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Juízo Final - Michelangelo |
“A
lembrança daquela trombeta temerosa que há-de soar no último dia: levantai-vos,
mortos, e vinde a juízo”
Sobre o Juízo Final
SERMÃO DO PRIMEIRO DOMINGO DO ADVENTO
– Padre Antônio Vieira –
I
“Abrasado finalmente o Mundo e reduzido
a um mar de cinzas tudo o que o esquecimento deste dia edificou sobre a
terra... (Dou princípio a este sermão sem princípio, porque já disse Quintiliano
que as grandes ações não hão mister exórdio: elas per si mesmas, ou supõem a
atenção ou conciliam. Também passo em silêncio a narração portentosa dos sinais
que precederão ao juízo, porque esta parte do Evangelho pertence aos que hão-de
ser vivos naquele tempo, e não a nós; e o dia de hoje é muito de tratar cada um
só do que lhe pertence). Abrasado, pois, o Mundo, e consumido pela violência do
fogo o que a sabedoria dos homens e o esquecimento deste dia levantou e
edificou na terra; quando já não se verão nesse formoso e dilatado mapa senão
umas poucas cinzas, relíquias de sua grandeza e desengano de nossa vaidade, «soará no ar uma trombeta» espantosa, não
metafórica, mas verdadeira (que isso quer dizer a repetição de São Paulo: Canet enim tuba; e obedecendo aos
impérios daquela voz o Céu, o Inferno, o Purgatório o Limbo, o mar, a terra,
abrir-se-ão em um momento as sepulturas e aparecerão no Mundo os mortos
vivos.
Parece-vos muito, que a voz de uma
trombeta haja de achar obediência nos mortos? Ora reparai em outro milagre
maior, e não vos parecerá grande este. Entrai pelos desertos do Egipto, da
Tebaida da Palestina; penetrai o mais interior e retirado daquelas soledades.
Que é o que vedes? Naquela cova vereis metido um Hilarião, naquela outra um
Macário, na outra mais apartada um Pacómio; aqui um Paulo, ali um Jerónimo,
acolá um Arsénio; da outra parte, uma Maria Egipcíaca, uma Thais, uma Pelágia,
uma Teodora. Homens, mulheres, que é isto? Quem vos trouxe a esse estado? Quem
vos antecipou a morte? Quem vos amortalhou nesses cilícios? Quem vos enterrou
em vida? Quem vos meteu nessas sepulturas? Quem? Responderá por todos São
Jerónimo: Semper mihi videtur insonare
tuba illa terribilis: surgite mortui, venite ad judicim. Sabeis quem nos
vestiu destas mortalhas, sabeis quem nos fechou nestas sepulturas? «A lembrança daquela trombeta temerosa que
há-de soar no último dia: levantai-vos, mortos, e vinde a juízo». Pois se a
voz desta trombeta só imaginada, (pesai bem a consequência) se a voz desta trombeta
só imaginada, bastou para enterrar os vivos, que muito que, quando soar
verdadeiramente, seja poderosa para desenterrar os mortos?
O meu espanto não é este. O que me
espanta, e o que deve assombrar a todos, é que haja de bastar esta trombeta
para ressuscitar os mortos, e que não baste para espertar os mortais! Credes,
mortais, que há-de haver juízo? Uma de duas é certa: ou o não credes, ou o não
tendes. Virá o dia final, e então sentirá nossa insensibilidade sem remédio o
que agora pudera ser com proveito. Quanto melhor fora chorar agora e arrepender
agora, como faziam aqueles e aquelas penitentes do ermo, do que chorar e
arrepender depois, quando para as lágrimas não há-de haver misericórdia, nem
para os arrependimentos perdão. Agora vivemos como queremos; e ainda mal,
porque depois havemos de ressuscitar como não quiséramos.
II
Grandes cousas e lastimosamente grandes
haverá que ver e considerar naquele acto da ressurreição universal! Mas entre
todas as considerações a que me parece mais própria deste lugar e mais digna de
sentimento, é esta. E quanta gente bem nascida se verá naquele dia mal
ressuscitada! Entre a ressurreição natural e a sobrenatural há uma grande
diferença: que na ressurreição natural cada um ressuscita como nasce; na
ressurreição sobrenatural, cada um ressuscita como vive; na ressurreição
natural nasce Pedro e ressuscita Pedro; na ressurreição sobrenatural nasce
pescador, e ressuscita príncipe: Sedebitis
in regeneratione judicantes duodecim tribus Israel. Oh que grande
consolação esta para aqueles a quem não alcançou a fortuna dos altos
nascimentos! Bem me parecia a mim que não podia faltar Deus a dar uma grande
satisfação no dia do juízo à desigualdade com que nascem os homens, sendo todos
da mesma natureza. Não se faz agravo na desigualdade do nascer, a quem se deu a
eleição de ressuscitar. A ressurreição é um segundo nascimento com alvedrio.
Tanta propriedade considerou Job neste
segundo nascimento, que até outro pai, outra mãe disse que tínhamos na
sepultura: Putredini dixi: pater meus es
tu; mater mea et soror mea, vermibus. Temos outro pai e outra mãe na sepultura
em que jazem nossos ossos, porque ali somos outra vez gerados, de ali saímos
outra vez nascidos. Notai agora: Statutum
est hominibus semel mori: «Quis Deus
que morrêssemos uma só vez», e que nascêssemos duas, porque, como o morrer
bem dependia de nosso alvedrio, bastava uma só morte; mas como o nascer bem não
estava na nossa mão, eram necessários dois nascimentos, para que pudéssemos
emendar no segundo tudo o que nos faltasse no primeiro. Bem pudera Deus fazer
que nascessem os homens todos iguais, mas ordenou sua providência, que houvesse
no Mundo esta mal sofrida desigualdade, para que a mesma dor do primeiro
nascimento nos excitasse à melhoria do segundo.
Homens humildes e desprezados do povo,
boa nova! Se a natureza ou a fortuna foi escassa convosco no nascimento, sabei
que ainda haveis de nascer outra vez, e tão honradamente como quiserdes; então
emendareis a natureza, então vos vingareis da fortuna.
