"O homem que tem dois filhos é Deus que tem dois povos: o filho mais velho é o povo judeu; o menor, os gentios."
PRÓLOGO
Disse Jesus: “Um homem tinha
dois filhos. O mais moço disse a seu pai: Meu pai, dá-me a parte do patrimônio
que me toca. O pai então repartiu entre eles os haveres. Poucos dias depois,
ajuntando tudo o que lhe pertencia, partiu o filho mais moço para um país muito
distante, e lá dissipou sua herança vivendo dissolutamente. Depois de ter
esbanjado tudo, sobreveio àquela região uma grande fome: e ele começou a passar
penúria. Foi pôr-se a serviço de um dos senhores daquela região, que o mandou
para os seus campos guardar porcos. Desejava ele fartar-se das vagens que os
porcos comiam, mas ninguém lhas dava. Entrando então em si e refletiu: ‘Quantos
empregados há na casa de meu pai, que têm pão em abundância, e eu, aqui, a
morrer de fome! Levantar-me-ei e irei a meu pai, e dir-lhe-ei: Meu pai, pequei
contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me
como a um dos teus empregados’.
Levantou-se, pois, e foi ter
com seu pai. Estava ainda longe, quando seu pai o viu e, movido pela misericórdia,
correu-lhe ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou. O filho lhe disse
então: ‘Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser
chamado teu filho’. Mas o pai disse aos servos: ‘Trazei-me depressa a melhor
(primeira) veste e vesti-lha, e ponde-lhe um anel no dedo e calçado nos pés.
Trazei também o bezerro cevado e matai-o; comamos e festejemos… Este meu filho
estava morto, e reviveu; tinha-se perdido e foi achado’. E começaram a festa…”
Não é necessário determo-nos em
assunto de que já tratamos; mas se não é o caso de nos demorarmos, sim o é de
rememorarmos. Vossa prudência ainda lembra que no domingo passado comentei a
parábola, lida no Evangelho de hoje, a do filho pródigo, comentário que no
entanto não pude concluir. Deus Nosso Senhor quis, porém, que, passada aquela
tribulação, possamos hoje continuar a falar.
Sinto-me obrigado a pagar a
dívida do sermão, porque as dívidas de amor sempre devem ser pagas. Assista-me
Deus para que meus poucos recursos possam satisfazer a vossa expectativa.
II
O homem que tem dois filhos é
Deus que tem dois povos: o filho mais velho é o povo judeu; o menor, os gentios.
O patrimônio que este recebeu
do Pai é a inteligência, a mente, a memória, o engenho e tudo o que Deus nos
deu para que o conhecêssemos e lhe déssemos culto. Tendo recebido este
patrimônio, o filho menor “partiu para um país muito distante”. Distância
significa: o esquecimento de seu Criador. “Dissipou sua herança vivendo
dissolutamente”: gastando e não ajuntando; malbaratando tudo o que tinha e não
adquirindo o que não tinha, isto é, consumindo toda sua capacidade em luxúria,
em ídolos, em todo tipo de desejos perversos, aos que a Verdade denominou
meretrizes.
III
Não é de admirar que essa orgia
acabasse em fome. “Sobreveio àquela região uma grande fome”; fome não de pão
visível mas da verdade invisível. E, por causa da fome, “foi pôr-se a serviço
de um dos senhores daquela região”: entenda-se o diabo, o senhor dos demônios,
sob cujo poder caem todos os curiosos, pois a curiosidade é o pestilento
abandono da verdade.
À margem de Deus, por
entregar-se a seus próprios recursos, foi submetido à servidão e lhe tocou o
ofício de apascentar porcos, o que significa a servidão mais extrema e imunda
que costuma alegrar os demônios: não foi por acaso que o Senhor, quando
expulsou a legião dos demônios, permitiu que entrassem na piara de porcos.
Alimentava-se então das vagens
de porcos sem poder saciar-se. Vagens são as vistosas doutrinas do mundo:
servem para ostentar mas não para sustentar; alimento digno para porcos, mas
não para homens: próprias para dar aos demônios deleitação, mas não aos fiéis
justificação.
IV
Até que, por fim, tomou
consciência do lugar em que tinha caído; do quanto tinha perdido; Quem tinha
ofendido e a quem se tinha submetido. Reparai no que diz o Evangelho: “Entrando
em si…”; primeiramente, voltou-se para si e só assim pôde voltar para o pai.
Dizia talvez: “O meu coração me abandonou (isto é: saí de mim mesmo)” (Sl
40,13); daí que fosse necessário, antes, voltar para si mesmo e assim perceber
que se encontrava longe do Pai. É o que diz a Escritura quando increpa a
alguns, dizendo: “Voltai, pecadores, ao coração! (isto é: voltai, pecadores, a
vós mesmos!)” (Is 46,8). Voltando para si mesmo, encontrou-se miserável: “Encontrei,
diz ele, a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor” (Sl 116,3-4).
