quando ressuscitou dentre os mortos e foi visto por eles, depois
que lhes ensinou a ler as profecias nas quais estava predito que isso deveria
acontecer, e o viram subir ao céu e creram, depois que receberam a força que de
lá lhes foi enviada por ele, espalharam-se entre todo tipo de homens, ensinaram-lhes
todas essas coisas e foram chamados apóstolos.
51. 1OEspírito profético, afim de fazer-nos entender que
quem padece essas coisas é de origem inexplicável e reina sobre seus inimigos,
assim disse: "Quem explicará a sua geração? De fato, sua vida é arrebatada
da terra, pelas iniqüidades deles caminha para a morte. 2Em
lugar de sua sepultura darei os mares e por sua morte os rios, porque ele não
cometeu iniqüidade e nem se achou engano em sua boca e o Senhor quer
purificá-lo do açoite. 3Se oferecerdes pelo pecado, vossa alma
verá descendência duradoura. 4O Senhor quer afastar a alma dele
da fadiga, mostrar-lhe luz, formá-lo na inteligência, justificar o justo que
serviu bem a muitos, e ele mesmo carregará os nossos pecados. 5Por
isso, herdará a muitos e repartirá os despojos dos fortes, porque sua alma foi
entregue à morte e por ter sido contado entre os iníquos, por ter carregado os
pecados e ter-se entregue pelas iniqüidades deles".
6Escutai como foi profetizado que ele deveria subir ao céu. 7Diz
o seguinte: "Levantai as portas dos céus; abrivos, portas, para que entre
o rei da glória. Quem é esse rei da glória? O Senhor forte e o Senhor
poderoso". 8Que ele também há de vir dos céus com glória,
escutai o que sobre isso foi dito pelo profeta Jeremias. 9Ele
diz assim: "Eis como um filho de homem vem sobre as nuvens do céu, e seus
anjos com ele."
A dupla vinda de Cristo
52. 1Como demonstramos que tudo o que aconteceu até
agora foi previamente anunciado pelos profetas, agora, como em tudo, é
necessário também que creiamos no que foi igualmente profetizado, mas que ainda
vai acontecer. 2Com efeito, do mesmo modo que o acontecido,
antecipadamente anunciado, por mais que não tivesse sido compreendido,
aconteceu; assim também o que ainda falta para ser cumprido, acontecerá, por
mais que não se compreenda nem se creia.
3Assim é que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo: uma, já
cumprida, como homem desonrado e passível; a segunda, quando virá dos céus
acompanhado de seu exército de anjos, quando ressuscitará também os corpos de
todos os homens que existiram; revestirá de incorruptibilidade os que forem
dignos, e enviará os iníquos, com percepção eterna, ao fogo eterno, junto com
os perversos demônios. 4Vamos mostrar como foi profetizado que
isso deverá acontecer. 5Foi o profeta Ezequiel quem disse
assim: "Unir-se-á juntura com juntura, osso com osso, e as carnes voltarão
a brotar. 6E todo joelho se dobrará diante do Senhor e toda
língua o confessará". 7Escutai o que foi dito sobre a
percepção e o tormento em que se encontrarão os injustos. 8É o
seguinte: "Seu verme não descansará e seu fogo não se extinguirá" . 9Então
eles se arrependerão, quando de nada mais lhes valerá. 10Sobre
o que dirão e farão os povos dos judeus, quando o virem vir em glória, o
profeta Zacarias disse esta profecia: "Mandarei que os quatro ventos
reúnam meus filhos dispersos, ordenarei ao vento norte que os traga e ao vento
sul que não se oponha. 11Então haverá grande choro em
Jerusalém, não pranto de bocas e lábios, mas pranto de coração; não rasgarão
suas roupas, mas suas almas. 12Cada tribo baterá no peito,
olharão aquele que transpassaram e dirão: Por que, Senhor, nos desviaste de teu
caminho? A glória que nossos pais bendisseram converteu-se em opróbrio para
nós."
Profecia sobre a gentilidade
53. 1Poderíamos mostrar muitas outras profecias.
Entretanto, terminamos essa prova por aqui, considerando que as citadas são
suficientes para convencer aqueles que têm ouvidos para ouvir e entender, e
podem assim precaver-se que não somos como os que inventam suas fábulas sobre
os supostos filhos de Zeus, que nos contentamos apenas com afirmar, sem termos
provas para alegar. 2De fato, por que motivo haveríamos de crer
que um homem crucificado é o primogênito do Deus ingênito e que julgará todo o
gênero humano, se não encontrássemos testemunhos sobre ele, publicados antes de
ele ter nascido como homem e não os víssemos literalmente cumpridos: 3a
devastação da terra dos judeus, homens de todas as raças que crêem através do
ensinamento dos apóstolos e recusam seus antigos costumes em cujos erros se
criaram e ainda ao vermos que nós mesmos, procedentes das nações, somos mais
numerosos e mais sinceros cristãos do que os judeus e os samaritanos? 4Deve-se
saber que o restante de todas as raças humanas são chamadas de nações pelo
Espírito profético; a casta dos judeus e samaritanos, porém, chama-se Israel e
Casa de Jacó. 5Citarei para vós a profecia que prediz que os
crentes serão em maior número entre aqueles que procedem da gentilidade do que
entre os judeus e samaritanos. Diz assim: "Alegra-te, estéril, tu que não
concebes; rompe e grita de júbilo, tu que não sofres dores de parto, porque são
mais numerosos os filhos da abandonada do que daquela que tem marido" . 6De
fato, todas as nações que cultuavam obras manufaturadas estavam abandonadas
pelo verdadeiro Deus; mas os judeus e samaritanos, que tinham a palavra de Deus
transmitida pelos profetas e estavam constantemente esperando Cristo, vindo
este, o desconheceram, exceto alguns poucos, dos quais o Espírito profético
havia predito, através de Isaías, que se salvariam. 7Disse
pessoalmente sobre eles mesmos: "Se o Senhor não nos tivesse deixado
semente, nos teríamos tornado como Sodoma e Gomorra" . 8Moisés
conta que Sodoma e Gomorra foram cidades de homens ímpios que Deus destruiu,
queimando-as com fogo e enxofre, sem que nelas alguém se salvasse, a não ser um
estrangeiro, de origem caldéia, chamado Ló, juntamente com suas filhas. 9Ainda
hoje, quem quiser, pode ver toda essa terra que continua deserta, calcinada e
estéril.
10Que os cristãos da gentilidade seriam mais sinceros e fiéis, 11eis
o que disse o profeta Isaías: "Israel é incircunciso de coração, as nações
o são de prepúcio" . 12A contemplação de tantos fatos pode
bem levar razoavelmente à persuasão e à fé os que amam a verdade, que não
seguem a opinião, nem se deixam dominar por suas paixões.
