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Nossa Senhora do Pilar |
“É
aqui, meu filho, o lugar marcado com um sinal, e destinado a me honrar. Aqui,
graças a ti e em memória de mim, minha igreja deve ser construída.”
pe. Philippe Nahan
Nossa Senhora do Pilar
Pouca gente fora da Espanha sabe que a
tradição reconhece que Saragoça tem o privilégio de ser o lugar de culto
mariano mais antigo da Europa. Numerosos são os santuários marianos surgidos
depois de uma aparição da Mãe de Deus. Mas nenhum é tão antigo, nem tem as
particularidades do santuário de Saragoça.
A tradição nos informa que no dia 2 de
janeiro do ano 40, a Virgem teria, não aparecido, mas vindo à Saragoça “em
carne mortal”, para reconfortar o apóstolo São Tiago e os primeiros cristãos
ibéricos. Nesta data ela não tinha ainda subido ao Céu, mas permanecia em
Jerusalém, ao lado do apóstolo São João. Já se tinham passado 10 anos desde a
Ascensão de Jesus Cristo, e parece que o apóstolo São Tiago tinha muita
dificuldade em implantar a nova fé nas terras ibéricas. Nesta data de 2 de
janeiro do ano 40, o apóstolo reuniu os poucos batizados – oito, diz a tradição
– às margens do rio Ebro. Desencorajado pelo insucesso de sua pregação, ele
estava para lhes anunciar o seu próximo retorno à Palestina. Mas eis que, de
repente, a noite se iluminou e uma multidão de anjos lhes apareceu. Eles
cantavam e transportavam a Virgem Maria sobre uma coluna. Chegados perto de São
Tiago e de seus oito companheiros, os anjos fixaram a coluna no solo. A Virgem
Maria então se dirigiu ao apóstolo nestes termos, que a tradição transmitiu:
“É
aqui, meu filho, o lugar marcado com um sinal, e destinado a me honrar. Aqui,
graças a ti e em memória de mim, minha igreja deve ser construída. Tome conta
desta coluna sobre a qual me encontro, pois, esteja certo, foi o meu Filho, teu
Mestre, que a enviou do Céu pelo ministério dos anjos...”
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Santuário de Nossa Senhora do Pilar - Saragoça, Espanha |
Neste lugar, pelas minhas orações e pela
minha intercessão, a força do Altíssimo realizará prodígios e maravilhas
admiráveis para os que me invocarem em qualquer necessidade...
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Pilar com Nossa Senhora Santuário de Nossa Senhor do Pilar - Saragoça, Espanha |
Esta coluna,
símbolo da força e da tenacidade da fé e sinal de um lugar de graça é uma
simples coluna cilíndrica de jaspe, de 1,77 cm de altura e 24 cm de diâmetro,
preciosamente revestida de prata e bronze. Sobre a coluna está uma imagem da
Virgem com o Menino Jesus em madeira negra, que data provavelmente do século
XIV ou XV, já que a original desapareceu. É interessante notar que essa coluna
jamais foi deslocada, apesar das vicissitudes da história e das sucessivas
reconstruções do santuário; ela continua no lugar onde os anjos a colocaram.
Esta tradição da Virgem do Pilar foi objeto de numerosas controvérsias entre
defensores e adversários da sua autenticidade, o que não diminuiu em nada o
fervor popular a seu respeito. Daí esta observação de um especialista: “na
história cristã, poucas tradições suscitaram tanta polêmica entre eruditos e
tanta convicção e fervor na crença dos fiéis”.
Miguel Juan Pellicer
Miguel foi batizado no dia 25 de março de
1617, na festa da Anunciação. Sem dúvida ele nasceu no mesmo dia. A criança foi
confirmada no dia 2 de junho do ano seguinte pelo arcebispo de Saragoça. Era o
segundo filho de uma família de oito irmãos e irmãs, filhos e filhas de Miguel
Pellicer Maya e de Maria Blasco. Eram modestos agricultores, definidos pelos
seus concidadãos como “bons cristãos, tementes a Deus, devotos à sua santa Mãe,
levando uma vida virtuosa e digna de elogios como trabalhadores pobres, simples
e bons”.
