Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa
O falso ecumenismo hoje reinante encarece uma leitura ecumênica da
Sagrada Escritura. Multiplicam-se as assembléias
inter-confessionais em que se recitam trechos bíblicos,
fazem-se comentários amenos às páginas sagradas, tudo em um clima de
paz e amor, sem nenhuma preocupação séria com o sentido autêntico das Sagradas
Letras. Promovem-se edições da Bíblia com a participação de “especialistas”
representantes das diversas “confissões”. É assim, diria o Padre Vieira, que a
Palavra de Deus se transforma em palavras do homem ou do diabo. Pobre gente que
perde seu tempo profanando a palavra divina para colocá-la a serviço de uma
utopia.
Como se sabe, a Sagrada Escritura tem inúmeras passagens obscuras, de
dificílima interpretação. É de fé que o depósito da Revelação, Sagrada Tradição
e Sagrada Escritura, foi confiado ao magistério da Igreja. Ademais,
compreende-se perfeitamente que a Igreja e a Tradição têm uma primazia sobre a
Bíblia Sagrada, porquanto o próprio cânon bíblico só nos é conhecido com
autenticidade pelo testemunho autorizado da Igreja e da tradição.
Por outro lado, todo o conteúdo da Sagrada Escritura, inclusive os
livros históricos, se ordena a um fim sobrenatural, salvífico. Os livros
sapienciais, com tantos ensinamentos maravilhosos que iluminam e consolam a
vida do homem neste vale de lágrimas, tampouco visam a um fim meramente
humanista ou filantrópico, de maneira que possam ser empregados para justificar
ou ilustrar com propriedade empreitadas mundanas ou políticas. Esses livros
igualmente, ao auxiliarem o homem a viver bem, a buscar a santidade conforme a
lei de Deus, ensinam-lhe a esperar com fé a vida futura e não a felicidade na
terra.
Qualquer leitura deve ser feita com honestidade, respeitando-se o
sentido e a intenção do autor. Com plena honestidade e suma reverência,
portanto, se deve procurar ler a Sagrada Escritura, com fidelidade ao seu
conteúdo. Assim diz o Espírito Santo pela boca do apóstolo qual o fim do texto
sagrado: “E desde a infância conheces as sagradas escrituras e sabes que elas
têm o condão de te proporcionar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em
Jesus Cristo. Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para
repreender, para corrigir e para formar na justiça” (II Tm. 3,15-16).
Tal é o fim da Bíblia Sagrada, formar o homem na santidade, com vista à
vida eterna. Não foi escrita para que servisse de panfleto político de um
projeto de reforma ou revolução social, como pretende a teologia da libertação
com sua leitura deturpada do livro do Êxodo com a narrativa da libertação do
povo hebreu do cativeiro do Egito.
Ora, nós, católicos, apoiados no testemunho universal e concorde dos
padres da Igreja e do magistério eclesiástico, sempre professamos que a chave
de leitura dos sagrados textos é a Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Para
ele convergem, de uma forma ou de outra, todas as coisas encerradas na Bíblia.
Mais ainda. A verdadeira chave de leitura da Bíblia é descobrir em suas páginas
o Cristo total, quer dizer, o seu Corpo Místico, a Santa Igreja.
Vale a pena citar algumas passagens de Santo Agostinho, o maior dos
padres da Igreja Latina. Em seu comentário ao salmo 96, falando da obscuridade
de algumas passagens da Escritura, diz: “Por grande que seja a dúvida que possa
suscitar-se no ânimo do homem ao ouvir a Escritura de Deus, não se afaste de
Cristo. Quando lhe houver sido revelado Cristo naquelas palavras, compreenda
que entendeu, pois antes de chegar ao entendimento de Cristo não presuma haver
entendido.”
Se o mistério de Cristo é o núcleo de toda a Sagrada Escritura, como
então admitir uma leitura bíblica em comum com a sinagoga? Em outro comentário,
Santo Agostinho é mais claro ao falar do Cristo e da Igreja, seu corpo místico
: “O ensinamento e a doutrina desta escola é tal, que vos servirá para entender
não um salmo, mas muitos se aplicais esta regra. Algumas vezes os salmos, e não
apenas os salmos, mas também a profecia, falam de tal modo de Cristo, que só se
referem à Cabeça; outras da Cabeça passam ao Corpo, isto é, à Igreja, sem
parecer que mudaram de pessoa. Isto ocorre porque não se separa a Cabeça do
Corpo, mas que se fala como de um todo. (Super Psalmos, 90). E explanando o
salmo 30, diz o santo doutor: “os profetas falaram de maneira mais obscura
sobre Cristo do que sobre a Igreja, porque viam no Espírito que alguns haveriam
de criar facções contra a Igreja e não levantariam tantos pleitos contra
Cristo. Sobre a Igreja excitariam grandes contendas. Por isto, sobre o objeto
de maiores discussões, as predições foram mais claras e as profecias mais
manifestas, a fim de merecerem o juízo aqueles que viram e fugiram para longe.”