As fábulas pagãs
54. 1Ao contrário, os que ensinam os mitos inventados
pelos poetas não podem oferecer nenhuma prova aos jovens que os aprendem de
cor. E nós demonstramos que foram ditos por obra dos demônios perversos, para
enganar e extraviar o gênero humano. 2Com efeito, ouvindo os
profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens ímpios seriam castigados
através do fogo, colocaram na frente muitos que se disseram filhos de Zeus,
crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito
de Cristo como um conto de fada, semelhante aos contados pelos poetas. 3Tudo
se propagou principalmente entre os gregos e outras nações, onde mais os
demônios tinham ouvido, pelo anúncio dos profetas, que se deveria crerem
Cristo. 4Nós colocaremos às claras que, embora ouvindo o que
dizem os profetas, não o entenderam exatamente, mas parodiaram como charlatães
aquilo que se refere a Cristo. 5Como já dissemos, o profeta
Moisés é mais antigo do que todos os escritores e por ele, como já indicamos,
foi feita esta profecia: "Não faltará príncipe de Judá, nem chefe de seus
músculos, até que venha aquele a quem está reservado, e ele será a esperança
das nações, amarrando seu jumentinho na sua videira e lavando sua roupa no
sangue da uva". 6ouvindo essas palavras proféticas, os
demônios disseram que Dioniso tinha sido filho de Zeus, ensinaram que ele tinha
inventado a vinha, introduziram o asno em seus mistérios e propagaram que ele,
depois de ter sido esquartejado, subiu ao céu. 7Acontece,
porém, que na profecia de Moisés não aparecia com clareza se aquele que devia
nascer seria Filho de Deus, nem se aquele que deveria montar o jumentinho
permaneceria na terra ou subiria ao céu. Por outro lado, o nome de jumentinho,
originariamente pode tanto significar a cria do asno como do cavalo. Assim, não
sabendo se a profecia deveria ser tomada como símbolo de sua vinda montado num
jumentinho de asno ou num potro de cavalo, nem se seria filho de Deus, como
dissemos, ou de homem, os demônios inventaram que, Belerofonte, homem nascido
de homens, subiu ao céu montado no cavalo Pégaso. 8Como também
ouviram por outro profeta, Isaías, que haveria de nascer de uma virgem e que
por sua própria virtude subiria ao céu, adiantaram-se com a lenda de Perseu. 9Pela
mesma razão, conhecendo o que fora dito dele nas profecias anteriormente
citadas: "Forte como um gigante para percorrer seu caminho",
inventaram um Hércules forte, que andava peregrinando por toda a terra. 10Por
fim, ao inteirarem-se que estava profetizado que ele curaria todas as
enfermidades e ressuscitaria mortos, nos trouxeram a fábula de Asclépio.
A cruz desconhecida pelos demônios
55. 1Todavia, em nenhum lugar e em nenhum dos supostos
filhos de Zeus arremedaram a crucifixão, por não tê-la entendido, pois,
conforme dissemos antes, tudo o que se refere à cruz foi dito de forma
simbólica. 2Ela é justamente, como predisse o profeta, o maior
símbolo de sua força e de seu império, como se manifesta ainda pelas mesmas
coisas que caem sob os nossos olhos.
Com efeito, considerai se tudo o que existe no mundo pode ser
administrado ou ter comunicação entre si sem essa figura.3De fato,
não é possível sulcar o mar se esse troféu de vitória, que aqui se chama vela,
não se mantém de pé no navio; sem ela não se ara a terra; também os cavadores e
artesãos não realizam o seu trabalho sem instrumentos que têm essa figura.4A
própria figura humana não se distingue em qualquer outra coisa dos animais
irracionais, senão por ser reta, poder abrir os braços e levar, partindo de
frente, proeminente, o chamado nariz, pelo qual se verifica a respiração do
animal, e que não mostra outra coisa que a forma da cruz. 5E o
profeta falou desta maneira: "A respiração diante do nosso rosto, Cristo
Senhor". 6E ainda as vossas próprias insígnias deixam
manifesta a força dessa figura, isto é, vossos estandartes e troféus de
vitória, com os quais em todo lugar realizais as vossas marchas, mostrando os
sinais do império e do poder, até quando o fazeis sem vos dar conta deles. 7As
próprias imagens de vossos imperadores, quando morrem, são consagradas por vós
com essa figura, e vós os chamais deuses em vossas inscrições.
8Uma vez que os exortamos pelo raciocínio e por uma figura patente, na
medida de nossas forças, daqui por diante nós não nos sentiremos
irresponsáveis, mesmo que continueis incrédulos, pois o que dependia de nós já
foi feito e chegou ao fim.
Outra vez Simão mago
56. 1Os maus demônios, porém, não se contentaram em
inventar antes da aparição de Cristo as fábulas dos supostos filhos de Zeus.
Pelo contrário, tendo aparecido e conversado com os homens, ficaram sabendo que
fora predito pelos profetas que todos nele creriam e que seria esperado em
todas as nações e, por isso, como dissemos, lançaram outros, como Simão e
Menandro, ambos de Samaria, os quais, realizando prodígios mágicos, enganaram a
muitos e ainda os mantêm enganados. 2E, com efeito, como já
dissemos, estando Simão em Roma, a vossa cidade imperial, no tempo de Cláudio
César, de tal modo ele impressionou o sacro Senado e o povo romano, que foi
tido como deus e honrado com uma estátua como a dos outros que vós considerais como
deuses. 3Por isso nós vos suplicamos que o sacro Senado e o
povo romano conheçam este nosso escrito, a fim de que, se houver alguém que
ainda esteja enganado pelos ensinamentos dele, conheça a verdade e fuja do
erro. 4Quanto à estátua, se quiserdes, derrubai-a.
Não tememos a morte
57. 1Os demônios não conseguem convencer que não haverá
a conflagração para castigar os ímpios, do mesmo modo que não conseguiram
esconder a Cristo depois que ele nasceu. A única coisa que conseguem é fazer
que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em meio aos maus
costumes, entregues às suas paixões e seguindo a opinião vã, nos tirem a vida e
nos odeiem. Nós, porém, não só não os odiamos, mas, como é evidente, queremos,
por pura compaixão que temos por eles, persuadi-los a que se convertam. 2Com
efeito, não tememos a morte quando reconhecemos que se deve absolutamente
morrer e nada de novo acontece nessa ordem de coisas, mas o mesmo de sempre. Se
estas produzem fartura aos que delas usufruem ainda que só por um ano, que
prestem atenção ao nosso ensinamento, para que estejam isentos de dor e de
necessidades. 3Contudo, se acreditam que não existe nada depois
da morte, afirmando que os que morrem terminam em uma absoluta inconsciência,
nesse caso fazem-nos um beneficio ao livrar-nos dos sofrimentos e necessidades
daqui. Mas eles se mostram maus, inimigos dos homens e seguidores de opinião,
pois não nos tiram a vida para nos libertar, mas nos matam para privar-nos da
vida e do prazer.