A instrução do jovem Miguel se reduziu ao
catecismo que Juan Julis, o padre da paróquia, lhe ensinou – sob forma
exclusivamente oral, pois, que se saiba, ele passou toda sua vida analfabeto.
Esta formação religiosa arraigou nele uma fé católica simples e elementar, mas
sólida como o granito, que se fundava sobre os sacramentos da confissão e da
comunhão, e sobre uma ardente e filial devoção à Virgem Maria. Esta, sob o
título de Nossa Senhora do Pilar, era venerada numa capela do seu vilarejo.
Os vizinhos do jovem Miguel Pellicer falam
dele como de um “bom cristão, filho obediente, amando o trabalho nos campos,
simples, sem malícia e devoto fervoroso da Virgem de Saragoça”
Partida da casa paterna
Quando tinha 19 ou 20 anos – ou seja, nos fins
de 1636 ou começos de 1637 - Miguel deixou por iniciativa própria a casa de
seus pais, que eram pobres e com muitos filhos. Não queria mais ser um peso
para eles. Instalou-se nos arredores de Castellón de la Plana, nas férteis
terras às margens do Mediterrâneo, que outrora pertenciam ao reino de Valência.
Havia uma falta terrível de mão-de-obra naquela região. Assim, Miguel encontrou
facilmente trabalho, sendo empregado como trabalhador agrícola pelo seu tio
materno, Jaime Blasco.
Nos fins do mês de julho de 1637, quando
ele conduzia para a fazenda duas mulas que arrastavam uma espécie de charrete
agrícola de duas rodas carregada de trigo, caiu de uma das mulas, vítima de um
brusco acesso de sonolência. Não é raro, entre os camponeses dessas regiões quentes
da Espanha que, no momento dos trabalhos do verão, noites de sono muito breve
aliadas à fadiga e ao calor, provoquem tais acessos. Quando caiu em terra, uma
das rodas da pesada charrete passou sobre a sua perna direita, abaixo do
joelho, fraturando a tíbia na parte central.
A fim de que pudesse ser cuidado, o tio
Jaime o transportou primeiro a Castellón, e logo depois a Valência, a 60 km
dali. Miguel foi acolhido no hospital real, onde só ficou cinco dias, durante
os quais “foram-lhe aplicados diversos remédios que não fizeram efeito”.
No seu sofrimento, sua terra natal lhe
fazia falta, e ele desejava pôr-se sob a proteção daquela que é, para ele, a
Mãe celeste em que ele confiava sem reservas: a Virgem do Pilar. Assim,
conseguiu um salvo-conduto para viajar a Saragoça, cujo hospital real e geral
de Nossa Senhora da Graça era bem reputado. A viagem, extremamente penosa para
um doente, durou mais de cinquenta dias! Foi necessário percorrer mais de 300
kilômetros em plena estação de calor, passando com muito esforço pela cadeia
dos montes ibéricos. Apesar das dificuldades e do sofrimento extremos, foi
possível cumprir a tarefa quase sobre-humana, devido à constituição robusta do
jovem, e à sua proverbial obstinação aragonesa, mas também graças à caridade cristã
que se realizava, entre outras coisas, por uma rede de asilos e de hospitais
destinados aos peregrinos e enfermos, que se estendia por toda a Espanha. Além
disso, o “passaporte do doente”, emitido pelo Hospital Real de Valência impunha
aos carreteiros e condutores de mula encontrados no caminho, como um dever
religioso importante a ajuda ao pobre inválido no seu transporte, e todo o
batizado deve prestar assistência em caso de pedido.
