"O homem não é Deus nem tem partícula divina. É absurdo argumentar isso. Não somos onipotentes, nem oniscientes, nem eternos."
Sermão para o 4º Domingo depois da Epifania
29.01.2017 – Padre Daniel
Pinheiro, IBP
Em nome do Pai,
e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.
Ave Maria…
Nós temos hoje o Evangelho da
tempestade acalmada. A barca em que está Jesus Cristo e seus discípulos
significa a Igreja Católica Apostólica Romana. O mar é o mundo, no qual a
Igreja se encontra, visível aos olhos de todos. Na tempestade agitada, podemos
ver as perseguições que sofre a Igreja ao longo de toda a sua história.
A Igreja é perseguida de dois
modos: pela violência externa, física. E aí temos os mártires, aqueles que
aceitaram a morte para permanecerem fiéis a Nosso Senhor Jesus Cristo e à sua
Igreja. Temos os mártires da antiguidade, os mártires no oriente, os mártires
nas mãos dos muçulmanos, os mártires nas mãos dos protestantes e cismáticos, os
mártires do comunismo na Espanha e na Europa do leste, os mártires do nazismo,
os mártires do regime maçônico no México e tantos outros…
O outro modo de perseguir a
Igreja é mais sutil e, em geral, perde mais almas: o erro doutrinário, as
heresias. É delas que trataremos hoje. Alguns podem pensar que a Igreja, ao
longo de sua história, viveu uma grande tranquilidade e que somente agora é que
atravessa uma enorme crise e uma perseguição. Não é verdade. A Igreja, sendo o
corpo místico de Cristo, é perseguida ao longo de toda a sua existência, a
exemplo do próprio Cristo em sua vida pública. É muito útil conhecer algumas
heresias ao longo dos séculos, para que não caiamos nelas novamente e para que
melhor conheçamos a verdade. Os erros se repetem ao longo da história. Veja-se,
por exemplo, a tentativa de conciliar práticas como a astrologia, entendida
seja no sentido de prever o futuro seja como símbolo de forças que governam o
mundo, com a religião católica. A adivinhação, pecado contra o primeiro
mandamento, engloba querer prever o futuro ou conhecer coisas ocultas. Os erros
se repetem com frequência, sob novas aparências.
Vejamos algumas dessas
tempestades agitadas ao longo da história da Igreja. E também como, apesar de
tudo, a Igreja continua a mesma na sua constituição e no seu ensinamento.
Podemos tomar, primeiramente, o período que vai do ano 33 ao ano 325, ano do
Concílio de Nicéia. A primeira heresia foi a heresia dos judaizantes, que
afirmava a necessidade de se manter a lei mosaica, por exemplo, quanto à
circuncisão, quanto aos alimentos, etc. Sendo a lei mosaica uma figura do
Messias, praticá-la significa, ao fundo, que o Messias ainda não veio. Praticar
a lei mosaica é negar que Cristo seja o messias. Heresia condenada no Concílio
de Jerusalém, feito pelos apóstolos, no ano 49.
Em seguida, nos primeiros
séculos do cristianismo, desenvolveu-se a heresia do gnosticismo, que diz existir
uma religião externa para a pessoa comum e um conhecimento mais profundo, do
qual essa religião é símbolo. Esse conhecimento seria reservado a alguns
apenas. O gnosticismo afirma a divindade do homem, que teria em si uma
partícula divina. Nessa heresia, trata-se de levar uma classe de homens
superiores ao conhecimento da própria divindade, a reconhecer a própria
identidade com Deus. Isso se faz por conhecimentos esotéricos e práticas
esotéricas, reservados a alguns, por meios de simbolismos, por exemplo,
astrologia, numerologia, hipnose, às vezes, e outras práticas. Gnosticismo que
afirma também o dualismo, quer dizer, a oposição entre a alma e a matéria. A
matéria é ruim. O espírito é bom. E afirma a existência de dois princípios
equivalentes o bem absoluto e o mal absoluto. Quantos erros, mas bem presentes
em nossa sociedade e que alguns tentam reavivar sob a roupagem de certa
filosofia ou espiritualismo. Esse erro da gnose é o mais pérfido, o mais
enganador e aquele que mais subiste ao longo da história, pois é realmente uma
caricatura do cristianismo. O pecado original é o homem acreditar que é divino:
“Se comerdes desse fruto, sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal”, diz o
demônio a Eva, que come o fruto, apesar da clara falsidade da proposição. O
gnosticismo e seu erro de fundo, a gnose, é absurdo, é uma grande mentira, mas
seduz os homens de diferentes maneiras, sobretudo pela sua pretensão de dar uma
explicação inteligente, “filosófica” da religião. Philip Hughes, historiador da
Igreja, diz que o gnosticismo não desapareceu ao longo da história e que não é
fantasia que uma corrente subterrânea do gnosticismo persiste através dos
tempos. E de tempos em tempos ela aparece sobre a terra com mais clareza.