Marcião, inspirado pelo demônio
58. 1Como dissemos antes, os maus demônios também
lançaram à frente Marcião do Ponto, que agora ensina a negar o Deus criador de
tudo o que é celeste e terrestre, assim como a Cristo, Filho de Deus, que foi
anunciado pelos profetas, e prega não sabemos qual outro deus fora do criador
de todas as coisas, assim como outro filho seu.
2Muitos lhe deram fé, como se ele fosse o único que conhece a verdade, e
zombam de nós, apesar de não terem nenhuma prova do que dizem, mas, sem
qualquer razão, são presa de doutrinas ímpias e dos demônios, como cordeiros
arrebatados pelo lobo. 3De fato, os chamados demônios em nada
despedem tanto empenho como em afastar os homens de Deus Criador e de Cristo,
seu primogênito. Para isso, àqueles que são capazes de levantar da terra, eles
os prenderam e continuam prendendo ao terreno e às obras de mãos dos homens, e
aos que se lançam à contemplação do divino, se não possuem uma fala discreta e
limpa e uma vida isenta de paixão, preparam-lhes a armadilha para lançá-los à
impiedade.
Platão, discípulo de Moisés
59. 1De nossos mestres também, isto é, do Verbo que
falou pelos profetas, Platão tomou o que disse sobre Deus ter criado o mundo,
transformando uma matéria informe.Para convencer-nos disso, escutai o que disse
literalmente Moisés, o primeiro dos profetas, anteriormente já citado, mais
antigo do que os escritores gregos. Por meio dele, dando-nos a entender de que
maneira e com quais elementos Deus fez o mundo no princípio, o Espírito
profético assim disse: 2"No princípio, Deus fez o céu e a
terra. 3A terra era invisível e informe, as trevas ficavam por
cima do abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. 4E
Deus disse: ?Faça-se a luz'. E a luz foi feita" . 5Conseqüentemente,
todo o mundo foi feito pela palavra de Deus a partir de elemento preexistente,
antes indicado por Moisés, coisa que tanto Platão como os que seguem as suas
doutrinas aprenderam, e também nós a aprendemos, e vós podeis persuadir-vos
disso. 6E mesmo aquilo que entre os poetas se chama
"Érebo" ou abismo, sabemos que já fora dito antes por Moisés.
60. 1O que Platão, explicando a criação, diz no Timeu
sobre o Filho de Deus: "Deu-lhe a forma de X no universo", ele o
tomou igualmente de Moisés. 2De fato, nos escritos de Moisés
conta-se que, no tempo em que os israelitas tinham saído do Egito e se
encontravam no deserto, foram atacados por feras venenosas, víboras, áspides e
todo tipo de serpentes, que causavam a morte do povo. 3Então,
por inspiração e impulso de Deus, Moisés pegou bronze, fez uma figura de cruz e
a colocou sobre o tabernáculo santo, dizendo ao povo: "Se olhardes para
esta figura e crerdes, sereis salvos por meio dela."4Feito
isso, ele conta que as serpentes morreram e que o povo então escapou da morte. 5Platão
deve ter lido isso e, não compreendendo exatamente, nem entendendo que se
tratava da figura da cruz, tomou-a pela letra X grega, e disse que o poder que
acompanha a Deus estava primeiro estendido pelo universo em forma de X. 6Ao
falar de terceiro princípio, deve-se também ao fato de ter lido, como dissemos,
em Moisés que o Espírito de Deus pairava sobre as águas. 7Com
efeito, Platão dá o segundo lugar ao Verbo, que vem de Deus e que ele disse
estar espalhado em forma de X no universo; e dá o terceiro lugar ao Espírito
que se disse pairar sobre as águas, e assim fala: "E o terceiro sobre o
terceiro".
8Que haverá uma conflagração universal, escutai como o Espírito profético
o anunciou de antemão. 9Ele diz o seguinte: "Descerá um
fogo sempre vivo e devorará o abismo até embaixo" . 10Portanto,
não somos nós que professamos opiniões iguais aos outros, e sim todos, por
imitação, repetem as nossas doutrinas. 11Entre nós tudo isso
pode-se ouvir e aprender até daqueles que ignoram as formas das letras, pessoas
ignorantes e bárbaras de língua, mas sábias e fiéis de inteligência, e até
pessoas mutiladas e privadas de visão. De onde se pode entender que isso não
acontece pela sabedoria humana, mas se diz que é pela força de Deus.
I Apologia - Caps 61 ao 68
(O batismo): iluminação e regeneração
61. 1Explicaremos agora de que modo, depois de renovados
por Jesus Cristo, nos consagramos a Deus, para que não aconteça que, omitindo
este ponto, demos a impressão de proceder um pouco maliciosamente em nossa
exposição.2Todos os que se convencem e acreditam que são verdadeiras
essas coisas que nós ensinamos e dizemos, e prometem que poderão viver de
acordo com elas, são instruídos em primeiro lugar para que com jejum orem e
peçam perdão a Deus por seus pecados anteriormente cometidos, e nós oramos e jejuamos
juntamente com eles. 3Depois os conduzimos a um lugar onde haja
água e pelo mesmo banho de regeneração com que também nós fomos regenerados
eles são regenerados, pois então tomam na água o banho em nome de Deus, Pai
soberano do universo, e de nosso Salvador Jesus Cristo e do Espírito Santo. 4É
assim que Cristo disse: "Se não nascerdes de novo, não entrareis no Reino
dos Céus" . 5É evidente para todos que, uma vez nascidos,
não é possível entrar de novo no seio de nossas mães. 6Também o
profeta Isaías, como citamos anteriormente, disse como fugiriam dos pecados
aqueles que antes pecaram e agora se arrependem. 7Eis o que ele
disse: "Lavai-vos, purificai-vos, tirai as maldades de vossas almas e
aprendei a fazer o bem, julgai o órfão e fazei justiça à viúva; então vinde e
conversemos, diz o Senhor . Se vossos pecados forem como a púrpura, eu os
tornarei brancos como a lã; se forem como o escarlate, eu os alvejarei como a
neve. 8Se não me escutardes, a espada vos devorará, porque
assim falou a boca do Senhor." 9A explicação que
aprendemos dos apóstolos sobre isso é a seguinte: 10Uma vez que
não tivemos consciência de nosso primeiro nascimento, pois fomos gerados por
necessidade de um germe úmido, através da união mútua de nossos pais, e nos
criamos em costumes maus e em conduta perversa, agora, para que não continuemos
sendo filhos da necessidade e da ignorância, mas da liberdade e do conhecimento
e, ao mesmo tempo, alcancemos o perdão de nossos pecados anteriores,
pronuncia-se na água, sobre aquele que decidiu regenerar-se e se arrepende de
seus pecados, o nome de Deus, Pai e soberano do universo; e aquele que conduz
ao banho pronuncia este único nome sobre aquele que vai ser lavado. 11Com
efeito, ninguém é capaz de dar um nome ao Deus inefável; se alguém se atrevesse
a dizer que esse nome existe, sofreria a mais vergonhosa loucura. 12Esse
banho chama-se iluminação, para dar a entender que são iluminados os que
aprendem estas coisas. 13O iluminado se lava também em nome de
Jesus Cristo, que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, e no nome do Espírito
Santo, que, por meio dos profetas, nos anunciou previamente tudo o que se
refere a Jesus.