Que maior vingança da fortuna que as
mudanças tão notáveis, que se verão naquele dia! Virão naquele dia as almas do
grande e do pequeno buscar seus corpos à sepultura, e talvez à mesma Igreja: e
que sucederá pela maior parte? O pequeno achará seus ossos em um adro sem pedra
nem letreiro, e ressuscitará tão ilustre como as estrelas. O grande, pelo
contrário, achará seu corpo embalsamado em caixas de pórfiro, aos ombros de
leões, ou elefantes de mármore, com soberbos e magníficos epitáfios, e
ressuscitará mais vil que a mesma vileza. Oh que metamorfose tão triste, mas
que verdadeira! Vede se há-de dar Deus boa satisfação aos homens da
desigualdade com que hoje nascem. O ser bem nascido, que é uma vaidade que se
acaba com a vida, é verdade que o não pôs Deus na nossa mão; mas o ser bem
ressuscitado, que é aquela nobreza que há-de durar por toda a eternidade, essa
deixou Deus no alvedrio de cada um. No nascimento somos filhos de nossos pais,
na ressurreição seremos filhos de nossas obras. E que seja mal ressuscitado por
culpa sua quem foi bem nascido sem merecimento seu! Lástima grande. Ressuscitar
bem sobre haver nascido mal, é emendar a fortuna; ressuscitar mal sobre haver
nascido bem, é pior que degenerar da natureza. Que ressuscite bem David sobre
nascer de Jessé, grande glória do filho de um pastor; mas que ressuscite mal
Absalão sobre nascer de David, grande afronta do filho de um rei! Se os homens
se prezam tanto de ser bem nascidos, como fazem tão pouco caso de ser bem
ressuscitados? Nenhuma cousa trazem na boca os grandes mais ordinàriamente, que
as obrigações com que nasceram. E aposto eu que mui poucos sabem quais são
estas obrígações. Nascer bem é obrigação de ressuscitar melhor. Estas são as
obrigações com que nascestes.
O mais bem nascido homem que houve, nem
pode haver, foi Cristo; ninguém teve melhor pai, nem melhor mãe; e foi notar
Santo Agostinho que, se Cristo nasceu bem, ressuscitou melhor: Gloriosior est ista ,nativitas, quam illa:
illa cortus mortale genuit, ista redidit immortale. Cristo, diz Santo
Agostinho, «nasceu mais nobremente no
segundo nascimento que no primeiro: no primeiro nascimento nasceu mortal e
passível; no segundo, que foi a sua ressurreição, nasceu impassível e imortal»
Eis aqui as obrigações dos bem nascidos—nascerem a segunda vez melhor do que
nasceram a primeira. Se Deus pusera na mão do homem o nascer, quem houvera, por
bom que fosse, que não se fizesse muito melhor? Pois este é o caso em que
estamos. Se havemos de tornar a nascer, porque não trabalharemos muito por
nascer muito honradamente? Não nascer honrado no primeiro nascimento, tem a
desculpa de que «Deus nos fez» Ipse fecit nos, Não nascer honrado no
segundo, nenhuma desculpa tem: tem a glória de sermos nós os que nos fizemos: Ipsi nos. Que glória será naquele dia
para um homem poder tomar para si em melhor sentido o elogio do grande Baptista: Inter natos mulierum non surrexit major:
«Entre os nascidos das mulheres nenhum
ressuscitou maior». Ser o maior dos nascidos, em quanto nascido, é pequeno
louvor e de pouca dura; ser o maior dos nascidos, em quanto ressuscitado, isso
é verdadeiramente o ser maior. Na nossa mão está, se o quisermos ser. Nesta
vida o mais venturoso pode nascer filho do rei; na outra vida todos os que
quiserem podem nascer filhos do mesmo Deus: Dedit
eis potestatem filios Dei fieri. E que não sejam isto considerações, senão
verdade e Fé católica! Bendito seja aquele Senhor, que é nossa ressurreição e
nossa vida: Ego sum resurrectio et vita.
Unidas as almas aos corpos e restituídos
os homens à sua antiga inteireza, os bem ressuscitados alegres, os mal
ressuscitados tristes, começarão a caminhar todos para o lugar do juízo. Será
aquela a vez primeira em que o género humano se verá a si mesmo, porque se
ajuntarão ali os que são, os que foram, os que hão-de ser, e todos pararão no
vale de Josafat. Se o dia não fora de tanto cuidado, muito seria para ver os
homens grandes de todas as idades juntos. Mas vejo que me estão perguntando,
como é possível que uma multidão tão excessiva como a de todo género humano, os
homens que se continuaram desde o princípio até agora, e os que se irão multiplicando
sucessivamente até o fim do Mundo; como é possível que aquele número
inumerável, aquela multidão quase infinita de homens caiba em um vale? A dúvida
é boa, queira Deus que o seja a resposta. Primeiramente digo que nisto de
lugares há grande engano: cabe muito mais nos lugares do que nós
cuidamos.
No primeiro dia da criação, criou Deus
o Céu e a Terra e os elementos, e é certo em boa filosofia, que não ficou
nenhum vácuo no Mundo, tudo estava cheio. Com isto ser assim, e parecer que não
havia já lugar para caber mais nada, ao terceiro dia vieram as ervas, as
plantas, e as árvores; e com serem tantas em número e tão grandes, couberam
todas. Ao quarto dia veio o Sol, e sendo aquele imenso planeta cento e sessenta
e seis vezes maior que a Terra, coube também o Sol; vieram no mesmo dia as
estrelas tantas mil, e cada uma de tantas mil léguas, e couberam as estrelas.
Ao quinto dia vieram as aves ao ar, e couberam as aves; vieram os peixes ao
mar, e com haver neles tantos monstros de disforme grandeza, couberam os
peixes. No sexto dia vieram os animais tantos e tão grandes à Terra, e couteram
os animais: finalmente veio o homem, e foi o homem o primeiro que começou a não
caber; mas se não coube no Paraiso, coube fora dele. De sorte que, como dizia.
nisto de lugares vai grande engano: cabe neles muito mais do que nos parece. E
senão, passemos a um exemplo moral, e vejamo-lo em qualquer lugar da república.
O dia é do juízo, seja o lugar de um julgador.
Antigamente em um lugar destes que é o
que cabia? Cabia o doutor com os seus textos e umas poucas de postilhas, muito
usadas, e por isso muito honradas. Cabia mais uma mula mal pensada, se a casa
estava muito longe do Limoeiro. Cabiam os filhos honestamente vestidos; mas a
pé e com a arte debaixo do braço. Cabia a mulher com poucas jóias, e as
criadas, se passavam da unidade, não chegavam ao plural dos gregos. Isto é o
que cabia naquele lugar antigamente; e feitas boas contas, parece que não podia
caber mais. Andaram os anos, o lugar não cresceu, e tem mostrado a experiência
que é muito mais sem comparação o que cabe no mesmo lugar. Primeiramente cabem
umas casas, ou pacos, que os não tinham tão grandes os condes do outro tempo;
cabe uma livraria de Estado, tamanha como a vaticana, e talvez com os livros
tão fechados como ela os tem; cabe um coche com quatro mulas, cabem pajens,
cabem lacaios, cabem escudeiros; cabe a mulher em quarto apartado, com donas,
com aias e com todos os outros arremedos da fidalguia; cabem os filhos com
cavalos e criados, e talvez com o jogo e com outras mocidades de preço; cabem
as filhas maiores com dotes e casamentos de mais de marca, as segundas nos
mosteiros com grossas tenças; cabem tapeçarias, cabem baixelas, cabem comendas,
cabem benefícios, cabem moios de renda; e sobretudo cabem umas mãos muito
lavadas e uma consciência muito pura, e infinitas outras cousas, que só na
memória e no entendimento não cabem. Não é isto assim? Lá nessas terras por
onde eu agora andei, assim é. Pois se tudo isto cabe em um lugar tão pequeno,
que grande serviços fazemos nós à Fé em crer que caberemos todos no vale de
Josafat? Havemos de caber todos, e se vierem outros tantos mais, para todos há
de haver vale e milagre.
