"A heresia ariana nega a divindade do Verbo, afirmando que o Verbo tem natureza inferior ao Pai. Assim, para o heresiarca Arius, o Verbo é filho de Deus Pai não em sentido próprio e natural, mas somente adotivo."
Sermão para o Domingo da Sexagésima
19.02.2017 – Padre Daniel
Pinheiro, IBP
Em nome do Pai,
e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.
Ave Maria…
Como dissemos há três domingos, a história da Igreja se
assemelha àquela barca em meio à tempestade agitada. A Igreja é perseguida, ao
longo de sua história, às vezes com violência externa, física. E, muitas vezes,
pelos erros contra a fé, as heresias, que, em geral, perdem mais almas do que a
perseguição física, violenta. Vimos como é importante conhecer um pouco essas
heresias para evitarmos a queda nelas, pois os erros com bastante frequência
reaparecem revestidos com nova roupagem, ou com algumas atenuações, mas que não
lhes tiram a condição de erro.
Chegamos, então, ao início do século quarto, momento em que
surge a heresia ariana, que tira o seu nome de Arius, padre da cidade de
Alexandria que havia feito seus estudos em Antioquia. A heresia ariana nega a
divindade do Verbo, afirmando que o Verbo tem natureza inferior ao Pai. Assim,
para o heresiarca Arius, o Verbo é filho de Deus Pai não em sentido próprio e
natural, mas somente adotivo. Nega, então, a divindade de Cristo, que é o Verbo
Encarnado. Negar a divindade do Verbo e negar, consequentemente, a divindade de
Cristo é destruir a redenção operada por Nosso Senhor Jesus Cristo. Jesus
Cristo nos redimiu por ser verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Sendo
Deus, suas ações têm valor meritório infinito. Sendo homem, Ele é a nossa
cabeça e repara em nosso nome. Se a divindade de Cristo é negada, e ele é uma
criatura, suas ações são limitadas, finitas, não sendo suficientes para
satisfazer pelos nossos pecados, que são uma ofensa infinita a Deus. Não haveria,
então, redenção. Se Cristo não fosse homem, ele não agiria como nosso mediador,
como nossa cabeça e também não haveria redenção. Portanto, negar a divindade ou
a humanidade de Cristo, é destruir a nossa redenção, a nossa salvação. E são
inúmeras as heresias que negam uma coisa ou outra. A heresia de Arius negava a
divindade de Cristo e a trindade das pessoas divinas, e decorria de alguns
erros precedentes, como a heresia gnóstica e o adocionismo, por exemplo.
Arius foi condenado pelo seu Bispo em Alexandria e pelo Concílio
de Nicéia, o primeiro Concílio Ecumênico depois do chamado Concílio de
Jerusalém, feito pelos apóstolos para resolver a questão dos judaizantes. No
Concílio de Nicéia, em 325, ficou estabelecido que o Verbo é consubstancial ao
Pai, quer dizer, que Ele tem a mesma natureza divina de Deus Pai. E assim
cantamos ainda hoje na Missa, durante o Credo. Todavia, Arius continuou a
propagar os seus erros com suas composições literárias, chamadas de Thalia, um
misto de poesia e prosa para o povo. Interessante notar como já se propagavam
os erros por esses meios artísticos e culturais. Ainda hoje se faz isso e com
muita abundância. Erros contra a fé e contra a moral são espalhados, por
exemplo, por meio de romances, músicas, filmes, desenhos, jogos… E muitos
ingenuamente acham que essas coisas são inofensivas por definição. Na
esmagadora maioria dos casos, não são inofensivas.
Mesmo depois da condenação pelo Concílio de Nicéia, o arianismo
continuou sendo afirmado por inúmeros clérigos – incluindo padres e bispos -,
professado também por grande parte do povo e alcançou difusão enorme. O
imperador romano da época, Constantino, chegou, em determinado momento, a
favorecer essa heresia. Os arianos passaram a se esconder atrás do
semi-arianismo, após o Concílio. No lugar de negar claramente a divindade do
Verbo, passaram a afirmar que o Verbo é semelhante ao Pai. Outros passaram a
dizer que o Verbo é de substância semelhante ao Pai. Ou seja, não afirmavam que
o Verbo era da mesma substância que o Pai, consubstancial ao Pai. Era um jeito
light de favorecer a heresia, procurando atenuá-la. Depois de uma heresia, em
geral, surge a heresia em forma atenuada, a semi-heresia, que muitas vezes
causa mais estragos do que a heresia plenamente afirmada. A principal figura
contra a heresia ariana foi Santo Atanásio.