Ressalte-se a importância dessas palavras de Santo Agostinho os
profetas falaram com mais clareza sobre a Igreja. Isto significa
que não se pode ter um conceito vago ou ambíguo da Igreja, como se
fosse uma sociedade sem contorno definido que se confundisse com a humanidade
inteira. Essas palavras de Santo Agostinho arrancam pela raiz a erva daninha do
falso ecumenismo de nossos dias. A Bíblia fala com clareza da Igreja. E a Igreja
não está para ser inventada ou construída conforme uma ideologia qualquer. É a
Igreja Católica que tem dois mil anos de tradição. O falso ecumenismo,
contradizendo a doutrina de Santo Agostinho, isto é, separando a Cabeça do
Corpo, transforma Cristo em monstro, porquanto diz que Cristo, a cabeça, tem
vários corpos, várias igrejas.
Se tal é o conteúdo das profecias, como admitir leitura ecumênica da
Bíblia sem incorrer em doentio subjetivismo? Só será possível semelhante
leitura, se no fundo houver a intenção de desmantelar a Igreja institucional,
fundada por Cristo sobre a rocha de Pedro. Se houver uma nova eclesiologia
herética que negue a Igreja visível ou alargue as suas
fronteiras de modo que venha a compreender todos os que têm algum
tipo de interesse pela Bíblia e assim possam aplicar a si próprios as
profecias, então será possível uma leitura ecumênica da Sagrada Escritura. Em
última análise, para os ecumenistas, se a Bíblia fala de uma igreja, esta só
poderá ser a própria humanidade, representada por todos homens “de boa vontade”
em demanda da unidade.
A meu ver, é exatamente isto que se verifica hoje. Utiliza-se a Bíblia
para promover a revolução mundial. É citada para justificar, louvar qualquer
tipo de comportamento ou iniciativa. Ninguém se sente excluído do amparo da
Bíblia. A Bíblia não condena ninguém. Até os adoradores de Baal poderão hoje
propor uma nova interpretação pelo qual o seu ídolo será tão respeitado quanto
o Deus vivo e verdadeiro.
Não bastasse a sólida doutrina patrística, temos ainda o ensinamento
claríssimo do Catecismo de São Pio X sobre a leitura da Bíblia que diz:
“A leitura da Bíblia não é necessária a todos os cristãos, sendo, como
são, instruídos pela Igreja; mas é contudo útil e recomendada a todos.”
“Só se podem ler as traduções da Bíblia que são aprovadas pela Igreja
porque só Ela é legítima depositária e guarda da Bíblia.”
“O verdadeiro sentido das Sagradas Escrituras podemos conhecê-lo só por
meio da Igreja, porque só a Igreja é que não pode errar ao interpreta-las.”
“Um cristão a quem fosse oferecida a Bíblia por um protestante, ou por
algum emissário dos protestantes, deveria rejeitá-la com horror, por ser
proibida pela Igreja. E, se a tivesse aceitado sem reparar, deveria
logo lançá-la ao fogo ou entregá-la ao próprio pároco.”
Como entender que haja católicos hoje partidários de um falso ecumenismo
que contradiz abertamente toda a doutrina tradicional da Igreja? Isto só se
explica se se recordar que sociedades secretas de especulação
mística sempre pretenderam ver um sentido esotérico na Sagrada Escritura com o
objetivo de reformar o homem, construir um homem novo emancipado de dogmas,
autoridades, enfim, um homem sem nenhum vínculo mas totalmente livre. Em suma,
essas sociedades secretas pretendem estabelecer uma aliança do homem com a
serpente, pretendem induzir o homem a comer do fruto da árvore da ciência do
bem e do mal, de maneira que ele decida para si o que é bom, sem respeitar a
ordem natural das coisas.
Com muita razão dizia Donoso Cortés em 1851, no célebre Ensayo
sobre el catolicismo, liberalismo y socialismo: “Quem não vê nas revoluções
modernas, comparadas com as antigas, uma força de destruição invencível, que,
não sendo divina, é forçosamente satânica? Antes de deixar esse assunto, me
parece coisa oportuna fazer aqui uma observação importante, que proporei à
meditação dos meus leitores. De dois diálogos do anjo das trevas, temos notícia
exata; a primeira foi com Eva no paraíso; a segunda foi com o Senhor no
deserto. Na primeira disse palavras de Deus, desfiguradas a seu
modo; na segunda citou a Escritura, interpretada a sua maneira. Seria temerário
crer que assim como a palavra de Deus, tomada em seu sentido verdadeiro, é a
única que tem o poder de dar a vida, é a única também que, sendo desfigurada,
tem o poder de dar a morte? Se for assim, fica suficientemente explicado por
que as revoluções modernas, nas quais se desfigura mais ou menos a palavra de
Deus, têm essa virtude destruidora.”
Conclui-se, pois, que o diabo, pai da mentira, é também o pai do falso
ecumenismo hoje reinante que corrompe a Palavra de Deus.
Anápolis, 22 de agosto de 2008
Festa do Imaculado Coração de Maria
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