“Muitas outras coisas porém
há ainda, que fez Jesus: As quais se se escrevessem uma por uma, creio que nem
no mundo todo poderiam caber os livros, que delas se houvessem de escrever.”
Autor
–
A tradição é unânime em atribuir o quarto Evangelho a S. João. Todos os Padres
que falam deste Evangelho proclamam seu autor o apóstolo S. João, o discípulo a
quem Jesus amava; apenas a seita dos Aloges, que negava a Divindade do Verbo,
discordou desta opinião geral. Análogas razões têm compelido a moderna
incredulidade a duvidar da autenticidade deste importante documento Apostólico.
João era filho de Zebedeu, que exercia a profissão de pescador no lago Genesaré
na Galileia, e residia, segundo as melhores probabilidades, em Betsaida. Sua
mãe Salomé fazia parte das piedosas mulheres galileias que seguiam Jesus (Mc 15, 40) e que o acompanhavam nas suas
viagens a Jerusalém. João e seu irmão Tiago, cognominado Maior, juntos com
Simão e André (Lc 5, 7-10; Jo 21, 2)
ajudavam seu pai no exercício da sua profissão. Quando S. João Batista iniciava
sua pregação na Peréia, o evangelista alistou-se entre seus discípulos e ficou
com ele até ao dia em que o Batista lhes ensinou que Jesus era o Filho de Deus, o Cordeiro Redentor do Mundo. João e André, confiados na palavra do
mestre, foram com Pedro e Filipe e Natanael procurar Jesus, sendo os primeiros
que ao Divino Mestre se juntaram (Jo 1,
35).
Um ano mais tarde Jesus escolhe os doze
Apóstolos e a lista insere S. João ao lado de Pedro (At 1, 13). S. João ocupou desde o princípio um lugar proeminente no
Colégio Apostólico. Ele, Tiago e Simão formavam por assim dizer a companhia
dileta do salvador. Jesus Cristo mudou o nome a Simão chamando-lhe Pedro, e a
João e Tiago Boanerges, que quer
dizer filho de trovão (Mc 3 ,17). S.
João era o discípulo amado, que mereceu acompanhar o Mestre até ao suplicio da
Cruz, recebendo ali o legado que Jesus Cristo deixou à humanidade, por ele
representada no Calvário, a Sua própria mãe, - Maria, - quando lhe dirigiu
aquelas palavras: Ecce mater tua, que
a grei cristã ainda agora escuta reverente.
Depois da descida do Espírito Santo, ele é
o primeiro com S. Pedro a meter ombros à empresa de salvar o mundo, fundando a
Igreja de Jerusalém. Prega com o Príncipe dos Apóstolos, partilha das suas
alegrias e participa das suas angústias. Partem ambos para Samaria (At 8, 14) exercendo o seu ministério
junto dos neoconversos.
A primitiva Igreja hierosolimitana
considerava-o como uma das colunas cobre as quais se erguia a casa de Deus.
Não sabemos ao certo quanto tempo durou o
seu apostoladona Palestina; Barônio, Anais
ecl. 48, seguindo Nicéforo, crê que chegou ao ano 48, época da morte da SS.
Virgem; porém é certo que no ano 50 ainda estava em Jerusalém, pois o encontrou
S. Pedro (Gal. 2, 9). Está porém bem
averiguado que mais tarde partiu para Éfeso, onde continuou os seus trabalhos
apostólicos, e onde esteve até ao fim do primeiro século. Do Oriente veio para
Roma, quando S. Pedro e S. Paulo tinham acabado der sofrer o martírio.
Reservou o Céu para o discípulo dileto a
mesma coroa. Perseguido, preso, foi lançado numa caldeira de azeite fervendo,
porém Deus destinava-o para outros trabalhos. Escapada morte iminente, e é
recolhido na ilha de Patmos, onde escreve o Apocalipse 14 igitur anno secundam post Neronem persecutionem movente Domitiano, in
Patmos insulam relegatus scripsit Apocalypsim, S. Jeronymo, de Virgille
fundado numa passagem de S. Irineu. Segundo S. Epifânio ali morreu com 94 anos.