O arremedo diabólico do batismo
62. 1Os demônios também ouviram que esse banho tinha
sido anunciado pelo profeta, e então também se fizeram aspergir aqueles que
entram em seus templos e vão aproximar-se deles para lhes oferecer libações e
gorduras, e chegam até a obrigar a um banho completo, antes de entrar nos
templos, onde eles se assentam. 2Também o fato de que os
sacerdotes mandem que se descalcem aqueles que entram nos templos e cultuam os
demônios, estes conceberam e imitaram daquilo que aconteceu a Moisés, o profeta
de que antes falamos. 3De fato, deve-se saber que, no tempo em
que se mandou Moisés desceu ao Egito para daí tirar o povo de Israel, quando
ele estava apascentando as ovelhas do seu tio materno na terra da Arábia, nosso
Cristo falou com ele de dentro de uma sarça em forma de fogo, e lhe disse:
"Desata as sandálias de teus pés, aproxima-te e ouve" . 4Ele,
descalço, aproximou-se e ouviu que o mandavam descer ao Egito e daí tirar o
povo de Israel. Foi aí que recebeu uma força tão grande do mesmo Cristo que lhe
falara em forma de fogo. E, de fato, desceu ao Egito e tirou o povo, depois de
realizar grandes prodígios que, se desejardes, podeis conhecer fielmente
através dos livros do próprio Moisés.
O Verbo na sarça e Moisés
63. 1Todos os judeus, porém, ainda hoje, ensinam que foi
o Deus inominado que falou a Moisés. 2Por isso, o já mencionado
profeta Isaías, repreendendo-os no texto anteriormente citado, disse: "O
boi conheceu o seu dono e o asno a manjedoura de seu senhor, mas Israel não me
conheceu e meu povo não me compreendeu" . 3E o próprio
Jesus Cristo, repreendendo os judeus por não saberem distinguir o que era o Pai
e o que era o Filho, também disse: "Ninguém conhece o Pai, a não ser o
Filho; ninguém conhece o Filho, a não ser o Pai e aqueles aos quais o Filho o
revelar" . 4O Verbo de Deus é seu Filho, como dissemos
antes. 5E também se chama mensageiro e embaixador, porque ele
anuncia o que se deve conhecer e é enviado para nos manifestar tudo o que o Pai
nos comunica. O próprio nosso Senhor o deu a entender, quando disse:
"aluem ouve a mim, ouve aquele que me enviou. " 6O
mesmo aparece claramente pelos escritos de Moisés.7Com efeito,
nestes se diz assim: "O anjo do Senhor falou com Moisés da chama de fogo
na sarça e lhe disse: Eu sou Aquele que é, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o
Deus de Jacó, o Deus de teus pais. 8Desce ao Egito e tira dali
o meu povo" . 9O que segue podereis, se quiserdes, sabê-lo
através dos próprios escritos, pois não é possível transcrever tudo aqui. 10As
palavras citadas são suficientes para demonstrar que Jesus Cristo é Filho e
embaixador de Deus, e antes era Verbo, que apareceu algumas vezes em forma de
fogo, outras em imagem incorpórea e agora, feito homem por vontade de Deus, por
causa do gênero humano submeteu-se a sofrer tudo o que os demônios quiseram que
os insensatos judeus fizessem com ele. 11Estes, tendo
expressamente dito nos escritos de Moisés: ?E o anjo de Deus falou a Moisés em
fogo de chama desde a sarça e lhe disse: Eu sou Aquele que sou; o Deus de
Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó", insistem que foi o Pai e
Artífice do universo quem disse essas palavras.
12Então, repreendendo-os, o Espírito profético disse: "Mas Israel não
me conheceu, nem meu povo me compreendeu."13Por sua vez, Jesus,
como já indicamos, estando entre eles, disse: "Ninguém conhece o Pai, a
não ser o Filho; ninguém conhece o Filho, a não ser o Pai e aqueles aos quais o
Filho o revelar" . 14Portanto, os judeus que pensam ter
sido sempre o Pai do universo quem falou a Moisés, quando na realidade
falou-lhe o Filho de Deus, que se chama também mensageiro e embaixador dele,
com razão são repreendidos pelo Espírito profético e pelo próprio Cristo, por
não terem conhecido nem o Pai, nem o Filho. 15Porque os que
dizem que o Filho é o Pai dão prova de que não sabem nem quem é o Pai, nem
tomaram conhecimento de que o Pai do universo tenha um Filho que, sendo Verbo e
primogênito de Deus, também é Deus.16Foi este que primeiramente
apareceu a Moisés e aos outros profetas em forma de fogo ou por imagem
incorpórea e aquele que agora, nos tempos de vosso império, como já dissemos,
nasceu homem de uma virgem, conforme o desígnio do Pai. E pela salvação dos que
nele crêem, quis ser desprezado e sofrer para, com sua morte e ressurreição,
vencer a própria morte. 17O que da sarça foi dito a Moisés:
"Eu sou Aquele que é, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de
Jacó", significa que, mesmo depois de mortos, aqueles homens continuavam
sendo de Cristo, assim como foram os primeiros de todos os homens que se
ocuparam na busca de Deus, pois Abraão foi pai de Isaac, e este pai de Jacó,
como o próprio Moisés deixou escrito.
Outras lembranças pagãs
64. 1Do que foi dito até aqui, podeis entender que
também foram os demônios que introduziram o uso de instalar a imagem da chamada
Coré sobre as fontes das águas, dizendo que ela era filha de Zeus, querendo
assim imitar o que disse Moisés.2Este, com efeito, como citamos
antes, disse: "No princípio Deus criou o céu e a terra. 3A
terra era invisível e informe, e o Espírito de Deus pairava sobre as
águas" . 4À imitação desse Espírito de Deus que se dizia
pairar sobre as águas, disseram eles que Coré era filha de Zeus. 5Com
igual malícia, disseram também que Atena era filha de Zeus, mas não nascida de
união carnal; de fato, ao tomarem conhecimento de que Deus, depois de pensar,
criou o mundo por meio de seu Verbo, disseram que Atenas era como que o primeiro
pensamento; coisa que consideramos absolutamente ridícula, apresentar uma
mulher como imagem do pensamento. 6De modo semelhante, suas
ações argüem os outros chamados filhos de Zeus.