A amputação
Miguel chegou enfim a Saragoça nos
primeiros dias de outubro desse ano de 1637. Para se locomover, ele se apoiava
sobre muletas. Seguiu a Rota Real que passa por Teruel, evitando cuidadosamente
Calanda e seus arredores, pois ele tinha vergonha de se mostrar nesse estado a
seus parentes, já que ele tinha partido fazia poucos meses, cheio de esperança
e com a cabeça dura característica da juventude.
Apesar de seu esgotamento e de uma forte
febre, logo depois de ter chegado à capital de Aragão, arrastou-se ao santuário
de Nossa Senhora do Pilar, onde se confessou e comungou. Admitido ao hospital
da Graça, foi instalado primeiro numa sala reservada aos doentes com febre
elevada, antes de ser transferido para o serviço de cirurgia. Os médicos que o
examinam estabelecem que, por causa do estado avançado da gangrena – a tal
ponto que a perna parecia “negra” – o único meio de salvar a vida do doente era
a amputação.
Em meados do mês de outubro, o professor
Juan de Estanga e o mestre cirurgião Millaruelo se encarregaram da amputação,
cortando a perna direita “4 dedos abaixo do joelho”, e procedendo em seguida à
cauterização. Para atenuar o quanto possível os sofrimentos atrozes desta
operação praticada com a serra e o escalpelo, e depois com ferro incandescente,
só se podia administrar ao doente uma bebida alcoólica e narcótica usada na
época: seria necessário esperar mais dois séculos para se ver a aparição dos
primeiros anestésicos eficazes (éter e clorofórmio). Antes e durante a
operação, “no seu tormento, o jovem invocava sem cessar e com fervor a Virgem
do Pilar”.
Os dois cirurgiões eram assistidos por um
estudante em cirurgia, Juan Lorenzo Garcia, que se ocupou de recolher a perna
cortada e colocá-la na capela onde são reunidos os corpos dos pacientes mortos.
Mais tarde, ajudado por um colega, enterrará a perna numa parte do cemitério do
hospital reservada para isto, “num buraco de mais ou menos vinte e um
centímetros”. O respeito cristão para com o corpo destinado à ressurreição
impunha, nesses tempos de fé, que mesmo os restos de partes do corpo fossem
tratados com piedade, de modo que era considerado vergonhoso jogá-los fora como
lixo...
Depois de alguns mêses no hospital, e
antes mesmo que sua chaga se cicatrizasse inteiramente e que ele pudesse
utilizar uma prótese de madeira, Miguel, arrastando-se nos seus cotovelos –
“arrastando-se como podia” – dirige-se ao santuário do Pilar, distante mais ou
menos um quilômetro. Deseja agradecer à Virgem Maria “de lhe ter salvo a vida,
afim de que ele pudesse continuar a lhe servir e lhe manifestar sua devoção”.
Depois ele rezou intensamente para “poder viver de seu trabalho”, apesar da sua
terrível mutilação.