A Igreja sempre se opôs e
sempre se oporá a tudo isso. A verdade não é isso. O homem não é Deus nem tem
partícula divina. É absurdo argumentar isso. Não somos onipotentes, nem
oniscientes, nem eternos. Adquirimos, por exemplo, inúmeras perfeições ao longo
de nossa vida. Deus já tem todas elas. Nosso Senhor Jesus Cristo e Sua Igreja
nunca transmitiram um conhecimento escondido. O que vos é dito aos ouvidos,
pregai sobre os telhados, diz Nosso Senhor. O verdadeiro conhecimento nos vem
pela fé, pela doutrina ensinada pela Igreja católica. A matéria é boa, tendo
sido criada por Deus e não se opõe ao espírito, mas auxilia a nossa alma,
bastando ser bem ordenada. O mal absoluto não existe, ao contrário do que prega
o gnosticismo. O mal é ausência de ser. O mal absoluto seria a total ausência
de ser, quer dizer, não existiria. O demônio não é princípio equivalente a Deus
ou quase equivalente, mas é uma pobre criatura, com grande capacidade, mas que
nada pode fazer sem a permissão de Deus, que permite os males para que deles
venham um bem superior, como permitiu o pecado original para que daí viesse a
Encarnação do Verbo. Não somos deuses nem temos uma centelha divina em nós.
Podemos participar e nos assemelhar a Deus pela graça santificante, mas nunca
nos identificar com Ele ou nos deificar no sentido estrito, mas permanecemos
inteiramente seres humanos, pobres criaturas. Não existe uma religião para a
pessoa comum e uma outra reservada a poucos. A doutrina católica é uma só para
todos.
Temos também a heresia do
subordinacionismo, que afirma que o Verbo, a segunda pessoa da Santíssima
Trindade, não é propriamente Deus, mas uma criatura excelente, intermediária
entre Deus e o mundo, subordinada a Deus, donde o nome da heresia. Nega a
divindade de Jesus Cristo e a Trindade das pessoas, ambas claramente afirmadas
no Evangelho e confirmadas por Deus pelos milagres. Essa foi uma grave heresia
que existiu ao longo dos séculos II e III.
Outro erro dessa época foi o
Montanismo, uma heresia de fanáticos profetas (falsos), de iluminados e
visionários que queriam independência quanto às autoridades eclesiásticas. Com
pretensos êxtases e dons do Espírito Santo. Montano, em torno do ano 170, se
dizia iluminado e movido pelo Espírito Santo. Esperavam o fim próximo do mundo,
como muitos hoje. Entregavam-se a um rigorismo descabido: proibição de segundo
casamento após a morte do cônjuge, aversão ao casamento pura e simplesmente,
uma mortificação exagerada, irracional, proibição de se esconder nas
perseguições, afirmação de que certos pecados não poderiam ser perdoados, a
proibição de qualquer ornamentação para as mulheres. O erro da heresia é
evidente: querer saber com precisão o fim do mundo, falsos dons recebidos do
Espírito Santo, rigorismo infundado. Infelizmente, Tertuliano, que havia muito
bem defendido a fé católica, deixou-se levar por esse erro grave. Ninguém está
imune de cair, se não vigiar e evitar os perigos para a fé. Quanto se arriscam,
por exemplo, aqueles que leem autores cheios de erros dizendo que levam em
consideração somente o que é bom. Mas nem critério têm para saber o que é bom.
Em seguida, a heresia
do adocionismo, que afirma que Nosso Senhor Jesus Cristo não é o Filho de Deus
segundo a natureza, ou seja, afirma que ele não tem a natureza divina, mas
afirma que Cristo é somente filho adotivo de Deus, o filho adotivo mais
perfeito, mas somente filho adotivo. Teodoto de Bizâncio sustentava essa
gravíssima heresia no ano de 190. Paulo de Samósata, em torno do ano 260,
professou esse mesmo erro. Ora, Cristo é verdadeiramente homem e
verdadeiramente Deus. E, em Cristo, as duas naturezas se unem na pessoa divina
do Verbo. De forma que Jesus Cristo é Filho de Deus segundo a natureza, tem a
mesma natureza de Deus. É Deus de Deus, Deus Verdadeiro de Deus Verdadeiro. Não
se pode dizer nem mesmo que Cristo é filho adotivo de Deus segundo a sua
natureza humana, pois a filiação se refere à pessoa de Cristo e a pessoa de
Cristo é divina. Nós é que somos filhos adotivos, pois não temos a mesma
natureza que Deus, apenas podemos participar da vida divina pela graça santificante.