Fraternidade e eucaristia
65. 1De nossa parte, depois que assim foi lavado aquele
que creu e aderiu a nós, nós o levamos aos que se chamam irmãos, no lugar em
que estão reunidos, a fim de elevar fervorosamente orações em comum por nós
mesmos, por aquele que acaba de ser iluminado e por todos os outros espalhados
pelo mundo inteiro, suplicando que se nos conceda, já que conhecemos a verdade,
ser encontrados por nossas obras como homens de boa conduta e observantes do
que nos mandaram, e assim consigamos a salvação eterna. 2Terminadas
as orações, nos damos mutuamente o ósculo da paz.3Depois àquele que
preside aos irmãos é oferecido pão e uma vasilha com água e vinho; pegando-os,
ele louva e glorifica ao Pai do universo através do nome de seu Filho e do
Espírito Santo, e pronuncia uma longa ação de graças, por ter-nos concedido
esses dons que dele provêm. Quando o presidente termina as orações e a ação de
graças, todo o povo presente aclama, dizendo: "Amém." 4Amém,
em hebraico, significa "assim seja". 5Depois que o
presidente deu ação de graças e todo o povo aclamou, os que entre nós se chamam
ministros ou diáconos dão a cada um dos presentes parte do pão, do vinho e da
água sobre os quais se pronunciou a ação de graças e os levam aos ausentes.
Teologia da eucaristia
66. 1Este alimento se chama entre nós Eucaristia, da qual
ninguém pode participar, a não ser que creia serem verdadeiros nossos
ensinamentos e se lavou no banho que traz a remissão dos pecados e a
regeneração e vive conforme o que Cristo nos ensinou. 2De fato,
não tomamos essas coisas como pão comum ou bebida ordinária, mas da maneira
como Jesus Cristo, nosso Salvador, feito carne por força do Verbo de Deus, teve
carne e sangue por nossa salvação, assim nos ensinou que, por virtude da oração
ao Verbo que procede de Deus, o alimento sobre o qual foi dita a ação de graças
- alimento com o qual, por transformação, se nutrem nosso sangue e nossa carne
- é a carne e o sangue daquele mesmo Jesus encarnado. 3Foi isso
que os Apóstolos nas Memórias por eles escritas, que se chamam Evangelhos, nos
transmitiram que assim foi mandado a eles, quando Jesus, tomando o pão e dando
graças, disse: "Fazei isto em memória de mim, este é o meu corpo" . E
igualmente, tomando o cálice e dando graças, disse: "Este é o meu
sangue", e só participou isso a eles. 4E certo que isso
também, por arremedo, foi ensinado pelos demônios perversos para ser feito nos
mistérios de Mitra ;com efeito, nos ritos de um novo iniciado, apresenta-se pão
e uma vasilha de água com certas orações, como sabeis ou podeis informar-vos.
Liturgia dominical
67. 1Depois dessa primeira iniciação, recordamos
constantemente entre nós essas coisas e aqueles de nós que possuem alguma coisa
socorrem todos os necessitados e sempre nos ajudamos mutuamente. 2Por
tudo o que comemos, bendizemos sempre ao Criador de todas as coisas, por meio
de seu Filho Jesus Cristo e do Espírito Santo. 3No dia que se
chama do sol, celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos
campos, e aí se lêem, enquanto o tempo o permite, as Memórias dos apóstolos ou
os escritos dos profetas. 4Quando o leitor termina, o
presidente faz uma exortação e convite para imitarmos esses belos exemplos. 5Em
seguida, levantamo-nos todos juntos e elevamos nossas preces. Depois de
terminadas, como já dissemos, oferece-se pão, vinho e água, e o presidente,
conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas preces e ações de graças
e todo o povo exclama, dizendo: "Amém". Vem depois a distribuição e
participação feita a cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças e
seu envio aos ausentes pelos diáconos. 6Os que possuem alguma
coisa e queiram, cada um conforme sua livre vontade, dá o que bem lhe parece, e
o que foi recolhido se entrega ao presidente. Ele o distribui a órfãos e
viúvas, aos que por necessidade ou outra causa estão necessitados, aos que
estão nas prisões, aos forasteiros de passagem, numa palavra, ele se torna o
provedor de todos os que se encontram em necessidade. 7Celebramos
essa reunião geral no dia do sol, porque foi o primeiro dia em que Deus,
transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, e também o dia em que Jesus
Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Com efeito, sabe-se que o
crucificaram um dia antes do dia de Saturno e no dia seguinte ao de Saturno,
que é o dia do Sol, ele apareceu a seus apóstolos e discípulos, e nos ensinou
essas mesmas doutrinas que estamos expondo para vosso exame.
Petição final
68. 1Portanto, se vos parece que tais doutrinas provêm
da razão e da verdade, respeitai-as; mas se as considerais como charlatanice ou
coisa de charlatães, desprezai-as. Não decreteis, porém, pena de morte, como
contra inimigos, contra aqueles que nenhum crime cometem. 2De
fato, vos avisamos de antemão, que, se vos obstinais em vossa iniqüidade, não
escapareis do futuro julgamento de Deus. De nossa parte, exclamaremos:
"Aconteça o que Deus quiser".
3Poderíamos também exigir que mandeis celebrar os julgamentos dos
cristãos conforme nossa petição, apoiando-nos na carta do máximo e
gloriosíssimo César Adriano, vosso pai. Todavia, não vos fizemos nossa súplica,
nem dirigimos nossa exposição, porque Adriano o julgasse assim, mas porque
estamos persuadidos da justiça de nossas petições. 4Contudo,
anexamos para vós uma cópia da carta de Adriano, para que vejais, segundo o seu
teor, que dizemos a verdade. 5A cópia é a seguinte:
"A Mimício Fundano.
6Recebi uma carta que me foi escrita por Serênio Graniano, homem
distinto, a quem sucedeste. 7Não me parece que o assunto deva
ficar sem esclarecimento, a fim de que os homens não se perturbem, nem se
facilitem as malfeitorias dos delatores. 8Dessa forma, se os
provincianos são capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os
cristãos, de modo que respondam a ela diante do tribunal, deverão ater-se a
esse procedimento e não a meras petições e gritarias.9Com efeito, é
muito mais conveniente que, se alguém pretende fazer uma acusação, examines tu
o assunto. 10Em conclusão, se alguém acusa os cristãos e
demonstra que realizam alguma coisa contra as leis, determina a pena, conforme
a gravidade do delito. Mas, por Hércules, se a acusação é caluniosa, castiga-o
com maior severidade e cuida para que não fique impune."
I Apologia - Caps 49 ao 60
A gentilidade
49. 1Novamente olhai o que o profeta Isaías diz: os
povos das nações que não o esperavam, iriam adorá-lo; ao contrário, os judeus
que o esperavam, o desconheceram quando ele veio. As palavras são ditas na
pessoa de Cristo.