Outra heresia de meados do século IV é o apolinarismo.
Apolinário, Bispo de Laodicéia afirma a natureza divina de Cristo, mas nega uma
natureza humana completa em Cristo. Apolinário afirmava que Cristo tinha uma
natureza humana composta somente de corpo e de uma alma sensível, isto é,
Cristo não tinha uma inteligência humana nem uma vontade humana, mas o próprio
Verbo exercia essas funções em Cristo. Temos aqui o erro contrário ao
arianismo: a negação de uma verdadeira natureza humana em Cristo. Sem uma
inteligência e uma vontade humanas, não se pode falar de verdadeira natureza
humana. Sem a natureza humana completa e verdadeira, Cristo não poderia também
nos salvar. O erro de Apolinário também impediria a nossa redenção. A teoria de
Apolinário é uma reação exagerada ao arianismo. Querendo afirmar a divindade de
Cristo, termina por negar a Cristo uma verdadeira natureza humana. Apolinário
foi deposto e condenado pelo Papa Damásio em 377 e 382.
Ainda no século IV surgiu também o erro donatista, que tira seu
nome de Donato, grande organizador dessa heresia. O donatismo afirma que a
validade dos sacramentos depende da santidade do ministro do sacramento. Dizem,
então, que se o ministro estiver privado da graça, se ele se encontra em pecado
mortal, o sacramento seria inválido. Isso é falso. A validade do sacramento, na
verdade, não depende da santidade do ministro que o administra. A graça
transmitida no sacramento não é a graça do ministro, mas de Cristo. Até mesmo
um herege pode batizar validamente, por exemplo, se ele batiza com água,
dizendo as palavras corretas do Batismo e querendo fazer o que a Igreja faz,
ainda que ele tenha uma concepção errada do que a Igreja faz. Um padre em
pecado confessa e absolve os pecados validamente, se as outras condições são
observadas. O donatismo está ligado ao rigorismo dos montanistas, de que
falamos no sermão precedente sobre as heresias.
Já no século V, a Igreja é agitada pela heresia do pelagianismo,
difundida particularmente pelo monge bretão Pelágio. O pelagianismo é uma
heresia que afirma o naturalismo, quer dizer, afirma que o homem pelas suas
próprias forças naturais, sem o auxílio da graça de Deus, pode evitar todo
pecado e conquistar o céu, ver Deus face a face. O que é absurdo pois ver Deus
face a face é sobrenatural, está acima de nossa natureza, de suas exigências e
forças. Pelágio afirma, então, que pelas nossas simples forças naturais nós
podemos chegar acima da nossa natureza, o que é contraditório. Os erros do
pelagianismo são: i) afirmar que o pecado de Adão, o pecado original,
prejudicou somente ao próprio Adão e afirmar que o pecado de Adão não se
transmite aos seus descendentes; ii) afirmar que as crianças nascem sem o
pecado original, portanto inocentes e unidas a Deus; iii) afirmar que as
crianças mortas sem o batismo alcançam a vida eterna; iv) afirmar que o homem
com as suas forças naturais e com a sua liberdade pode evitar todo pecado e
alcançar a visão beatífica; v) afirmar que a graça de Deus não é necessária
para evitar o pecado, para nos manter unidos a Deus e para chegar à vida
eterna; vi) afirmar que a graça de Cristo é somente o seu exemplo; vii) afirmar
que a redenção não é a regeneração do homem pela graça de Deus na alma, mas que
a redenção é um chamado para uma vida mais elevada a ser conquistada com as
próprias forças.
O pelagianismo é um humanismo, de um otimismo irracional.