Caráter
do Evangelho de S. João – Este quarto Evangelho é inteiramente diferente dos
três primeiros. É uma obrar à parte, escrita com intuitos diversos daqueles que
tiveram os outros Evangelistas, tem um caráter acentuadamente polêmico, ao qual
tudo está subordinado na escolha dos fatos da vida de Jesus, cuidadosamente
referidos pelo autor. Certamente, porque isso ressalta da leitura do seu
Evangelho, S. João quis estabelecer a divindade de Jesus, combatendo as seitas
nascentes e os adversários que negavam este dogma capital, suprindo também uma
lacuna dos Evangelhos sinópticos, que omitem quase completamente os fatos
relativos aos dois primeiros anos da vida pública de Jesus, o que S. João narra
desenvolvidamente, mas narra-os com a mesma e constante preocupação, de fazer
crer em Jesus Cristo como filho de Deus, para que os homens acreditassem na sua
natureza Divina, na sua Onipotência, na sua caridade e na sua ressurreição.
No prólogo, tão breve como sublime, o
Evangelista diz desde logo que o Verbo existia desde toda a Eternidade, que é a
luz e a vida por essência, conhecimento e atividade infinitos, tornado pela
Encarnação princípio de fé e origem da vida sobrenatural das almas. É a grande
verdade que o Evangelista estabelece, e cuja prova vai fazendo em todos os
capítulos subsequentes. Fonte da vida em
Caná, no poço de Jacó, na multiplicação dos pães, na cura dos enfermos, na
ressurreição dos mortos. Ressurrectio et
vita, ressurreição e vida. Luz verdadeira curando o cego de nascimento, mas
sobretudo luz nos seus ensinos, nas suas revelações, na exposição da doutrina
em seu Pai celestial. E com este norte todos os fatos que S. João relata tem
por fim conduzir a um discurso onde simboliza a mesma ideia – Jesus Cristo Deus
– combatendo o gnosticismo, os corintianos, docetas, etc.
Data
e lugar da composição do Evangelho de S. João – Segundo os
melhores e mais abalizados autores foi composto depois do Martírio de S. Pedro
e S. Paulo, isto é depois do ano 67. Jo
21, 19. De fato a maneira como S. João fala de Jerusalém e os seus
arredores, faz supor que a cidade santa já não existia, contudo também não
passa muito do ano 70, pois que viviam ainda muitos dos discípulos e entre eles
S. André.
As palavras Verbo, vida, luz, trevas não familiares aos gnósticos, mostram que
ele escrevia quando eram conhecidos os erros do gnosticismo, que ele se
propunha refutar, o que comprova datar dos fins do primeiro século.
Quanto ao lugar, os autores, com S.
Irineu, indicam a cidade de Éfeso, embora alguns outros opinem por Patmos.
Este Evangelho, destinado à Igreja
Universal, foi dirigido duma maneira especial às Igrejas da Ásia menor e à sua
metrópole, Éfeso, onde S. João tinha trabalhado, e cujas necessidades o
determinaram a escrever.
Plano
deste Evangelho –
O Evangelista, supondo nos leitores uma noção geral do Evangelho, dirige a sua
obra para a demonstração da verdade que se propunha defender.
Como já dissemos, começa por estabelecer a
Divindade e Eternidade do Verbo, as suas relações com a humanidade, depois a
exposição histórica de fatos e discursos que confirma a s premissas expostas.
Esta narração começa (1, 15) pelo
testemunho que S. João Batista dá da divindade de Jesus. Os discípulos seguem o
Salvador que abandona com eles a Peréia, sai para a Galiléia, onde realiza o
milagre de Caná. A seguir, a primeira festa da Páscoa e novos milagres de
Jesus, narra a conversação do mestre com Nicodemos e assenta que a missão do
Filho de Deus é salvar o mundo pela fé, 3, 1-21. Contra os batismos de S. João,
o acolhimento que Jesus teve na Judéia, e na volta para a Galiléia, passando
pela Samaria; o encontro de Jesus com a Samaritana, perto de Siquém, e a cura
milagrosa do filho do Centurião, em Cafarnaum.
Vai Jesus a Jerusalém pela festa dos
Purim, cura um doente no sábado, mostra Jesus apresentando-se como Filho de
Deus, essencialmente igual ao Pai, confirmando com textos da Escritura.
Passa a descrever os sucessos da segunda
Páscoa, o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, a promessa da
Eucaristia, a festa dos Tabernáculos, com a entrada Triunfal de Jesus; a
passagem da mulher adúltera, a cura do cego de nascimento, as diversas fases
por que passa a opinião pública a respeito de Jesus, que abertamente se
declarou de nome Filho de Deus; a viagem a Betânia, a ressurreição de Lázaro, o
recolhimento na montanha, e a volta de Jerusalém, no meio das mais estrepitosas
aclamações. E por este fato termina S. João a história da vida ativa e pública
de Jesus (12).