Mendigo
Depois de ter passado o outono e o inverno
no hospital, foi enfim autorizado a deixá-lo na primavera de 1638. Quando
estava para partir, a administração lhe forneceu uma perna de madeira e uma
muleta. Para sobreviver, Miguel não teve outra escolha senão a de se tornar
mendigo. Uma permissão legal lhe foi dada que lhe conferia oficialmente o
estatuto e o autorizava a pedir esmola na capela de Nossa Senhora da Esperança
aos numerosos fiéis que tinha então o hábito de ir para “saudar a Virgem” pelo
menos uma vez por dia. A mutilação do jovem era ainda mais evidenciada pelo
fato que, segundo o costume da época, Miguel deixava a sua chaga visível. A
cada manhã, antes de tomar seu lugar de mendigo, ele assistia devotamente à
missa na “santa capela” onde a pequena imagem da Virgem com o Menino permanece
em cima da coluna de pedra, “El Pilar”. Também diariamente, quando os acólitos
da missa apagavam, com o fim de limpar, as vinte e quatro lamparinas da capela,
pedia-lhes um pouco de óleo para ungir o côto da perna amputada – o que o levou
a ser advertido pelo professor Juan de Estanga, cirurgião que a amputou e que o
recebia periodicamente e gratuitamente para o examinar e controlar seu estado
de saúde. A assistência recebida por Miguel durante a sua longa hospitalização
(e muito tempo ainda depois), era o que um paciente podia esperar de melhor
naquela época, tanto do ponto vista científico quanto humano. Não somente foi uma
assistência absolutamente gratuita, mas foi também atenta, afetuosa, ilustrando
a mais autêntica caridade cristã. O sistema de saúde (financiado generosamente
não pelos impostos extorquidos à população, mas pelos dons livremente
consentidos) não poderia ser melhor para os mais ricos... O professor Estanga
advertiu o jovem, que ele mesmo tinha operado, que a umidade provocada pela
unção quotidiana com o óleo das lamparinas poderia ser um obstáculo para a
cicatrização completa. “Ao menos segundo os conhecimentos humanos, acrescentou
o médico, e sem levar em consideração a fé no poder de intercessão da Mãe de
Deus”. De fato, o jovem mutilado, para quem a confiança na “sua” Virgem do
Pilar supria o seu cuidado com regras sanitárias, continuou a utilizar regularmente
o óleo das lamparinas da imagem venerada.
A mendicidade lhe permitiu reunir alguns
trocados, e Miguel encontrou refúgio para a noite num albergue próximo do
santuário mantido por um certo Juan de Mazas... Se não tem bastante dinheiro,
dorme sobre um banco debaixo das arcadas do corredor do hospital, onde ele se
sente como em casa: todo mundo é seu amigo e o ajuda quanto possível.
Retorno à casa paterna
Depois de ter levado esta vida durante
mais ou menos dois anos, Miguel decide, na primavera de 1640, retornar a
Calanda, à casa de seus pais, que ele não vê desde ao menos três anos. Foi
encorajado nessa sua decisão por alguns habitantes de sua vila, que o reconheceram
na porta do santuário. Entre eles, dois padres: D. Jusepe Herrero, jovem
vigário de 26 anos da paróquia onde Miguel tinha sido batizado, e D. Jaime
Villanueva, beneficiário desta mesma igreja. O jovem confia a D. Jusepe a
inquietação que o tinha dissuadido até então de retornar a Calanda: “Como é que
eu poderia retornar à casa de meus pais, eu que saí contra a vontade deles e em
plena saúde, e que me encontro agora sem uma perna?” O padre prometeu que,
quando retornasse a Calanda, iria encontrar seu pai e sua mãe para lhes falar
em favor do filho infortunado.
Tendo finalmente superado o medo que o
retinha, Miguel aproveitou do encontro com outros concidadãos no santuário para
começar sua viagem de volta ao vilarejo natal na primeira semana de março de
1640. Passou a primeira etapa até Fuentes de Ebro (mais ou menos 27
quilômetros), sobre a charrete de um viajante ocasional, em companhia de dois
jovens de Calanda, Francisco Félez e Lamberto Pascual, que estavam em perfeita
saúde e que lhe cederam a charrete para andar à pé. No dia seguinte, não
podendo contar com a ajuda do charreteiro (que não podia ir além), chegou a
Quinto de Ebro, distante 16 quilômetros, desta vez a pé “pouco a pouco, e
sofrendo muito”. A pressão da perna de madeira sobre o côto da perna era muito
dolorosa, ao ponto de que ele foi forçado a continuar a andar apoiado somente
nas muletas. Em Quinto, ficou só, pois seus dois companheiros que o tinham
ajudado como podiam, eram esperados no lugar e não podiam continuar a andar num
ritmo tão lento.
Miguel se confiou à compaixão dos
viajantes que passavam nessa estrada com uma charrete ou uma mula, e foi assim
que conseguiu atingir Samper. Lá, descansou num albergue de Domingo Martín.