Outra heresia é o modalismo,
professado por Sabélius, que viveu em torno do ano 200. O modalismo afirma que
o Pai, o Filho e o Espírito Santo não são pessoas distintas, mas apenas modos
de se manifestar da mesma pessoa divina, o Pai. Assim, não há três pessoas
divinas e um só Deus, mas apenas uma pessoa divina, o Pai, que teria sofrido na
cruz. Esse sofrimento de Deus Pai na cruz dá nome a uma variante dessa heresia,
chamada de patripassionismo: o Pai e não o Filho teria sofrido na cruz. As duas
heresias negam a divindade de Cristo e trindade das Pessoas.
Finalmente, nesse primeiro
período das heresias, podemos considerar o maniqueísmo, que vem de Mani,
nascido em 216, oriundo da Persa, mas formado também na Índia. Mani afirmava
que as religiões eram complementares, chamava-se o “apóstolo de Jesus Cristo” e
o intérprete de Buda. Unia as diferentes “tradições religiosas”, negando um
princípio básico, que é o princípio de não contradição. O maniqueísmo é uma
manifestação da gnose, que vai serpenteando ao longo da história, aparecendo
com mais intensidade em alguns momentos, principalmente em momento de crise da
sociedade, como o que vivemos hoje, por exemplo. Os princípios são basicamente
os mesmos do gnosticismo que explicamos há pouco. O esquema é o mesmo: dois
princípios equivalentes, um bom e outro mau. A oposição entre os dois
princípios, sendo que o mau seria criador da matéria e o bom do mundo
espiritual. O maniqueísmo afirma também o aprisionamento da partícula divina na
matéria, o que é particularmente absurdo, como se a divindade pudesse ser presa
por algo. Afirma a identificação com a divindade por meio de um conhecimento
esotérico (às vezes tratado como um conhecimento de si mesmo), reservado a
alguns e que pode ser atingido por certa filosofia, e por certas práticas como
a astrologia, numerologia, e outras. Santo Agostinho deixou-se levar muito
tempo por esse gravíssimo erro, pela aparente erudição de membros da seita,
pela falaciosa ciência astrológica e outras ciências a que às vezes chamam de
“tradicionais” (alquimia, por exemplo). Erro que vai combater vigorosamente
depois de conhecer a Verdade, depois, então, de conhecer realmente Nosso Senhor
Jesus Cristo e sua Igreja, a Católica. Muitos se deixaram levar por essas
fábulas, apresentadas sob capa de erudição. Santo Agostinho diz que, em Roma,
havia vários maniqueus ocultos entre os cristãos, por exemplo. Ainda hoje assim
acontece: muitos se deixam levar por essas fábulas ou sob capa de erudição, de
política ou filosofia, falsa, é claro.
Podemos ver, então, caros
católicos, nesse primeiro período, o quanto a Igreja foi atacada pelos erros,
pelas heresias. Heresias que queriam a manutenção da religião judaica, como se
Cristo, no fundo, não fosse o Messias. Heresias que negavam a Santíssima
Trindade, como o modalismo. Heresias que negavam a divindade de Cristo, como o
adocionismo, o subordinacionismo. Heresia de certos falsos profetas,
visionários e iluminados, com pretensos dons do Espírito Santo, que afirmavam a
independência da autoridade, que afirmavam a impossibilidade do perdão de
certos pecados e que professavam um rigorismo irracional. A gnose sob formas
distintas, com suas práticas esotéricas. Desde sempre a Igreja permaneceu firme
face a esses erros gravíssimos. Ela sempre afirmou a Trindade das pessoas
divinas e a divindade e humanidade de Cristo. A Igreja sempre recusou qualquer
forma de gnose e de esoterismo e suas práticas e ciências. A Igreja sempre
recusou uma suposta religião oculta como base das diferentes religiões. E
sempre continuará assim. Existe uma única religião verdadeira e que todos podem
conhecer: a católica. Esses erros continuam sendo erros hoje. Ao longo dessas
tempestades agitadas, com a Igreja, estava Nosso Senhor Jesus Cristo, não
permitindo que ela se afastasse da verdade, mas assistindo a Igreja para que
ela permanecesse fiel a Nosso Senhor Jesus Cristo em seus ensinamentos. E assim
permaneceu a Igreja e assim permanecerá sempre: fiel, em seu magistério
infalível, àquilo que Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou. A Igreja não perecerá.
E, mesmo sabendo disso, devemos rezar e pedir ajuda ao Senhor, face a tantos
erros, vindos de todos os lados. Peçamos a ajuda de Cristo para que,
permanecendo fiéis à Igreja Católica e à sua doutrina constante, não pereçamos
nós.
Em nome do Pai, e do Filho, e
do Espírito Santo. Amém.
Algumas fontes:
Santo Agostinho.
Confissões.
Philip Hughes. História da
Igreja Católica.
Pietro Parente. Dizionario
di Teologia Dommatica.
Bernardino Llorca. Manuel
de História Eclesiástica.
Richard M. Hogan. Dissent from
the Creed. Heresies past and present.
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