De mais desta razão geral que há da
parte do lugar, há outras duas da parte das pessoas; uma da parte dos bons,
outra da parte dos maus. Os bons poderão caber ali em muito pouco lugar, porque
terão o dote da subtileza. Entre os quatro dotes gloriosos há um que se chama
subtileza, O qual comunica tal propriedade aos corpos dos bem-aventurados, que
todos quantos se hão-de achar no dia do juízo podem caber neste lugar onde eu
estou, sem me tirarem dele. Cá no Mundo também há este dote da subtileza, mas
com mui diferentes propriedades. A subtileza do Céu introduz a um sem afastar a
outro; as subtilezas do Mundo, todo seu cuidado é afastar os outros para se
introduzir a si. Por isso não há lugar que dure nem lugar que baste. Muito é
que Jacob e Esaú não coubessem em uma casa; mais é que Lot e Abraão não
coubessem em uma cidade; muito mais é que Saul e David não coubessem em um
reino; mas o que excede toda a admiração é que Caim e Abel não coubessem em
todo o Mundo. E porque não cabiam dois homens em tão imenso logar? Pior é a
causa que o caso. Caim não cabia com Abel, porque Abel cabia com Deus. Em um
homem cabendo com seu Senhor, logo os outros não cabem com ele. Alguma vez será
isto soberba dos Abéis, mas ordinàriamente é inveja dos Cains. Se é certo que
com a morte se acaba a inveja, fàcilmente caberemos todos no Dia do Juízo.
Quereis caber todos? Não acrescenteis lugares, diminuí invejas. Este é o dote
da subtileza dos bons.
Da parte dos maus também não há-de
haver dificuldade em caber no vale; porque ainda que os maus são tantos, e hoje
tão grandes e tão inchados, naquele dia hão-de estar todos muito pequeninos.
que no tempo do Dilúvio coubessem na arca de Noé todos os animais do Mundo em
suas espécies, crê-o a Fé, porque o diz a Escritura; mas não o compreende o
entendimento porque o não alcança a razão. Como pode ser que coubessem em tão pequeno
lugar tantos animais, tão grandes e tão feros? O leão, para quem toda a Líbia
era pouca campanha; a águia, para quem todo o ar era pouca esfera; O touro, que
não cabia na praça; O tigre, que não cabia no bosque; o elefante, que não cabia
em si mesmo. Que todos estes animais e tantos outros de igual fereza e grandeza
coubessem juntos em uma arca tão pequena?! Sim, cabiam todos, porque, ainda que
a arca era pequena, a tempestade era grande. Alagava Deus naquele tempo a terra
com dilúvio universal, que foi a maior calamidade que padeceu o Mundo; e nos
tempos dos grandes trabalhos e calamidades até o instinto faz encolher os
animais, quanto mais a razão aos homens! Caberão os homens no vale de Josafat,
assim como couberam os animais na arca de Noé: Sicut fuit in diebus Noe, sic erit in consummatione saculi. Diz o
texto que só com os sinais do fim do Mundo hão-de andar todos os homens secos e
mirrados: Arescentibus hominibus pra
timore: Se aos homens os há de apertar tanto o receio, quanto os estreitará
o juízo! Oh como nos encolheremos todos naquele dia! Oh como estarão pequenos
ali os maiores gigantes! A maior maravilha do Dia do Juízo, não é haver de
caber todo o Mundo em todo o vale de Josafat; a maravilha maior será que
caberão então em uma pequena parte do vale muitos que não cabiam em todo o
Mundo. Um Nabucodonosor, um Alexandre Magno, um Júlio César, para quem era
estreita a redondeza da Terra, caberão ali em um cantinho.
Uma das cousas notáveis que diz Cristo
do Dia do Juízo é que «cairão as estrelas
do céu». StelIæ cadent de cæelo.
Se dermos vista aos matemáticos, hão-de achar grande dificuldade neste texto
(eu lhes darei a razão natural dele, quando ma peçam). Todas as estrelas, menos
duas, são maiores que a Terra, e algumas há que são quarenta, oitenta e cento e
dez vezes maiores. Pois se as estrelas são maiores que a terra, como hão-de
cair e caber cá em baixo? Hão-de caber, porque hão-de cair. Não sabeis que os
levantados e os caídos não têm a mesma medida? Pois assim lhes há-de suceder às
estrelas. Agora que estão levantadas, ocupam grandes espaços do Céu; como
estiverem caídas, hão-de caber em poucos palmos da Terra. Não há cousa que
ocupe menor lugar que um caído. A Terra, em comparação do Céu, é um ponto; o
centro, em comparação da Terra, é outro ponto; e Lúcifer, que levantado não
cabia no Céu, caído cabe no centro da Terra. Ah Lucíferes do Mundo! Aqueles que
levantados nas asas da prosperidade humana em nenhum lugar cabeis hoje, caídos
e derribados naquele dia. cabereis em muito pouco lugar. Estaremos todos ali
encolhidos e sumidos dentro em nós mesmos cuidando na conta que havemos de dar
a Deus; e quando não houvera outra razão, esta só bastava para não faltar lugar
a ninguém. Deem os homens em cuidar na conta que hão-de dar a Deus, e eu vos
prometo que sobejem lugares. O que importa é que o lugar seja bom, que quanto é
lugar, vale de Josafat haverá para todos.
IV
Presente enfim no vale todo o género
humano, correr-se-ão as cortinas do Céu, e aparecerá o Supremo Juiz sobre um
trono de resplandecentes nuvens, acompanhado de todas as jerarquias dos anjos,
e muito mais de sua própria Majestade. A primeira cousa que fará será mandar
apartar os maus dos bons; e os ministros desta execução serão os anjos: Exibunt angeli, et separabunt malos de medio
justorum. Para se entender melhor esta separação havemos de supor com o
Profeta Zacarias que, antes dela, não hão-de estar os homens ali juntos
confusamente; mas para maior grandeza e distinção do acto, hão-de estar
repartidos todos por seus estados: Familia
et familia seorsum. A uma parte hão-de estar os papas; a outra os
imperadores; a outra os reis; a outra os bispos; a outra os religiosos; e assim
dos demais estados do Mundo. Separados todos por esta ordem, conforme o lugar
que tiveram nesta vida, então se começará a segunda separação, segundo o estado
que hão-de ter na outra, e que há-de durar para sempre.