Miguel aproveitou da presença de um camponês da região, Rafael Borraz, que
aceitou ir encontrar seus pais para que estes pudessem vir em seu auxílio.
Estes lhe enviaram um pequeno asno, conduzido por um jovem empregado, Bartolomé
Ximerra, que tinha somente 16 anos. Mesmo nas famílias pobres, podia-se
encontrar esses jovens servidores, filhos de famílias muito numerosas e que, em
troca de seu trabalho, só recebiam a comida e, se não pudessem retornar à casa
de seus pais de noite, o direito de dormir num canto qualquer. Finalmente,
depois de mais de 3 anos de ausência e no fim de uma semana de provações,
cumprindo 118 quilômetros que o separavam do termo de sua viagem, Miguel
Pellicer (que completaria em breve 23 anos), chegou à casa dos pais e, apesar
dos seus receios, foi acolhido muito afetuosamente. Era “um dia da segunda
semana da Quaresma”, entre 4 e 11 de março de 1640.
Continua mendigo
Tendo imediatamente constatado sua
incapacidade de ajudar nos trabalhos agrícolas, Miguel, que tinha sempre a
preocupação de não ser um pêso para os seus, decidiu começar de novo a pedir
esmolas. Na sociedade daquele tempo, o fato de um inválido sem recursos mendigar
não constituía uma desonra, mas era mesmo, em caso de necessidade, um dever.
Para os outros, era algo natural exercer a caridade, que aos seus olhos era
somente justiça, repartindo um pouco do seu pão – mesmo se eles não tivessem
grande quantidade – com aqueles que não podiam ganhar o seu. Os mendigos eram
até mesmo considerados como verdadeiros benfeitores, já que eles permitiam aos
seus próximos de praticar esta assistência aos pobres da qual o Evangelho fazia
uma das condições para a salvação.
Miguel foi, portanto, mendigar nos
vilarejos ao redor. O jovem estava munido de uma autorização regular, do ato de
batismo obrigatório, e de um documento explicativo dos motivos de sua
invalidez. Este documento lhe tinha sido fornecido pela sua comunidade de origem,
e garantia a honestidade daquele que o recebia... Serão numerosos os que verão
o jovem mutilado nos vilarejos vizinhos de Calanda, montado no único asno de
sua casa e tendo a sua perna cortada exposta, como em Saragoça, a fim estimular
a caridade dos habitantes. Fazendo isto, ele recebia os dons em alimentos,
sobretudo o pão, particularmente precioso naquele fim de março, onde a próxima
colheita ainda estava distante e onde as reservas de farinha começavam a se
esgotar.
O prodígio
Era o dia 29 de março de 1640,
quinta-feira da Semana da Paixão que precede a Semana Santa. Faltavam portanto
nove dias para o Domingo da Páscoa... Este ano de 1640 foi bem particular do
ponto-de-vista religioso: faziam exatamente 16 séculos que a Virgem tinha
“vindo em carne mortal”, nas margens do Rio Ebro. Ora, neste 29 de março de
1640, Miguel não partiu como de costume para pedir esmolas, mas se esforçou
para ajudar os seus, não pedindo esmolas, mas com os seus braços. Ele foi,
montado no asno da família, trabalhar num campo que pertencia a seu pai, perto
do vilarejo, e encheu de esterco 9 vezes os cestos transportados pelo animal. É
provável que ele não tenha partido para mendigar por causa da necessidade que
se tinha do animal para esse trabalho. Cada uma das nove vezes, o asno foi
levado ao pátio da casa por uma das irmãs mais novas de Miguel, Jusepa ou
Valeria. O pai e Bartolomé, o pequeno empregado, descarregaram o animal e o
mandaram de novo ao campo onde o jovem inválido esperava, equilibrando-se com
dificuldade na perna de madeira e nas muletas.