“Quantos empregados, diz ele, há na casa de meu pai, que têm pão em abundância,
e eu, aqui, a morrer de fome!” (…)
V
Levantou-se e voltou. Ele,
caído por terra depois de contínuos tropeços. O pai o vê ao longe e sai-lhe ao
encontro. É dele que fala o Salmo: “Entendeste meus pensamentos de longe” (Sl
139,2). Que pensamentos? Aqueles que o filho tinha em seu interior:
“Levantar-me-ei e irei a meu pai, e dir-lhe-ei: Meu pai, pequei contra o céu e
contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como a um dos
teus empregados”. Ele ainda nada tinha dito, só pensava em dizer. O pai, porém,
ouvia como se o filho já o estivesse dizendo.
Por vezes, em meio a uma
tribulação ou tentação, alguém pensa em orar, e, no próprio ato de pensar o que
irá dizer a Deus na oração, considera que é filho e que, como tal, tem direito
a reivindicar a misericórdia do Pai. E diz de si para si: “Direi a meu Deus
isto e aquilo; não temo que, em lhe dizendo isto, e chorando, não seja eu
atendido pelo meu Deus”. Geralmente, Deus já o está atendendo quando ele diz
estas coisas; e mesmo antes, quando as cogita, pois mesmo o pensamento não está
oculto ao olhar de Deus. Quando o homem delibera orar, já lá está Aquele que lá
estará quando ele começar a oração.
E assim se diz em outro Salmo:
“Eu disse: confessarei minha iniqüidade ao Senhor” (Sl 32,5). Vede como se
trata ainda de algo interior a ele, de um mero projeto e, contudo, acrescenta
imediatamente: “E tu já perdoaste a impiedade de meu coração” (Sl 32,5). Quão
próxima está a misericórdia de Deus daquele que se confessa! Não, Deus não está
longe de quem tem um coração contrito, como está escrito: “Deus está próximo
dos que trituram seu coração” (Sl 34,19). E neste triturar seu coração no país
da penúria, retornava ao coração para moê-lo. Soberbo, abandonara seu coração;
irado com santa indignação, a ele retorna.
Indignou-se contra si mesmo,
contra o mal que há em si, para se emendar; retornou para merecer o bem do pai.
Indignou-se conforme a sentença: “Irai-vos para não pecar” (Sl 4,5). Pois quem
está arrependido fica irado e, por estar indignado consigo mesmo, se pune.
Daí surgem aquelas práticas
próprias do penitente que verdadeiramente se arrepende, verdadeiramente se dói,
sente ira contra si mesmo. Certamente, é indício dessa ira o bater no peito: o
que a mão faz externamente, a consciência o faz internamente: golpeia-se nos
pensamentos, ou melhor, produz a morte em si mesmo. E, matando-se, oferece a Deus
o “sacrifício de um espírito atribulado. Deus não despreza um coração contrito
e humilhado” (Sl 51,19). E, assim, raspando, quebrando, humilhando seu coração,
leva-o à morte.
VI
Embora tivesse ainda somente a
disposição de falar ao pai, cogitando em seu interior: “Levantar-me-ei e irei a
meu pai, e dir-lhe-ei…”, o pai, que de longe já conhece essas cogitações, foi
ao seu encontro.
Que significa “ir ao encontro”
senão antecipar-se pela misericórdia? Pois, “estava ainda longe, quando seu pai
o viu, e, movido pela misericórdia, correu-lhe ao encontro”. Por que foi movido
pela misericórdia? Porque o filho tinha confessado sua miséria. “E correndo-lhe
ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço”, isto é, pôs o braço sobre o pescoço
dele.
Ora, o braço do Pai é o Filho:
deu-lhe, portanto, Cristo para carregar: uma carga que não pesa, mas alivia.
“Meu jugo é suave, diz Cristo, e meu fardo é leve” (Mt 11,30). Ele se apoiava
sobre o que estava de pé e, por apoiar-se, impedia-o de tornar a cair. Tão leve
é o fardo de Cristo que não só não pesa, mas, pelo contrário, até ergue.
Não que o fardo de Cristo seja
uma carga dessas que se chamam leves (não há carga, por mais leve que seja, que
não tenha algum peso). Pode-se carregar um fardo pesado, um fardo leve ou,
ainda, não carregar fardo algum. Anda oprimido quem carrega fardo pesado; menos
oprimido quem leva uma carga leve (embora também ande oprimido); com os ombros
totalmente desembaraçados, quem não carrega fardo algum. Não é dessa ordem o
fardo de Cristo, mas um fardo tal que convém carregá-lo para sentir-se
aliviado; se nos desvencilharmos dele, mais carregados nos sentiremos.