Descreve depois a ceia, a traição de
Judas, a despedida de Jesus Cristo, a promessa da descida do Espírito Santo, e
de se encontrarem juntos depois duma corta separação, e a oração que Jesus
dizia a seu Eterno Pai, cc. 13 e 14.
Lê-se imediatamente a história da Paixão
desde o horto das Oliveiras ao Calvário e a história da ressurreição, que
apresenta circunstâncias que se não leem nos Evangelhos sinópticos.
Autenticidade –
Argumentos extrínsecos:
1º
Testemunhas formais da antiguidade – Nenhum destes testemunhos sobrepuja o de S. Irineu bispo de Lião, nascido e
educado na Ásia, onde foi discípulo de S. Policarpo, que foi discípulo de S.
João. Eis o que nos diz este ilustre doutor: “Em seguida também João, discípulo
do Senhor, sobre cujo peito repousou, publicou um Evangelho, enquanto residia
em Éfeso na Ásia (Haer., 31 1)”.
Estas palavras são tão claras, a informação é completa, o testemunho é duma
competência e duma autoridade tão grande, que, ainda que não possuíssemos
outro, devíamos ter por indubitável a autenticidade do Evangelho de S. João.
Porém não ficamos reduzidos a este só testemunho; o Ocidente e o Oriente
unem-se para o corroborar. A Igreja de Roma dá-nos a conhecer o seu pensar no fragmento de Muratori, onde se leem
estas palavras: “O autor do quarto Evangelho é João, um dos discípulos. Como os
seus condiscípulos e os bispos o exortassem (a escrever), ele disse-lhes:
Jejuai comigo durante três dias a partir de hoje e nos comunicaremos mutuamente
o que tiver sido revelado a cada um.
Na mesma noite foi revelado a André que
João devia escrever tudo em seu próprio nome, e mandar a todos os outros que
revissem o seu trabalho. Qualquer que seja o valor histórico desta narração,
resulta certamente das palavras citadas, que cerca do ano 170, a Igreja romana
não tinha a menor dúvida de que o quarto Evangelho foi composto pelo apóstolo S.
João. A Igreja africana fala, por seu lado, pela boca de Tertuliano. Este Padre do segundo século, distingue claramente
entre os outros evangelistas, dois apóstolos, João e Mateus. Afirma que antes
da aparição do evangelho de Marcião, outro evangelho nos dá a conhecer a
incredulidade dos irmãos do Senhor, circunstância esta que não é dada senão por
S. João. (7, 5).
No Egito ouvimos, pelo mesmo tempo, S. Clemente de Alexandria, que diz
“segundo a tradição dos antigos, João, o último evangelista, vendo que nos
Evangelhos dos outros se encontrava relatados os fatos respeitantes ao corpo de
Cristo, escreveu ele próprio, sob inspiração do Espírito Santo e a pedido dos
seus companheiros, um Evangelho espiritual (Ap. Euseb., Hist. Ecl., 6, 14)”. A Síria dá-nos o testemunho de S. Teófilo de Antioquia, que coloca S.
João no número dos escritores inspirados e cita palavra por palavra o começo de
seu Evangelho. Os testemunhos formais não remontam para além do segundo século:
o que não é de admirar, porque S. João escreveu pelo fim do primeiro; mas, em
épocas mais afastadas, podemos obter ainda preciosos testemunhos indiretos.
2º
Testemunhos indiretos: - Encontramo-los nas antigas versões, a itálica e a
siríaca, que contém o quarto Evangelho, segundo
João, e nas citações dos Padres.
S.
Inácio de Antioquia
diz do espírito de Deus “que ele sabe donde vem a para onde vai”; S. João diz o
mesmo do Espírito Santo (ad Filad., 7; Jo
3, 8); o autor da carta a Diognetes, escritor do segundo século fala do
Verbo nos mesmos termos que S. João no seu prólogo e no diálogo de Jesus com
Nicodemos (Ep. Ad Diogn., 7, 10); S.
policarpo conhecia certamente o quarto Evangelho, pois que, na sua carta aos
Filipenses (7), citou um texto da primeira epístola de S. João (4, 2. 3).
Sabe-se que, segundo confessam todos os críticos, esta epístola é do mesmo
autor que o quarto Evangelho, e supõe a existência deste. S. Papias serve-se também da primeira epístola de S. João (Ap. Euseb., Hist. Ecl. 3, 39); e por
isso conhecia também o quarto Evangelho. S.