2Ei-las: "Manifestei-me aos que não perguntavam por mim, fui
encontrado por aqueles que não me buscavam. Eu disse: ?Eis-me aqui' a uma nação
que não invocava o meu nome. 3Estendi minhas mãos a um povo que
não crê e contradiz, aos que andam por caminho não bom, mas atrás de seus
pecados. 4O povo que me exaspera está diante de mim" . 5Foi
assim que os judeus, que possuíam as profecias e esperavam continuamente
Cristo, quando este veio não o reconheceram; e não apenas isso, pois inclusive
o maltrataram. Ao contrário, os gentios, que nunca tinham ouvido falar dele até
que os apóstolos, tendo saído de Jerusalém, lhes contaram sua vida e lhes
entregaram as profecias, cheios de alegria e de fé, renunciaram aos ídolos e se
consagraram ao Deus ingênito, por meio de Cristo. 6Que de
antemão foram conhecidas essas ignomínias que se propagariam contra os que
confessam a Cristo e como são miseráveis aqueles que o blasfemam, dizendo que é
bom preservar os antigos costumes, escutai como o profeta Isaías o diz
brevemente. 7São suas as palavras: "Ai daqueles que chamam
amargo ao doce e doce, ao amargo!".
A paixão e glória de Cristo
50. 1Escutai agora as profecias relativas à paixão e
desonras que, feito homem, ele sofreria por nós, e a glória com que voltará. 2São
estas: "Porque entregaram sua alma à morte e foi contado entre os iníquos,
ele tomou os pecados de muitos e se reconciliará com os iníquos . 3Eis
que meu servo entenderá, será levantado e glorificado muito. 4Do
mesmo modo como muitos ficarão atônitos à tua vista - tão desonrada está a tua
figura dos homens e tua glória tão longe dos homens - assim muitas nações
ficarão maravilhadas e reis permanecerão silenciosos, porque aqueles para os
quais não foi anunciado verão, e os que não ouviram, entenderão. 5Senhor
quem creu naquilo que ouviu de nós? Para quem foi revelado o braço do Senhor?
Anunciamos diante dele como menino, como raiz em terra sedenta. 6Ele
não tem beleza nem glória; nós o vimos e não tinha beleza nem formosura, mas o
seu aspecto estava desonrado e debilitado em comparação com os homens.7Homem
sujeito ao açoite e que sabe suportar a enfermidade, seu rosto está escondido,
foi desonrado e desprezado. 8Leva sobre si nossos pecados e
padece por nós, e nós consideramos que ele estava em fadiga, em açoite e
desgraça. 9Ele foi ferido por causa de nossas iniqüidades e
debilitado por causa de nossos pecados. A disciplina da paz estava sobre ele,
fomos curados por sua chaga. 10Todos nós andávamos errantes
como ovelhas, cada um se desviou pelo próprio caminho. Entregou-se por nossos
pecados e, ao ser maltratado, não abre a boca. Foi levado como ovelha ao
matadouro; como cordeiro que fica mudo diante daquele que o tosquia, ele também
não abre a boca. 11Em sua humilhação, o seu julgamento foi
tirado".
12Depois de ser crucificado, até seus discípulos o abandonaram e negaram.
Depois, porém, quando ressuscitou dentre os mortos e foi visto por eles, depois
que lhes ensinou a ler as profecias nas quais estava predito que isso deveria
acontecer, e o viram subir ao céu e creram, depois que receberam a força que de
lá lhes foi enviada por ele, espalharam-se entre todo tipo de homens,
ensinaram-lhes todas essas coisas e foram chamados apóstolos.
51. 1OEspírito profético, afim de fazer-nos entender que
quem padece essas coisas é de origem inexplicável e reina sobre seus inimigos,
assim disse: "Quem explicará a sua geração? De fato, sua vida é arrebatada
da terra, pelas iniqüidades deles caminha para a morte. 2Em
lugar de sua sepultura darei os mares e por sua morte os rios, porque ele não
cometeu iniqüidade e nem se achou engano em sua boca e o Senhor quer purificá-lo
do açoite. 3Se oferecerdes pelo pecado, vossa alma verá
descendência duradoura. 4O Senhor quer afastar a alma dele da
fadiga, mostrar-lhe luz, formá-lo na inteligência, justificar o justo que
serviu bem a muitos, e ele mesmo carregará os nossos pecados. 5Por
isso, herdará a muitos e repartirá os despojos dos fortes, porque sua alma foi
entregue à morte e por ter sido contado entre os iníquos, por ter carregado os
pecados e ter-se entregue pelas iniqüidades deles".
6Escutai como foi profetizado que ele deveria subir ao céu. 7Diz
o seguinte: "Levantai as portas dos céus; abrivos, portas, para que entre
o rei da glória. Quem é esse rei da glória? O Senhor forte e o Senhor
poderoso". 8Que ele também há de vir dos céus com glória,
escutai o que sobre isso foi dito pelo profeta Jeremias. 9Ele
diz assim: "Eis como um filho de homem vem sobre as nuvens do céu, e seus
anjos com ele."
A dupla vinda de Cristo
52. 1Como demonstramos que tudo o que aconteceu até
agora foi previamente anunciado pelos profetas, agora, como em tudo, é
necessário também que creiamos no que foi igualmente profetizado, mas que ainda
vai acontecer. 2Com efeito, do mesmo modo que o acontecido,
antecipadamente anunciado, por mais que não tivesse sido compreendido,
aconteceu; assim também o que ainda falta para ser cumprido, acontecerá, por
mais que não se compreenda nem se creia.
3Assim é que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo: uma, já
cumprida, como homem desonrado e passível; a segunda, quando virá dos céus
acompanhado de seu exército de anjos, quando ressuscitará também os corpos de
todos os homens que existiram; revestirá de incorruptibilidade os que forem
dignos, e enviará os iníquos, com percepção eterna, ao fogo eterno, junto com
os perversos demônios. 4Vamos mostrar como foi profetizado que
isso deverá acontecer. 5Foi o profeta Ezequiel quem disse
assim: "Unir-se-á juntura com juntura, osso com osso, e as carnes voltarão
a brotar. 6E todo joelho se dobrará diante do Senhor e toda
língua o confessará". 7Escutai o que foi dito sobre a
percepção e o tormento em que se encontrarão os injustos. 8É o
seguinte: "Seu verme não descansará e seu fogo não se extinguirá" . 9Então
eles se arrependerão, quando de nada mais lhes valerá. 10Sobre
o que dirão e farão os povos dos judeus, quando o virem vir em glória, o
profeta Zacarias disse esta profecia: "Mandarei que os quatro ventos
reúnam meus filhos dispersos, ordenarei ao vento norte que os traga e ao vento
sul que não se oponha. 11Então haverá grande choro em
Jerusalém, não pranto de bocas e lábios, mas pranto de coração; não rasgarão
suas roupas, mas suas almas. 12Cada tribo baterá no peito,
olharão aquele que transpassaram e dirão: Por que, Senhor, nos desviaste de teu
caminho? A glória que nossos pais bendisseram converteu-se em opróbrio para
nós."
Profecia sobre a gentilidade
53. 1Poderíamos mostrar muitas outras profecias.