E que esta nossa afirmação,
irmãos, não vos pareça absurda! Talvez encontremos alguma comparação que vos
torne plausível, até em termos de nossa experiência sensível, o que estou
dizendo. Um caso, também ele, espantoso e totalmente incrível.
É o seguinte: considerai as
aves. Toda ave carrega o peso de suas asas: não reparastes como, quando descem
ao chão, recolhem as asas para poder descansar e como que as levam nos
costados? Julgais que estão oprimidas pelo peso das asas? Tirai-lhe este peso e
cairão: quanto menos pesarem as asas, menos pode a ave voar.
Alguém que, a título de
misericórdia, as privasse deste peso, não estaria sendo misericordioso. A
verdadeira misericórdia está em poupar-lhes esta privação e, se já perderam as
asas, em dar-lhes alimento para que readquiram asas pesadas e possam arrancar-se
da terra e voar. É bem este o peso que desejava o salmista: “Quem me dará asas
como as da pomba para que eu voe e encontre meu repouso?” (Sl 55,7)
Assim, o peso do braço do Pai
sobre o pescoço do filho não o carregou, mas o aliviou; foi-lhe honroso e não
oneroso. Como é, pois, o homem capaz de carregar consigo a Deus se não é porque
o está carregando, o Deus que ele carrega?
VII
E o Pai ordena que o vistam com
a primeira veste, aquela que Adão perdera ao pecar. Tendo recebido o filho em
paz, tendo-o beijado, ordena que lhe dêem uma veste: a esperança de
imortalidade, conferida no Batismo. Ordena que lhe dêem um anel, penhor do
Espírito Santo; calçado para os pés, como preparação para o anúncio do
Evangelho da paz, para que sejam formosos os pés dos que anunciam a boa nova.
Estas coisas Deus faz através
de seus servos, isto é, os ministros da Igreja. Acaso eles podem, por si
próprios, dar veste, anel e calçados? Não, apenas cumprem seu ministério,
desempenham seu ofício; quem dá é Aquele de cujo depósito e de cujo tesouro são
extraídos estes dons.
Mandou também matar o bezerro
cevado, isto é, que fosse admitido à mesa em que o alimento é Cristo morto.
Mata-se o bezerro para todo aquele que, de longe, vem para a Igreja, na qual se
prega a morte de Cristo e no seu corpo o que vem é admitido. Mata-se o bezerro
cevado porque o que se tinha perdido foi encontrado.
Do
Comentário sobre o Filho Pródigo, de Agostinho de Hipona, Santo Dr. da Igreja.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Antes de postar seu comentário sobre a postagem, leia: Todo comentário é moderado e deverá ter o nome do comentador. Comentário que não tenha a identificação do autor (anônimo), ou sua origem via link e ainda que não tenha o nome do emitente no corpo do texto, bem como qualquer tipo de identificação, poderá ser publicado se julgar pertinente o assunto. Como também poderá não ser publicado, mesmo com as identificações acima tratadas, caso o assunto for julga impertinente ou irrelevante ao assunto. Todo e qualquer comentário só será publicado se não ferir nenhuma das diretrizes do blog, o qual reserva o direito de publicar ou não qualquer comentário, bem como de excluí-los futuramente. Comentários ofensivos contra a Santa Madre Igreja não serão aceitos. Comentários de hereges, de pessoas que se dizem ateus, infiéis, de comunistas só serão aceitos se estiverem buscando a conversão e a fuga do erro. De indivíduos que defendem doutrinas contra a Verdade revelada, contra a moral católica, de apoio a grupos ou ideias que contrários aos ensinamentos da Igreja, ao catecismo do Concílio de Trento, ferem, denigrem, agridem, cometem sacrilégios a Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, a Mãe de Deus, seus Anjos, Santos, ao Papa, ao clero, as instituições católicas, a Tradição da Igreja, também não serão aceitos. Apoio a indivíduos contrários a tudo isso, incluindo ao clero modernista, só será publicado se tiver uma coerência e não for qualificado como ofensivo, propagador do modernismo, do sedevacantismo, do protestantismo, das ideologias socialistas, comunistas e modernistas, da maçonaria e do maçonismo, bem como qualquer outro tópico julgado impróprio, inoportuno, imoral, etc. Alguns comentários podem ser respondidos via e-mail, postagem de resposta no blog, resposta do próprio comentário ou simplesmente não respondido. Reservo o direito de publicar, não publicar e excluir os comentários que julgar pertinente. Para mensagens particulares, dúvidas, sugestões, inclusive de publicações, elogios e reclamações, pode ser usado o quadro CONTATO no corpo superior do blog versão web. Obrigado! Adm do blog.