Justino cita as palavras de Jesus Cristo a Nicodemos para mostrar a
necessidade do batismo (Jo 3, 5), e
faz uma alusão evidente à objeção que este doutor fez ao Salvador (Trif., 105); refere-se exatamente como
S. João e de modo diferente dos Setenta, a profecia de Zacarias: e eles porão
os olhos naquele que feriram. (Apc. 1,
52). Taciano começa o sua Diatessaron
pelo prólogo de S. João. Apolinaro,
bispo de Hierápolis, não pode saber senão pelo quarto evangelista que Jesus
celebrou a Páscoa no dia catorze da lua, que seu lado foi aberto sobre a cruz e
que a chaga saiu sangue e água (Fragm. Pat. gr., 5, 1297).
As citações dos antigos gnósticos não são
menos evidentes. Basilides diz que
ele escreveu nos Evangelhos: Ele era a
verdadeira luz que ilumina todo o homem que vem a este mundo (Filosof., 7,
22). Ptolomeu cita, como do apóstolo. (Jo
1, 3 – Ap. Epiph. Sacr. 33). Teódoto
cita Jo 18, 11; Pai Santo, santificai-os
em meu nome. Heracleão escreveu um comentário sobre o Evangelho de S. João,
de que Origenes nos conservou fragmentos.
Conclusão
–
S. João morreu no fim do primeiro século. Muitos dos seus discípulos viveram
sem dúvida ao meio do segundo século. Ora, desde o segundo século, toda a
Igreja possuía o quarto Evangelho e atribuía-o sem hesitação nem contestação
àquele apóstolo; servia-se dele como duma obra inspirada. Como explicar este
fenômeno, se este Evangelho, como pretende o racionalismo, saiu em pleno
segundo século, da pena de um falsário? Os nossos adversários não têm sequer
tentado esta explicação; pois ela é absolutamente impossível.
Argumentos
intrínsecos –
O autor do quarto Evangelho designa-se a si mesmo, sem todavia indicar o nome.
É “o discípulo que Jesus amava”; e este discípulo, segundo a tradição, não é
senão S. João. Aliás isto mesmo se colhe do próprio livro. Havia no colégio dos
doze apóstolos três homens preferidos pelo divino Mestre, que eram Pedro, Tiago
e João. Pedro e João aparecem, no Evangelhos sinópticos, frequentemente
associados um ao outro, em diversos passos da vida de Jesus. O autor do quarto
Evangelho nomeia quase todos os apóstolos menos importantes: Pedro desempenha,
nas suas narrações, um papel notável, e mais do que uma vez lá aparece
associado ao discípulo querido de Jesus; mas em nenhum momento parte se
encontram designados por seus nomes, Tiago e João, seu irmão.
Uma vez se faz menção dos filhos de
Zebedeu, na história do aparecimento do Salvador nas margens do lago
Tiberíades. O autor fala muitas vezes do Precursor, e em parte nenhuma
acrescenta o sobrenome de Batista; chama-lhe João, sem nenhum determinativo:
nos Sinópticos só o apóstolo é que é designado por este nome. A anomalia
explica-se facilmente, admitindo-se que seja o mesmo João o narrador. Este
narrador é, aliás, sem dúvida nenhuma, um judeu da Palestina.
Qualquer outro seria menos conhecedor dos
costumes judaicos e das particularidades históricas e geográficas daquele país.
Ele fala de Caná na Galiléia, porque sabe que há outra Caná na tribo de Aser;
conhece o sítio exato de Cafarnaum; sabe que do outro lado do mar de Tiberíades
se elevam montanhas; não ignora que neste lugar o lago é tão estreito, que quem
quer lhe pode dar uma volta a pé numa noite, e chegar de manhã a Cafarnaum;
descreve minuciosamente a piscina de Betsaida; conhece a fonte de Siloé e avalia
exatamente a distância de Jerusalém a Betânia; enumera as grandes festas dos
judeus, assinala a época em que elas se celebravam, e faz notar que o oitavo
dia da Cenopegia era especialmente solene. Enfim esteve presente à crucificação
de Jesus, e viu com seus olhos a água e o sangue, que saíram do seu lado
traspassado. Será necessária mais alguma coisa para caracterizar o autor e
excluir qualquer outro que não seja o apóstolo S. João?