Entretanto, terminamos essa prova por aqui, considerando que as citadas são
suficientes para convencer aqueles que têm ouvidos para ouvir e entender, e
podem assim precaver-se que não somos como os que inventam suas fábulas sobre
os supostos filhos de Zeus, que nos contentamos apenas com afirmar, sem termos
provas para alegar. 2De fato, por que motivo haveríamos de crer
que um homem crucificado é o primogênito do Deus ingênito e que julgará todo o
gênero humano, se não encontrássemos testemunhos sobre ele, publicados antes de
ele ter nascido como homem e não os víssemos literalmente cumpridos: 3a
devastação da terra dos judeus, homens de todas as raças que crêem através do
ensinamento dos apóstolos e recusam seus antigos costumes em cujos erros se
criaram e ainda ao vermos que nós mesmos, procedentes das nações, somos mais
numerosos e mais sinceros cristãos do que os judeus e os samaritanos? 4Deve-se
saber que o restante de todas as raças humanas são chamadas de nações pelo
Espírito profético; a casta dos judeus e samaritanos, porém, chama-se Israel e
Casa de Jacó. 5Citarei para vós a profecia que prediz que os
crentes serão em maior número entre aqueles que procedem da gentilidade do que
entre os judeus e samaritanos. Diz assim: "Alegra-te, estéril, tu que não
concebes; rompe e grita de júbilo, tu que não sofres dores de parto, porque são
mais numerosos os filhos da abandonada do que daquela que tem marido" . 6De
fato, todas as nações que cultuavam obras manufaturadas estavam abandonadas
pelo verdadeiro Deus; mas os judeus e samaritanos, que tinham a palavra de Deus
transmitida pelos profetas e estavam constantemente esperando Cristo, vindo
este, o desconheceram, exceto alguns poucos, dos quais o Espírito profético
havia predito, através de Isaías, que se salvariam. 7Disse
pessoalmente sobre eles mesmos: "Se o Senhor não nos tivesse deixado
semente, nos teríamos tornado como Sodoma e Gomorra" . 8Moisés
conta que Sodoma e Gomorra foram cidades de homens ímpios que Deus destruiu,
queimando-as com fogo e enxofre, sem que nelas alguém se salvasse, a não ser um
estrangeiro, de origem caldéia, chamado Ló, juntamente com suas filhas. 9Ainda
hoje, quem quiser, pode ver toda essa terra que continua deserta, calcinada e
estéril.
10Que os cristãos da gentilidade seriam mais sinceros e fiéis, 11eis
o que disse o profeta Isaías: "Israel é incircunciso de coração, as nações
o são de prepúcio" . 12A contemplação de tantos fatos pode
bem levar razoavelmente à persuasão e à fé os que amam a verdade, que não
seguem a opinião, nem se deixam dominar por suas paixões.
As fábulas pagãs
54. 1Ao contrário, os que ensinam os mitos inventados
pelos poetas não podem oferecer nenhuma prova aos jovens que os aprendem de
cor. E nós demonstramos que foram ditos por obra dos demônios perversos, para
enganar e extraviar o gênero humano. 2Com efeito, ouvindo os
profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens ímpios seriam castigados
através do fogo, colocaram na frente muitos que se disseram filhos de Zeus,
crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito
de Cristo como um conto de fada, semelhante aos contados pelos poetas. 3Tudo
se propagou principalmente entre os gregos e outras nações, onde mais os
demônios tinham ouvido, pelo anúncio dos profetas, que se deveria crerem
Cristo. 4Nós colocaremos às claras que, embora ouvindo o que
dizem os profetas, não o entenderam exatamente, mas parodiaram como charlatães
aquilo que se refere a Cristo. 5Como já dissemos, o profeta
Moisés é mais antigo do que todos os escritores e por ele, como já indicamos,
foi feita esta profecia: "Não faltará príncipe de Judá, nem chefe de seus
músculos, até que venha aquele a quem está reservado, e ele será a esperança
das nações, amarrando seu jumentinho na sua videira e lavando sua roupa no
sangue da uva". 6ouvindo essas palavras proféticas, os
demônios disseram que Dioniso tinha sido filho de Zeus, ensinaram que ele tinha
inventado a vinha, introduziram o asno em seus mistérios e propagaram que ele,
depois de ter sido esquartejado, subiu ao céu. 7Acontece, porém,
que na profecia de Moisés não aparecia com clareza se aquele que devia nascer
seria Filho de Deus, nem se aquele que deveria montar o jumentinho permaneceria
na terra ou subiria ao céu. Por outro lado, o nome de jumentinho,
originariamente pode tanto significar a cria do asno como do cavalo. Assim, não
sabendo se a profecia deveria ser tomada como símbolo de sua vinda montado num
jumentinho de asno ou num potro de cavalo, nem se seria filho de Deus, como
dissemos, ou de homem, os demônios inventaram que, Belerofonte, homem nascido
de homens, subiu ao céu montado no cavalo Pégaso. 8Como também
ouviram por outro profeta, Isaías, que haveria de nascer de uma virgem e que
por sua própria virtude subiria ao céu, adiantaram-se com a lenda de Perseu. 9Pela
mesma razão, conhecendo o que fora dito dele nas profecias anteriormente
citadas: "Forte como um gigante para percorrer seu caminho",
inventaram um Hércules forte, que andava peregrinando por toda a terra. 10Por
fim, ao inteirarem-se que estava profetizado que ele curaria todas as
enfermidades e ressuscitaria mortos, nos trouxeram a fábula de Asclépio.
A cruz desconhecida pelos demônios
55. 1Todavia, em nenhum lugar e em nenhum dos supostos
filhos de Zeus arremedaram a crucifixão, por não tê-la entendido, pois,
conforme dissemos antes, tudo o que se refere à cruz foi dito de forma
simbólica. 2Ela é justamente, como predisse o profeta, o maior
símbolo de sua força e de seu império, como se manifesta ainda pelas mesmas
coisas que caem sob os nossos olhos.
Com efeito, considerai se tudo o que existe no mundo pode ser
administrado ou ter comunicação entre si sem essa figura.3De fato,
não é possível sulcar o mar se esse troféu de vitória, que aqui se chama vela,
não se mantém de pé no navio; sem ela não se ara a terra; também os cavadores e
artesãos não realizam o seu trabalho sem instrumentos que têm essa figura.4A
própria figura humana não se distingue em qualquer outra coisa dos animais
irracionais, senão por ser reta, poder abrir os braços e levar, partindo de
frente, proeminente, o chamado nariz, pelo qual se verifica a respiração do
animal, e que não mostra outra coisa que a forma da cruz. 5E o
profeta falou desta maneira: "A respiração diante do nosso rosto, Cristo
Senhor". 6E ainda as vossas próprias insígnias deixam
manifesta a força dessa figura, isto é, vossos estandartes e troféus de
vitória, com os quais em todo lugar realizais as vossas marchas, mostrando os
sinais do império e do poder, até quando o fazeis sem vos dar conta deles. 7As
próprias imagens de vossos imperadores, quando morrem, são consagradas por vós
com essa figura, e vós os chamais deuses em vossas inscrições.