Sairão pois os anjos; vede que
suspensão e que tremor será o dos corações dos homens naquela hora! Sairão os
anjos e irão primeiramente ao lugar dos papas. Et separabunt (faz horror só imaginar, que em uma dignidade tão
divina e em homens eleitos pelo Espírito Santo há-de haver também que separar).
Et separabunt malos de medio justorum:
«E separarão os pontífices maus de entre
os pontífices bons». Eu bem creio que serão muito raros os que se hão-de
condenar; mas haver de dar conta a Deus de todas as almas do Mundo, é um peso
tão imenso que não será maravilha que, sendo homens, levasse alguns ao
Profundo. Todos nesta vida se chamaram padres santos; mas o Dia do Juízo
mostrará que a santidade não consiste no nome, senão nas obras. Nesta vida
beatíssimos, na outra malaventurados. Oh que grande miséria!
Sairão após estes outros anjos e irão
ao lugar dos bispos e arcebispos: Et
separabunt malos de medio justorum. Lá vai aquele porque não deu esmolas;
aquele porque enriqueceu os parentes com o património de Cristo; aquele porque,
tendo uma esposa, procurou outra melhor dotada; aquele porque faltou com o
pasto da doutrina a suas ovelhas; aquele porque proveu as igrejas nos que não
tinham mais merecimento que o de serem seus criados; aquele porque na sua
diocese morreram tantas almas sem sacramentos; aquele por não residir; aquele
por simonias; aquele por irregularidades; aquele por falta de exemplo da vida,
e também algum por falta da ciência necessária; empregando o tempo e o estudo
em divertimentos, ou da corte e não de prelado, ou do campo e não de pastor. Valha-me
Deus, que confusão tão grande! Mas que alegres e que satisfeitos estarão neste
passo, um São Bernardino de Sena, um São Boaventura, um São Domingos, um São
Bernardo, e muitos outros varões santos e sesudos, que quando Ihes ofereceram
as mitras, não quiseram subir à alteza da dignidade, porque reconheceram a do
precipicio. Pelo contrário que tais levarão os corações aqueles miseráveis
condenados? Quantas vezes dirão dentro em si mesmos e a vozes: Maldito seja o
dia em que nos elegeram e maldito quem nos elegeu! Maldito seja o dia em que
nos confirmaram, e maldito quem nos confirmou! Se um homem mal pode dar conta
de sua alma, como a dará boa de tantas? Se este peso deu em terra com os
maiores atlantes da Igreja, quem não temerá e fugirá dele?
Grande desconsolação é hoje para as
igrejas de Portugal não terem bispos; mas pode ser que no dia do juízo seja
grande consolação para os bispos de Portugal não chegarem a ter igrejas. De um
sacerdote que não quis aceitar um bispado, conta São Jerónimo que, aparecendo
depois da morte a um seu tio religioso que assim Iho aconselhara, lhe disse
estas palavras: Gratias, Pater, tibi
refero ex dissuasione episcopatus: «Dou-vos,
Padre, muitas graças porque me persuadistes que não aceitasse aquele bispado»;
nam scito quia nunc essem de numero
damnatorum si fuissem de numero episcoporum: «Porque sabereis que hoje havia eu de ser do número dos condenados, se
então fora do número dos bispos».
Oh quantos sem saberem o que fazem,
debaixo do nonte lustroso de uma mitra, andam feitos pretendentes de sua
condenação! A este e a muitos outros que não quiseram aceitar bispados, revelou
Deus que se haviam de condenar, se chegassem a ser bispos. E quem vos disse a
vós que estáveis privilegiados desta condicional? De chegardes a ser bispo,
pode ser que não dependa a salvação de outras almas; e de não chegardes a o
ser. pode ser que dependa a salvação da vossa. O mais seguro é encolher os
ombros e deixar governar a Deus.
Do lugar dos bispos passarão os anjos
ao lugar dos religiosos; e entrando naquela multidão infinita das ordens
regulares, sem embargo de resplandecerem nelas como sóis as maiores santidades
do Mundo, contudo haverá muito que separar; começarão por Judas: Et separabunt malos de medio justorum.
Não o digo por me tocar; mas por todas as razões me parece que será este o mais
triste espectáculo do Dia do Juízo. Que vão os homens ao Inferno pelo caminho
do Inferno, desgraça é, mas não é maravilha; porém ir ao Inferno pelo caminho
do Céu, é a maior de todas as misérias Que o rico avarento, vestindo púrpuras e
holandas e gastando a vida em banquetes, seja sepultado nos fogos eternos. por
seu preço leva o Inferno: Recepisti bona
in vita tua; mas que o religioso, amortalhado em um saco, com os seus
jejuns, com as suas penitencias, com a sua clausura, com a sua vontade sujeita
a outrem, por ter os olhos nas migalhas dos do Mundo, como Lázaro, vá parar nas
mesmas penas! Brava desaventura! O secular distraído, que lhe não veio nunca à
memória a conta que havia de dar a Deus, que a não dê boa e se perca, não podia
parar noutra cousa o seu descuido; mas que o mesmo religioso que por estes
púlpitos vos vem pregar o juízo, possa ser e haja de ser um dos condenados
daquele dia! Triste estado é o nosso, se nos não salvamos. Mas de aqui podeis
vós também inferir que se isto passa no porto, que será no pego! Se nós (falo
dos melhores que eu) se nós, sobre tanto meditar na outra vida, nos perdemos, o
vosso descuido e o vosso esquecimento, onde vos há-de levar? Se as Cartuxas, se
os Buçacos, se as Arrábidas hão-de tremer no Dia do Juízo, as cortes e vossa
corte em que estado se achará?
V
Em todos os estados da corte haverá
mais que separar que em nenhuns outros. Mas deixando por agora os demais, em
que cada um se pode pregar a si mesmo: chegarão finalmente os anjos ao lugar
dos reis. Não se verão ali sitiais, nem outros aparatos de majestade, mas todos
sós, e acompanhados sòmente de suas obras, estarão em pé, como réus.
Conhecer-se-ão distintamente quais foram os reis de cada reino: quais os de
Hungria, quais os de França, quais os de Inglaterra, quais os de Castela, quais
os de Portugal. E desta maneira irão os anjos tirando de cada coroa aqueles que
foram maus reis: Et separabun malos de
medio justorum. Espero eu em Deus que neste dia há-de ser o nosso reino
singular entre os do Mundo, e que só dele não hão-de achar os anjos que
apartar. Se eu estudara só pelo meu desejo e pela minha esperança, assim o
havia de crer; mas quando leio as Escrituras, acho muito que temer e muito que
duvidar. Dos reis, como dos outros homens, nós não sabemos quais se salvam em
quais se perdem. Só uma nação houve antigamente, da qual nos consta do texto
sagrado quantos foram os reis que se salvaram e quantos os que se perderam.