Modernamente, foi retomado por Rousseau, por exemplo, com o seu mito do bom
selvagem. É retomado também nos sistemas de educação que deixam a criança (ou o
jovem) entregue a si mesma. O pelagianismo é a destruição completa da ordem
sobrenatural. Qualquer um sabe, por experiência própria e alheia, que o homem
nasce com as feridas do pecado original, com inclinação para o erro, para mal
(bem aparente), para uma deleitação desordenada dos bens sensíveis. Qualquer um
sabe que, pelas suas próprias forças, não consegue vencer de modo duradouro o
pecado, ainda menos todo pecado. O pelagianismo esvazia a redenção feita por
Nosso Senhor Jesus Cristo, colocando-o simplesmente como exemplo e não como a
cabeça de um corpo místico que transmite o vigor para os membros do corpo. Para
o pelagianismo, é o homem que se redime a si mesmo, com as suas próprias
forças. A ajuda divina nem é necessária para eles. Santo Agostinho combateu
veemente o erro pelagiano, reconhecendo a sua gravidade ao abandonar o homem a
si mesmo, ao negar a redenção de Cristo. Na verdade, a redenção se faz pela
graça de Deus unida à cooperação do homem a essa mesma graça. O pelagianismo
foi condenado inúmeras vezes pela Igreja. Por exemplo, no Concílio de Éfeso.
Depois do pelagianismo, surge o semi-pelagianismo. Mais uma vez,
a semi-heresia, que tenta fazer uma certa síntese entre a heresia e a verdade.
A síntese entre o erro e a verdade só pode ser ela mesma um erro. Mas a heresia
mitigada e mais misturada com a verdade engana mais facilmente as pessoas e
atrai muitas vezes aquelas que estão cansadas da oposição ao erro e buscam uma
via de conciliação, de pacificação. Por isso, a semi-heresia tende a
conquistar, muitas vezes, mais adeptos. Mas lembremos sempre: a mistura de erro
e verdade é sempre um erro. O semi-pelagianismo afirma que não se requer a
graça para começar a ter fé ou para começar a se santificar, mas somente para
completar a fé e a santificação. Afirma também que a perseverança final é fruto
simplesmente de nossos méritos. Ao
contrário, a verdade é que a graça é necessária para qualquer ato, mesmo
inicial, da vida sobrenatural. A fé e a santificação, mesmo no seu primeiro
início, só podem existir com a graça de Deus. E sem a graça divina é impossível
perseverar até a morte e alcançar a vida eterna. O semi-pelagianismo foi
combatido, entre outros, por São Cesário de Arles. Foi condenado no Concílio de
Orange, aprovado pelo Papa Bonifácio II.
Entre essas heresias, o arianismo, o donatismo e o pelagianismo
chegaram a alcançar grande difusão. O arianismo e o pelagianismo também nas
suas formas mitigadas. O combate dos católicos contra esses erros foi árduo,
mas a verdade terminou triunfando. Para o arianismo, São Jerônimo diz que o
mundo inteiro acordou com um gemido para encontrar-se ariano. A adesão ao erro
foi imensa. Os arianos tinham mesmo a maior parte das igrejas, dos templos para
o culto. Santo Atanásio, bispo de Alexandria exilado, escrevendo ao seu
rebanho, dizia” eles, os hereges, têm as igrejas, os lugares de culto, mas que
vocês têm a verdadeira fé que habita em vocês.” Também o donatismo chegou a
cooptar vários bispos. O pelagianismo igualmente teve uma considerável
penetração nos meios católicos.
Nos séculos quarto e quinto, os erros foram muitos e se
apresentaram com vigor. A verdade, porém, triunfou. A defesa da fé, pelos que a
guardaram, foi firme. Vale também a lição a propósito da semi-heresia, desse
erro que se mistura com mais elementos de verdade para mais facilmente enganar.
Essa síntese entre o erro e a heresia que atrai aqueles que desejam uma
pacificação a todo preço, essa síntese que só pode ser ela mesma um erro.
Vivemos nós uma imensa crise de fé. Não é só uma ou outra verdade de fé que é
atacada ou negada, mas toda a religião católica com seu fundamento que é
negada. E, muitas vezes, diante de tão imensa catástrofe é grande a tentação de
aceitar erros menores. É grande a tentação de aceitar erros misturados com a
verdade, a fim de encontrar apoio, a fim de encontrar uma certa pacificação.
Nosso apoio não pode estar no erro, nem no menor deles. Nosso apoio deve estar
na verdade, na verdade que nos foi revelada por Deus. A pacificação não pode
também encontrar-se fora da verdade, fora de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não se
pode transigir ou negociar com a verdade, ainda mais com a verdade que nos foi
revelada por Deus e que a Igreja Católica nos ensina.
Em nome do Pai…
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