Objeções
dos racionalistas contra a autenticidade do Evangelho de S. João – Pretendem: 1º que
o autor do quarto Evangelho não é um judeu; 2º que este Evangelho contém erros
de fato que não são de esperar de uma testemunha ocular; 3º que ele está em
contradição com os Sinópticos e professa doutrinas religiosas diferentes das
destes; 4º que põe na boca de Jesus discursos que Jesus nunca pronunciou; 5º
que o dia assinado por ele para a celebração da última páscoa não concorda com
a tradição de São João. Examinemos sucessivamente estas dificuldades.
1º O autor do primeiro Evangelho fala
sempre dos judeus na terceira pessoa e põe-se em oposição com eles. Portanto,
dizem, não é judeu. Esquecem que João escreveu em Éfeso para cristãos saídos da
gentilidade, numa época em que os judeus tinham perdido a sua nacionalidade.
Além disso, Jesus, falando aos judeus lhes disse: Abraão, vosso pai (Jo, 7, 56), o que não obstava a que ele mesmo
fosse da raça de Abraão?
2º Pretendem que o autor tenha enganado,
falando duma cidade de Sicar, desconhecida na história de Israel (4, 5);
chamando a Caifás sumo-pontífice daquele ano, como se o sumo-pontífice fosse um
cargo anual, erro tanto mais grosseiro quanto é certo que Caifás ocupou esta
dignidade durante dez anos consecutivos.
Reposta.
Em
lugar de Betânia, é mister ler provavelmente Betabara. Demais, S. João fala
outra parte expressamente de Betânia na Judéia, burgo vizinho de Jerusalém.
Sicar era provavelmente uma corrupção de Siquém, cidade principal da Samaria,
situada no sopé da montanha sagrada dos samaritanos. São João diz que Caifás
era sumo pontífice naquele ano, sem dizer com isso que ele não o foi antes nem
depois.
3º Os adversários do Evangelho de S. João
taxam de contraditórias, narrações que se completam mutuamente. S. João
conhecia os três primeiros Evangelhos e supunha-os conhecidos dos seus
leitores. Sabia que os seus predecessores não tinham querido fazer uma
biografia completa de Jesus e que, pelo contrário, todos eles tinham escolhido
e disposto as suas narrações segundo um plano determinado. Os Sinópticos não
tinham narrado mais que uma viagem de Jesus a Jerusalém; João não os contradiz
quando faz menção de cinco. Ele pode do mesmo modo contar como Jesus, no
princípio da sua vida pública, expulsou os vendilhões do templo, ainda que
sabia muito bem que o Mestre tinha praticado um ato semelhante três anos mais
tarde, segundo os Sinópticos. Além disso não é impossível que os Sinópticos,
quando narraram os fatos e ações de Cristo no templo, por ocasião da última
páscoa da sua vida, tenham mencionado, neste mesmo lugar, a autoridade que o
Mestre tinha exercido no templo três anos mais cedo. S. Mateus e S. Marcos são
pouco cuidadosos da ordem cronológica; preferem seguir a ordem dos fatos.
Notemos, além disso, que a duração precisa da vida pública de Jesus não é
fixada por nenhum dos quatros evangelhos. Os Sinópticos não dizem em parte
alguma que tudo o que narram se passasse num só ano; e o quarto evangelista,
posto que fale de três ou quatro páscoas celebradas por Jesus Cristo, não diz
que ele celebrasse mais depois do seu batismo.
O racionalismo afirma que o Jesus dos
Sinópticos é uma personagem muito diferente daquele de que nos faz menção o
quarto evangelista. O Mestre para os Sinópticos é um doutor simples e popular;
o seu ensino é quase exclusivamente moral; ele propõe-no por meio de parábolas
acessíveis às inteligências vulgares; quando lhe chamam Filho de Deus ele impõe
silêncio às línguas indiscretas. Pelo contrário o Cristo de João é um filósofo
que fala por sentenças enigmáticas, uma dialética sutil e obscura; o seu ensino
é dogmático; sempre preocupado com a sua própria personalidade, não cessa de
inculcar a fé na sua natureza. Eis o que “a crítica” tem descoberto e o que
passou despercebido durante dezoito séculos. Falará um professor de teologia da
mesma maneira, quando se dirige aos discípulos, e quando, descendo da cadeira,
se põe a catequizar crianças ou gente do campo? O exemplo aplica-se muito bem
ao caso sujeito.