Tremo de o dizer, mas é bem que se saiba distintamente: No povo hebreu, em
tempo que era povo de Deus, houve três reinos: o primeiro foi o reino das Doze
Tribos; teve três reis e durou cento e vinte anos; o segundo foi o reino de
Judá; teve vinte reis e durou trezentos e noventa e quatro anos o terceiro foi
o reino de Israel; teve dezanove reis, e durou duzentos e quarenta e dois anos.
Saibamos agora quantos reis foram os que se salvaram e quantos os que se
perderam nestes reinos.
No reino das Doze Tribos, de três reis
perdeu-se Saul, salvou-se David, de Salomão não se sabe. No reino de Judá, de
vinte reis salvaram-se cinco, perderam-se treze, de dois é incerto. No reino de
Israel, nem estas tão pequenas excepções teve a desgraça; foram os reis
dezanove e todos os dezanove se condenaram. No Dia do Juízo não se poderá
cumprir neste reino o Separabunt malos de
medio justorum: chegarão os anjos ali não terão que separar, levarão a
todos. Oh desgraçados ceptrós! Oh desgraçadas coroas! Oh desgraçados pais! Oh
desgraçada descendência! Desde Jeroboão a Oseas dezanove reis coroados:
dezanove reis condenados.
Pois por certo que não foi por falta de
doutrina nem de auxílios: tinham estes reis conhecimento do verdadeiro Deus;
tinham um povo, que era o povo escolhido de Deus, tinham templo, tinham sacerdotes,
tinham sacrifícios, viam milagres, ouviam profecias, recebiam favores do Céu, e
quando era necessário, não lhes faltavam também castigos; e nada disto bastou.
Muito arriscada cousa deve ser o reinar, pois em tantos tempos e em tantos
reis, se salvam, ou tão poucos, ou nenhum. Julguem lá agora os príncipes quais
serão as causas disto, que Deus não é injusto. Examinem mais escrupulosamente
suas consciências, e olhem a quem as comunicam; considerem muito de vagar as
suas obrigações, que são muito mais estreitas do que ordinàriamente cuidam;
inquiram muito de propósito sobre os danos públicos e particulares de seus
vassalos, e vejam, pondo de parte todo o afecto, se suas orações ou suas
omissões podem ser a causa; persuadam-se que hão-de aparecer como qualquer
outro homem diante do tribunal da Justica Divina, onde se Ihes há-de pedir
rigorosíssima conta, dia por dia e hora por hora, de quanto fizeram e de quanto
o deixaram de fazer. Cuide finalmente e pese, convém, cada um dos príncipes,
quão grande desaventura e confusão sua será naquele cadafalso universal do Dia
do Juízo, se depois de tanta majestade e adoração nesta vida, vier um anjo e o
tomar pela mão, e o tirar para sempre do número dos que se hão-de salvar: Separabunt malos de medio justorum.
Por este modo se irá continuando a
separação dos maus em todos os estados do Mundo; e naqueles em que por razão do
sangue e do amor é mais natural a união, será mais lastimoso o apartamento.
Verdadeiramente, todas as outras circunstancias daquele acto terão muito de
rigorosas, esta parecerá cruel. Apartar-se-ão ali os pais dos filhos: irá para
uma parte Abraão e para outra Ismael; apartar-se-ão os irmãos dos irmãos: irá
para uma parte Jacob e para outra Esaú; apartar-se-ão as mulheres dos maridos:
irá para uma parte Ester e para outra Assuero; apartar-se-ão os amigos dos
amigos: (seja o exemplo incerto, já que há tão poucos de verdadeira amizade)
irá para uma parte Jónatas e para outra David. Assim se apartarão para nunca
mais os que se amam nesta vida e os que tinham tantas razões para se amarem
também na outra.
Para nunca mais! Oh! que lastimosa
palavra! Se apartar-se de uma terra para outra terra, com esperança de se
tornar a ver, causa tanta dor nos que se amam; se apartar-se desta vida para a
outra vida, com probabilidade de se verem eternamente, é um transe tão
rigoroso; que dor será apartarem-se para nunca mais, com certeza de se não
verem em quanto Deus for Deus, aqueles a que a natureza e o amor tinham feito
quase a mesma cousa! Certo que tem assaz duro coração quem só pelo não meter
nestes apertos não ama a Deus com todo ele.
VI
Feita a separação dos maus e bons, e
sossegados os prantos daquele último apartamento que serão tão grandes como a
multidão e tão lastimosos como a causa, posto todo o juízo em silêncio e
suspensão, começará a se fazer o exame das culpas. Neste passo me havia eu de
descer do púlpito, e subir a ele... Quem? Não um anjo, não um profeta, não um
apóstolo, mas algum dos condenados do Inferno, como queria o rico avarento que
viesse pregar a seus irmãos. Delicta quis
intelligit? Quem há neste Mundo que entenda nem conheça os pecados? Isto
dizia David, aquele Profeta tão alumiado do Céu. Só um condenado do Inferno, só
quem foi julgado por Deus, só quem assistiu ao rigor daquele tribunal tremendo,
só quem viu o exame inexcrutável com que ali se penetram e se apuram as
consciências, só quem viu a anatomia tão miúda, tão delicada, tão exquisita,
que ali se faz do menor pecado e da menor circunstancia, só quem viu a
subtileza não imaginada com que ali se pesam átomos, se medem instantes, se
partem indivisíveis; só este, e nem ainda este bastantemente, poderá declarar o
que naquele dia há-de ser.
Muitas vezes me resolvi a deixar
totalmente este ponto, contentando-me com confessar que não sei nem me atrevo a
falar nele; porque ninguém possa dizer no Dia do Juízo que eu o enganei. Mas
como a matéria é tão importante e a principal obrigação deste dia, já que se
não pode dizer tudo, nem parte, ao menos quisera que Deus me ajudasse a vos meter
hoje na alma dois escrúpulos, que me parecem os mais necessários ao auditório a
quem falo: pecados de omissão e pecados de consequência. Estes são os dois
escrúpulos que vos quisera hoje advertir e intimar da parte de Deus.