8Uma vez que os exortamos pelo raciocínio e por uma figura patente, na
medida de nossas forças, daqui por diante nós não nos sentiremos
irresponsáveis, mesmo que continueis incrédulos, pois o que dependia de nós já
foi feito e chegou ao fim.
Outra vez Simão mago
56. 1Os maus demônios, porém, não se contentaram em
inventar antes da aparição de Cristo as fábulas dos supostos filhos de Zeus.
Pelo contrário, tendo aparecido e conversado com os homens, ficaram sabendo que
fora predito pelos profetas que todos nele creriam e que seria esperado em
todas as nações e, por isso, como dissemos, lançaram outros, como Simão e
Menandro, ambos de Samaria, os quais, realizando prodígios mágicos, enganaram a
muitos e ainda os mantêm enganados. 2E, com efeito, como já
dissemos, estando Simão em Roma, a vossa cidade imperial, no tempo de Cláudio
César, de tal modo ele impressionou o sacro Senado e o povo romano, que foi
tido como deus e honrado com uma estátua como a dos outros que vós considerais
como deuses. 3Por isso nós vos suplicamos que o sacro Senado e
o povo romano conheçam este nosso escrito, a fim de que, se houver alguém que
ainda esteja enganado pelos ensinamentos dele, conheça a verdade e fuja do
erro. 4Quanto à estátua, se quiserdes, derrubai-a.
Não tememos a morte
57. 1Os demônios não conseguem convencer que não haverá
a conflagração para castigar os ímpios, do mesmo modo que não conseguiram
esconder a Cristo depois que ele nasceu. A única coisa que conseguem é fazer
que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em meio aos maus
costumes, entregues às suas paixões e seguindo a opinião vã, nos tirem a vida e
nos odeiem. Nós, porém, não só não os odiamos, mas, como é evidente, queremos,
por pura compaixão que temos por eles, persuadi-los a que se convertam. 2Com
efeito, não tememos a morte quando reconhecemos que se deve absolutamente
morrer e nada de novo acontece nessa ordem de coisas, mas o mesmo de sempre. Se
estas produzem fartura aos que delas usufruem ainda que só por um ano, que
prestem atenção ao nosso ensinamento, para que estejam isentos de dor e de
necessidades. 3Contudo, se acreditam que não existe nada depois
da morte, afirmando que os que morrem terminam em uma absoluta inconsciência,
nesse caso fazem-nos um beneficio ao livrar-nos dos sofrimentos e necessidades
daqui. Mas eles se mostram maus, inimigos dos homens e seguidores de opinião,
pois não nos tiram a vida para nos libertar, mas nos matam para privar-nos da
vida e do prazer.
Marcião, inspirado pelo demônio
58. 1Como dissemos antes, os maus demônios também
lançaram à frente Marcião do Ponto, que agora ensina a negar o Deus criador de
tudo o que é celeste e terrestre, assim como a Cristo, Filho de Deus, que foi
anunciado pelos profetas, e prega não sabemos qual outro deus fora do criador
de todas as coisas, assim como outro filho seu.
2Muitos lhe deram fé, como se ele fosse o único que conhece a verdade, e
zombam de nós, apesar de não terem nenhuma prova do que dizem, mas, sem
qualquer razão, são presa de doutrinas ímpias e dos demônios, como cordeiros
arrebatados pelo lobo. 3De fato, os chamados demônios em nada
despedem tanto empenho como em afastar os homens de Deus Criador e de Cristo,
seu primogênito. Para isso, àqueles que são capazes de levantar da terra, eles
os prenderam e continuam prendendo ao terreno e às obras de mãos dos homens, e
aos que se lançam à contemplação do divino, se não possuem uma fala discreta e
limpa e uma vida isenta de paixão, preparam-lhes a armadilha para lançá-los à
impiedade.
Platão, discípulo de Moisés
59. 1De nossos mestres também, isto é, do Verbo que
falou pelos profetas, Platão tomou o que disse sobre Deus ter criado o mundo,
transformando uma matéria informe.Para convencer-nos disso, escutai o que disse
literalmente Moisés, o primeiro dos profetas, anteriormente já citado, mais
antigo do que os escritores gregos. Por meio dele, dando-nos a entender de que
maneira e com quais elementos Deus fez o mundo no princípio, o Espírito
profético assim disse: 2"No princípio, Deus fez o céu e a
terra. 3A terra era invisível e informe, as trevas ficavam por
cima do abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. 4E
Deus disse: ?Faça-se a luz'. E a luz foi feita" . 5Conseqüentemente,
todo o mundo foi feito pela palavra de Deus a partir de elemento preexistente,
antes indicado por Moisés, coisa que tanto Platão como os que seguem as suas
doutrinas aprenderam, e também nós a aprendemos, e vós podeis persuadir-vos
disso. 6E mesmo aquilo que entre os poetas se chama
"Érebo" ou abismo, sabemos que já fora dito antes por Moisés.
60. 1O que Platão, explicando a criação, diz no Timeu
sobre o Filho de Deus: "Deu-lhe a forma de X no universo", ele o
tomou igualmente de Moisés. 2De fato, nos escritos de Moisés
conta-se que, no tempo em que os israelitas tinham saído do Egito e se
encontravam no deserto, foram atacados por feras venenosas, víboras, áspides e
todo tipo de serpentes, que causavam a morte do povo. 3Então,
por inspiração e impulso de Deus, Moisés pegou bronze, fez uma figura de cruz e
a colocou sobre o tabernáculo santo, dizendo ao povo: "Se olhardes para
esta figura e crerdes, sereis salvos por meio dela."4Feito
isso, ele conta que as serpentes morreram e que o povo então escapou da morte. 5Platão
deve ter lido isso e, não compreendendo exatamente, nem entendendo que se
tratava da figura da cruz, tomou-a pela letra X grega, e disse que o poder que
acompanha a Deus estava primeiro estendido pelo universo em forma de X. 6Ao
falar de terceiro princípio, deve-se também ao fato de ter lido, como dissemos,
em Moisés que o Espírito de Deus pairava sobre as águas. 7Com
efeito, Platão dá o segundo lugar ao Verbo, que vem de Deus e que ele disse
estar espalhado em forma de X no universo; e dá o terceiro lugar ao Espírito
que se disse pairar sobre as águas, e assim fala: "E o terceiro sobre o
terceiro".
8Que haverá uma conflagração universal, escutai como o Espírito profético
o anunciou de antemão. 9Ele diz o seguinte: "Descerá um
fogo sempre vivo e devorará o abismo até embaixo" . 10Portanto,
não somos nós que professamos opiniões iguais aos outros, e sim todos, por
imitação, repetem as nossas doutrinas. 11Entre nós tudo isso
pode-se ouvir e aprender até daqueles que ignoram as formas das letras, pessoas
ignorantes e bárbaras de língua, mas sábias e fiéis de inteligência, e até
pessoas mutiladas e privadas de visão. De onde se pode entender que isso não
acontece pela sabedoria humana, mas se diz que é pela força de Deus.
Fonte: http://patristicabrasil.blogspot.com.br
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