Os Sinópticos mostram-nos Jesus pregando
às populações rurais ou comerciantes da Galiléia. João conta as disputas do
Salvador com os escribas, fariseus e sacerdotes de Jerusalém, homens instruídos
na lei e versados em todas as sutilidades do rabinismo. Notemos, além disso, a
diferença de fim que se propunham os evangelistas.
Os Sinópticos visavam a fazer conhecer Jesus
como o Messias, o grande libertador de Israel e de todas as nações. João
encontra-se em presença dos dogmatizadores gnósticos que atacavam o caráter
divino de Cristo. Pretendia opor-lhes a afirmação e a demonstração de que o
próprio Jesus fez a sua divindade.
4º Digamos, finalmente, que estes
discursos de Jesus deviam causar profunda impressão no discípulo amado, que
repousara a cabeça no peito do Salvador. Não admira, pois, que tais discursos
ficassem mais presentes à sua lembrança, mais caros ao seu coração, e que em
tempo oportuno ele os comunicasse por escrito à Igreja. Se nos replicarem que
semelhantes discursos são demasiadamente longos, para que um apóstolo os
pudesse reter e reproduzir passados tantos anos, podemos responder que o
evangelista nos dá o sentido das palavras do Salvador e a substancia dos seus
discursos, que não o desenvolvimento que lhes deu o Mestre. Não era preciso
grande esforço de memória, para que o discípulo amado de Jesus pudesse
reproduzir assim discursos, a que o diálogo dava bastante relevo e vivacidade.
Deve aliás supor-se que, em suas pregações
e catequeses, o apóstolo comentasse frequentemente aquelas divinas palavras,
que assim se lhe tornassem perfeitamente familiares. Finalmente, se algumas
vezes a memória do escritor fosse menos exata, lá estava o Espírito Santo, para
lhe recordar tudo o que o Mestre tinha dito (Jo 14, 26).
5º A quinta objeção é tirada da célebre
disputa que se travou no século 2, entre o papa S. Vitor e alguns bispos da
Ásia, a respeito do dia em que se devia celebrar a festa da
Páscoa. Polícrates e os seus aderentes apelavam para a tradição de João,
para manter o seu costume de celebrar a festa no dia décimo-quarto do mês de
Nizam. Ora, dizem, o quarto evangelista coloca a última Ceia de Jesus no décimo-terceiro
dia daquele mês.
Podem dar-se a esta objeção duas
respostas. Primeiramente, S. João podia muito bem ter adotado para a celebração
da festa da Páscoa o dia décimo-quarto do mês de Nizam, ainda quando, no seu
Evangelho, pusesse a última Ceia do Salvador no décimo-terceiro. Em segundo
lugar, pode negar-se a suposição dos adversários. Porque é muito mais provável
que S. João coloque na sua narração aquela Ceia na tarde do dia décimo-quarto
de Nizam, segundo o sentido apresentado naturalmente as narrações dos
Sinópticos.
Mas não é este o lugar próprio para
entrarmos nos particulares desta questão, que é uma das mais complicadas para
os intérpretes dos Evangelhos.
Todas estas objeções são tiradas de
elementos intrínsecos do próprio livro. É este o processo habitual da crítica
incrédula: mas nem por isso ela tem deixado de experimentar suas forças no
campo dos testemunhos extrínsecos. Incapaz de produzir contra a autenticidade
do quarto evangelho uma só palavra de testemunhos da antiguidade, tem invocado
o seu silêncio para afirmar que o apóstolo João nunca residiu na Ásia. A não
ser assim, dizem, Inácio de Antioquia, nas suas cartas às igrejas da Ásia, não
deixaria de invocar para os morigerar, a autoridade do apóstolo. Ora, João em
nenhuma parte é mencionado. Paulo, pelo contrário, é nomeado no princípio da
carta de Inácio aos Efésios.
Respondemos: É verdade que se podia
esperar tal menção nas cartas de Inácio; mas ninguém pode demonstrar que era
necessário que ela lá se encontrasse. S. Paulo tinha, como Inácio, passado por
Éfeso, para ir ao martírio; e por isso é que a sua recordação é invocada. S.
João não havia passado por aquela cidade; logo não havia motivo para, neste
lugar da carta, ser associado a S. Paulo. S. Policarpo, na carta que dele
temos, fala também de S. Paulo, sem mencionar S. João; mas escreve à igreja de
Filipos, que havia sido fundada por S. Paulo, e que S. João nunca visitou.
Bíblia Sagrada reedição da versão do Padre
Antônio Pereira de Figueiredo – Volume XI – Editora das Américas 1950
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