Sabei, Cristãos, sabei príncipes, sabei
ministros, que se vos há-de pedir estreita conta do que fizestes, mas muito
mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se hão-de condenar
muitos; pelo que não fizeram, todos. As culpas por que se condenam os réus são
as que se contêm nos relatórios das sentenças: lede agora o relatório da
sentença do Dia do Juízo e notai o que diz: Discedite
a me, maledicti in ignem æternum: «Ide,
malditos, ao fogo eterno».—E porque?—Non
dedistis mihi manducare non dedistis mihi potum, non collegistis me, non
cooperuistis me, non visitastis me. Cinco cargos, e todos omissões: «porque não destes de comer, porque não
destes de beber, porque não recolhestes, porque não visitastes, porque não
vestistes». Em suma, que os pecados que ùltimamente hão-de levar os
condenados ao Inferno, são os pecados de omissão.
Não se espantem os doutos de uma
proposiçao tão universal como esta; porque assim é verdadeira em todo o rigor
da teologia. O último pecado e a última disposição por que se hão-de condenar
os precitos, é a impenitencia final; e a impenitência final é pecado de
omissão. Vede que cousas são omissões, e não vos espantareis do que digo. Por
uma omissão perde-se uma inspiração, por uma inspiração perde-se um auxílio,
por um auxílio perde-se uma contrição, por uma contrição perde-se uma alma; dai
conta a Deus de uma alma, por uma omissão.
Desçamos a exemplos mais públicos. Por
uma omissão perde-se uma maré, por uma maré perde-se urna viagem, por uma
viagem perde-se uma armada, por uma armada perde-se um estado. Dai conta a Deus
de uma Índia, dai conta a Deus de um Brasil, por uma omissão. Por uma omissão
perde-se um aviso, por um aviso perde-se uma ocasião, por uma ocasião perde-se
um negócio, por um negócio perde-se um reino. Dai conta a Deus de tantas casas,
dai conta a Deus de tantas vidas, o dai conta a Deus de tantas fazendas, dai
conta a Deus de tantas honras, por uma omissão. Oh que arriscada salvação! Oh
que arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros. Está o príncipe, está
o ministro divertido, sem fazer má obra, sem dizer má palavra, sem ter mau nem
bom pensamento; e talvez naquela mesma hora, por culpa de uma omissão, está
cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os
malfeitores do Mundo em muitos anos. O salteador na charneca com um tiro mata
um homem; o príncipe e o ministro com uma omissão, mata de um golpe uma
monarquia. Estes são os escrúpulos de que se não faz nenhum escrúpulo; por isso
mesmo são as omissões os mais perigosos de todos os pecados.
A omissão é o pecado que com mais
facilidade se comete e com mais dificuldade se conhece; e o que fàcilmente se
comete e dificultosamente se conhece, raramente se emenda. A omissão é um
pecado que se faz não fazendo; e pecado que nunca é má obra, e algumas vezes
pode ser obra boa, ainda os muito escrupulosos vivem muito arriscados em este
pecado. Estava o Profeta Elias em um deserto metido em uma cova, aparece-lhe
Deus e diz-lhe: Quid hic agis, Elia? «E
bem Elias, vós aqui?» — Aqui, Senhor! Pois aonde estou eu? Não estou metido
em uma cova? Não estou retirado do Mundo? Não estou sepultado em vida? Quid hic
agis? E que faço eu? Não me estou disciplinando, não estou jejuando, não estou
contemplando e orando a Deus?—Assim era. Pois se Elias estava fazendo
penitência em uma cova, como o repreende Deus e lho estranha tanto? Porque
ainda que eram boas obras as que fazia, eram melhores as que deixava de fazer.
O que fazia era devoção, o que deixava de fazer era obrigação. Tinha Deus feito
a Elias profeta do povo de Israel, tinha-lhe dado ofício público; e estar Elias
no deserto quando havia de andar na corte; estar metido em uma cova, quando
havia de aparecer na praça; estar contemplando no Céu, quando havia de estar
emendando a terra, era muito grande culpa.
A razão é fácil, porque no que fazia
Elias salvava a sua alma; no que deixava de fazer perdiam-se muitas. Não digo
bem: no que fazia Elias, parecia que salvava a sua alma; no que deixava de
fazer, perdia a sua e as dos outros: as dos outros, porque faltava à doutrina;
a sua, porque faltava à obrigação. É muito bom exemplo este para a corte e para
os ministros que tomam a ocupação por escusa da salvação. Dizem que não tratam
de suas almas, porque se não podem retirar. Retirado estava Elias e perdia se;
mandam-no vir para a corte para que se salve. Não deixe o ministro de fazer o
que tem de obrigação, e pode ser que se salve melhor em um conselho, que em um
deserto. Tome por disciplina a diligência, tome por cilício o zelo, tome por
contemplação o cuidado e tome por abstinência o não tomar, e ele se
salvará.
Mas porque se perdem tantos? Os menos
maus perdem-se pelo que fazem, que estes são os menos maus; os piores perdem-se
pelo que deixam de fazer, que estes são os piores: por omissões, por
negligências, por descuidos, por desatenções, por divertimentos, por vagares,
por dilações, por eternidades. Eis aqui um pecado de que não fazem escrúpulo os
ministros, e um pecado por que se perdem muitos. Mas percam-se eles embora, já
que assim o querem; o mal é que se perdem a si e perdem a todos, mas de todos
hão-de dar conta a Deus.
Uma das cousas de que se devem acusar e
fazer grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram no
mês que vem o que se havia de fazer no passado; porque fizeram amanhã o que se
havia de fazer hoje; porque fizeram depois, o que se havia de fazer agora;
porque fizeram logo, o que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão-de
ser as consciências dos que governam, em matérias de momento. O ministro que
não faz grande escrúpulo de momentos não anda em bom estado: a fazenda pode-se
restituir; a fama, ainda que mal, também se restitui, o tempo não tem
restituição alguma.
E a que mandamento pertencem estes
pecados do tempo? Pertencem ao sétimo; porque ao sétimo mandamento pertencem os
danos que se fazem ao próximo e à república, e a uma república não se lhe pode
fazer maior dano que furtar-lhe instantes. Ah omissões, ah vagares, ladrões do
tempo! Não haverá uma justiça exemplar para estes ladrões? Não haverá quem
ponha um libelo contra os vagares? Não haverá quem enforque estes ladrões do
tempo, estes salteadores da ocasião, estes destruidores da república? Mas
porque na Ordenação não há pena contra estes delinquentes e porque eles às
vezes se acolhem a sagrado, por isso a sentença do Dia do Juízo há-de cair
principalmente sobre as omissões.
VII
Pecados de consequência é o segundo
escrúpulo. Há uns pecados que acabam em si mesmos; há outros que, depois de
acabados, ainda duram em suas consequências. Dizia Job a Deus: Vestigia pedum meorum considerasti: «Considerastes, Senhor, as pegadas de meus
pés». Não diz que lhe considerou os passos, senão as pegadas; porque os
passos passam, as pegadas ficam. O que fica dos pecados, é o que Deus mais
particularmente examina. Não só se nos há-de pedir conta dos passos, senão das
pegadas. Não só se nos há-de pedir conta dos pecados, senão das consequências.
Oh que terrível conta será esta! Converteu Cristo, Senhor nosso, a Zaqueu, que
era um mercante rico, e as resoluções de sua conversão foram estas: Ecce dimidium bonorum meorum do pauperibus
et si quid aliquem defraudavi, reddo quadruplum: «Senhor, eu dou a metade de meus bens aos pobres, e da outra a metade
pagarei quatro vezes em dobro tudo o que houver tomado».
Aqui reparo: as leis da justa
restituição mandam que se pague o alheio em tanta quantidade como se tomou.
Pois porque quer Zaqueu que da sua fazenda se paguem e se acrescentem três
tantos mais: Et si quid aliquem
defraudavi reddo quadruplun? Se para a restituição basta uma parte, as
outras três a que fim se dão? Eu o direi: dá-se uma parte para satisfação do
pecado, as outras três para satisfação das consequências. Entrou Zaqueu em
exame escrupuloso de sua consciência sobre o que tinha roubado, e fez estas
contas: Se eu não roubara a Fulano, tivera ele a sua fazenda; se a tivera, não
perdera o que perdeu, aquirira o que não aquiriu, não padecera o que padeceu.
Ah sim! Pois para que a minha satisfação seja igual à minha culpa, dê-se a cada
um quatro vezes tanto como lhe eu houver defraudado. Com a primeira parte se
pagará o que lhe tomei, com a segunda o que perdeu, com a terceira o que não
aquiriu, com a quarta o que padeceu.
Eis aqui o que fez Zaqueu. E que se
seguiu daqui? Hodie salus huic domui
facta est.: «hoje se pôs em estado de
salvação esta casa». E se a casa de Zaqueu, para se pôr em estado de
salvação, paga três vezes mais do que tomou, em que estado de salvação estarão
tantas casas de Portugal, onde se deve tanto, e se gasta tanto, e se esperdiça
tanto, e nenhuma cousa se paga? Ora o caso é que muita gente deve de se
condenar. Porque na vida poucos pagam, na hora da morte os mais escrupulosos
mandam pagar o capital; das consequências, nem na vida, nem na morte há quem
faça caso.
E se isto passa na justiça comutativa,
onde enfim há número, há peso e há medida; que será na distributiva e na
vendicativa? Se isto lhe sucede à justiça na mão das balanças, que será na mão
da espada? Quais serão as consequências de um voto injusto em um tribunal?
Quais serão as consequências de um voto apaixonado em um conselho? Ajude-me
Deus a saber-vo-las representar, pois é matéria tão oculta e de tanta
importância.
Consulta-se em um conselho o lugar de
um vice-rei, de um general, de um governador, de um prelado, de um ministro
superior da fazenda ou justiça. E que sucede? Vota o conselheiro no parente,
porque é parente; vota no amigo, porque é amigo; vota no recomendado, porque é
recomendado; os mais dignos e os mais beneméritos, porque não têm amizade, nem
parentesco, nem valia, ficam de fora. Acontece isto muitas vezes? Queira Deus
que alguma vez deixe de ser assim. Agora quisera eu perguntar ao conselheiro
que deu este voto e que o assinou, se lhe remordeu a consciência ou se soube o
que fazia? Homem cego, homem precipitado, sabes o que fazes? Sabes o que
firmas? Sabes que, ainda que o pecado que cometeste contra o juramento de teu
cargo seja um só, as consequências que dele se seguem são infinitas e maiores
que o mesmo pecado? Sabes que com essa pena te escreves réu de todos os males
que fizer, que consentir, e que não estorvar esse homem indigno por quem
votaste, e de todos os que deles se seguirem até o fim do Mundo? Oh grande miséria!
Miserável é a república onde há tais votos, miseráveis são os povos onde se
mandam ministros feitos por tais eleições; mas os conselheiros que neles
votaram são os mais miseráveis de todos: os outros levam o proveito, eles ficam
com os encargos. Ide comigo.
Se o que elegestes furta (não o
ponhamos em condicional, porque claro está que há-de furtar) furta o que
elegestes, e furta por si e por todos os seus, como costumam os semelhantes; e
Deus há-vos de pedir a conta a vós, porque o vosso voto foi causa de todos
aqueles roubos. Prove o que elegestes os ofícios de paz e guerra, nos que têm
mais que peitar, deixando os que merecem e os que serviram; e vós haveis de dar
a conta a Deus; porque o vosso voto foi causa de todas aquelas injustiças.
Oprime o que elegestes os pobres choram as viúvas, padecem os órfãos, clamam os
inocentes; e Deus vos há-de condenar a vós, porque o vosso voto foi causa de
todas aquelas opressões, de todas aquelas tiranias. Matam-se os homens no
governo dos que elegestes, arruínam-se as casas, desonram-se as famílias,
vive-se como em Turquia; e vós o haveis de ir pagar ao Inferno, porque o vosso
voto foi causa de todos aqueles homicídios, de todas aquelas afrontas, de todos
aqueles escandalos. Quebram-se as imunidades da Igreja, maltratam-se os
ministros do Evangelho, impedem-se as conversões da Gentilidade para a propagação
da Fé; e vós haveis de penar por isso eternamente, porque o vosso voto foi
causa de todos aqueles sacrilégios, de todas aquelas impiedades e da perda
irreparável de tantos milhares de almas. Estas são as consequências da parte do
indigno que elegestes.
E da parte dos beneméritos que
deixastes de fora, quais serão? Ficarem os mesmos beneméritos sem o prémio
devido a seus serviços; ficarem seus filhos e netos sem remédio e sem honra,
depois de seus pais e avós lho terem ganhado com o sangue, porque vós lha
tirastes; ficar a república mal servida, os bons escandalizados, os príncipes
murmurados, o governo odiado, o mesmo conselho em que assistis ou presidis,
infamado, o merecimento sem esperança, o prémio sem justiça, o descontentamento
com culpa, Deus ofendido, o Rei enganado, a Pátria destruída.
São pesadas e pesadíssimas
consequências estas? Pois todas elas nascem daquele voto ou daquela eleição de
que vós porventura ficastes sem escrúpulo e de que recebestes as graças (e
talvez a propina) com muita alegria. Dir-me-eis que não advertistes tais
cousas. Boa escusa para um conselheiro sábio! Se o não advertistes, pecastes,
porque o devêreis advertir. Tomara poder confirmar tudo o que tenho dito em
particular com exemplos das Escrituras; mas bastara por todos um, que em
matérias de pecados de consequência é verdadeiramente formidável.
Matou Caim a Abel, e diz a Escritura,
conforme o texto original: Vox sanguinum
fratris tui clamantium ad me: «Caim,
a voz dos sangues de teu irmão Abel está bradando a mim». Notável dizer! O
sangue de Abel era um, como era um o mesmo Abel morto. Pois se Abel morto e o
sangue de Abel derramado era um, como diz Deus que clamaram contra Caim muitos
sangues? Vox sanguinum? Declarou o
mistério o Parafraste caldaico
temerosamente: Vox sanguinum generationum, quæ futuræ erant de fatre tuo,
clamat ad me: Se Caim não matara a Abel, haviam de nascer de Abel quase
tantas outras gerações como nasceram de Adão, com que dobradamente se
propagasse o género humano; e o sangue ou sangues de todos estes homens que
haviam de nascer de Abel, e não nasceram, eram os que clamaram a Deus e pediam
vingança contra Caim; porque, matando Caim e arrancando da terra a árvore de
que eles haviam de nascer, o mesmo dano lhes fez que se os matara. De sorte que
Caim parecia homicida de um só homem, e era homicida de um género humano; o
pecado era um, as consequências infinitas. Pois se Deus castiga nos pecados até
as consequências possíveis; e os possíveis hão-de aparecer e ressuscitar no dia
do juízo contra vós, não porque foram, nem porque deixaram de ser. senão porque
haviam de ser; se os possíveis têm sangue e vozes que clamam ao Céu, que
clamores serão os do verdadeiro sangue derramado de verdadeiras veias? Que
vozes serão, as de verdadeiras lágrimas, choradas de verdadeiros olhos? Que
gemidos serão os de verdadéira dor, saldos de verdadeiros corações? Que serão
as viudezas, as orfandades, os desamparos? Que serão as opressões, as
destruições, as tiranias? E que serão as consequências de tudo isto, multiplicadas
em tantas pessoas, continuada em tantas idades e propagadas em tantas
descendências, ou futuras ou possíveis, até o fim do mundo! Há quem faça
escrúpulo disto?
Agora entendereis com quanta razão
disse São João Crisóstomo: Miror, an
fieri possit ut aliquis ex rectoribus sit salvus. É uma das mais notáveis
sentenças que se acham escritas nos Santos Padres. Torno a repeti-la: Miror, an fieri possit, ut aliquis ex
rectoribus sit salvus: «Admiro-me
(diz o grande Crisóstomo) e cheio de
espanto considero comigo: se será possível que algum dos que governam se salve!»
Esta proposição, e a suposição em que ela se funda, está julgada comumente por
hipérbole e encarecimento retórico. Eu, contudo, digo que não é hipérbole nem
encarecimento senão verdade moralmente universal em todo o rigor teológico.
Impossível moral chamam os teólogos àquilo que muito dificultosamente pode ser
e que nunca ou quase nunca sucede.
Neste sentido disse São Paulo: Impossibile est, eos qui semel illuminati et
prolapsi sunt, renovari ad poenitentiam. E no mesmo sentido disse Cristo,
Senhor nosso: Facilius est camelum per
foramen acus transire, quam divitem intrare in regnum coelorum. Donde os
Apóstolos tiraram a mesma admiração que São João Crisóstomo, e inferiram a
mesma impossibilidade: Auditis autem his,
discipuli mirabantur valde, dicentes: quis ergo poterit salvus esse? E o
Senhor confirmou a sua ilação, dizendo que «humanamente
era impossível, como eles diziam, mas que para Deus tudo é possível»: Apud homines hoc impossibile est.: apud Deum
autem omnia possibilia sunt, que foi o mesmo que distinguir o impossível
moral e humano, do impossível absoluto, que até em respeito da omnipotência
divina não é possível. E como os que governam, pelas obrigações de seus mesmos
ofícios e pelas omissões que neles cometem, e pelos danos que por vários modos
causam a tantos, os quais danos não param ali, mas se continuam e multiplicam
em suas consequências, têm tão dificultosa a salvação, por isso São Crisóstomo,
falando lisa, sincera e moralmente, sem encarecimento nem hipérbole, disse que
ele se admirava muito e não podia entender como era possível que algum dos que
governam se salve: Miror, an fieri
possit, ut aliquis ex rectoribus sit salvus.
E para que nós nos não admiremos, e os
que governam ou desejam governar tenham tanto medo dos seus ofícios como dos
seus desejos, reduzindo a verdade desta sentença à evidência da prática,
argumento assim:
Todo o homem que é causa gravemente
culpável de algum dano grave, se o não restitui quando pode, não se pode
salvar; todos ou quase todos os que governam, são causas gravemente culpáveis
de graves danos, e nenhum ou quase nenhum restitui o que pode; logo, nenhum ou
quase nenhum dos que governam se pode salvar. Colhe bem a consequência? Pois
ainda mal, porque a segunda premissa, de que só se podia duvidar, está tão
provada na experiência. Eu vi governar muitos, e vi morrer muitos; nenhum vi
governar que não fosse causa culpável de muitos danos; nenhum vi morrer que
restituísse o que podia. Sou obrigado, secundum
praesentem justitiam, a crer que todos estão no Inferno. Assim o creio dos
mortos, assim o temo dos vivos.
VIII
Pedida e tomada a conta a todo o género
humano, olhará o Senhor para a mão direita, e com o rosto cheio de glória e
alegria, dirá aos bons: Venite benedicti
Patris mei, possidete paratum vobis regnum à constitutione mundi. «Vinde, benditos de meu Pai, e possuí o Reino
que vos está aparelhado desde o princípio do Mundo!» Quem serão os
venturosos sobre que há-de cair esta ditosa sentença? Bendito seja Deus, que
todos os que estamos presentes o podemos ser, se quisermos. Como se darão então
por bem empregados todos os trabalhos da vida, e quão verdadeiramente parecerá
então jugo suave a Lei de Cristo, que hoje julgamos por dificultosa e pesada!
Mas ainda mal, porque muitos dos que aqui estamos... Não me atrevo a o dizer;
entendei-o vós. Multi sunt vocati, pauci
vero electi. Arcta via est, quae ducit ad vitam, et pauci sunt, qui inveniunt
eam. Voltando-se depois o Senhor... (não digo bem) não se voltando o Senhor
para a mão esquerda, com rosto severo e não compassivo (o que me não atrevera
eu a crer, se o não disseram as Escrituras), dirá desta maneira para os maus: Discedite a me, muledicti, in ignem æternum,
qui paratus est diabolo, et angelis ejus: «Ide, malditos, ao fogo eterno, que estava aparelhado, não para vós,
senão para o Demónio e seus anjos» ; mas já que assim o quisestes, ide.
Abriu-se a terra, caíram todos, tornou-se a cerrar para toda a eternidade.
Eternidade! eternidade! eternidade!”
Fonte: www.cce.ufsc.br
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