De tardinha, cansado, e com o côto da
perna doendo mais que de costume, Miguel (que tem então 23 anos e 3 dias),
voltou para casa. Uma surpresa desagradável o esperava: por ordem do governo,
os Pellicer deveriam acolher naquela noite um soldado da cavalaria real. Duas
companhias de cavalaria legeira marchavam em direção da fronteira da França:
estávamos na guerra dos Trinta Anos, e a França tinha atacado a Espanha... Este
soldado, confiado à hospitalidade dos Pellicer, partirá de novo de madrugada,
depois da noite do prodígio, e chegará com o resto da companhia em Caspe, uma
pequena cidade às margens do rio Ebro. E lá ele procurará um capuchinho a fim
de se confessar, coisa que ele não fazia desde 10 anos.
A presença do hóspede imprevisto obrigou
Miguel a ceder sua cama, e sua mãe, Maria, preparou então para seu filho
inválido um colchão improvisado ao lado da cama de casal: tratava-se de um
colchão de crina de cavalo posto sobre uma peça de couro para proteger da
umidade do solo, e um lençol. A coberta foi emprestada ao militar, e só havia a
capa de seu pai para proteger do frio, mas esta era muito pequena para cobrir
todo o seu corpo. Às dez horas, depois de um jantar frugal, Miguel dá boa-noite
a seus pais, ao soldado, ao empregado e a dois vizinhos, Miguel Barrachina e
sua mulher, Ursula Means, que tinham vindo como de costume conversar com seus
amigos, os Pellicer. Os dois serão as duas primeiras pessoas fora da família
(junto com o militar, despertado logo depois), que constatarão, espantadas, o
acontecimento.
Durante a conversação, o jovem tinha se
queixado, mais que de costume, das dores na perna cortada, dores que tinham
aumentado por causa dos esforços no trabalho, e ele mantinha descoberta a
ferida cicatrizada, que todos os presentes podiam ver e tocar. Miguel deixou
sobre uma cadeira da cozinha a perna de madeira, e também as tiras de lã que
ele utilizava para fixá-la ao que lhe resta da perna. As muletas foram postas
no mesmo lugar. Apoiando-se à parede para se manter de pé, dirigiu-se, saltando
com o pé esquerdo, para o quarto de seus pais, ao lado da cozinha. Pouco
depois, os esposos Barrachina, Miguel e Ursula, se despediram e voltaram para a
casa vizinha.
Entre dez horas e dez e meia, a mãe de
Miguel entrou no quarto com uma lamparina, percebendo logo “um perfume, um odor
suave” desconhecido para ela, “um perfume vindo do Paraíso, diferente de todos
os perfumes da terra” e que permanecerá por vários dias, impregnando não
somente o quarto, mas também todos os objetos que lá se encontravam. Espantada
com este perfume, ela levantou a sua lamparina e se aproximou do colchão
improvisado para ver como seu filho estava. Ele dormia profundamente. Mas ela
percebeu também, pensando estar enganada por causa da pouca luz, que não
somente um pé ultrapassava a capa de seu pai, mas dois, “um sobre o outro,
cruzados”.
Maria se aproximou com cuidado,
constatando que ela de forma nenhuma se havia enganado, e pensou então que
tinha havido um mal-entendido, que o lugar reservado a seu filho estivesse
ocupado pelo soldado. Chamou então seu marido, que ficou na cozinha, para
esclarecer a situação. O pai de Miguel chegou apressado, levantou a coberta, e
os dois esposos descobriram o impensável: tratava-se de seu filho. Tirando
completamente a coberta, espantados, confirmaram que os dois pés cruzados eram
mesmo os do jovem Miguel. E viram que estes dois pés estavam unidos à perna,
como no dia em que, há mais de três anos, tinham visto seu segundo filho
partir, cheio de vigor e esperança, a buscar fortuna, pela estrada de Castellón
de la Plana.
“Maravilhados e estupefatos diante de uma
maravilha tão inaudita”, os pais sacodem seu filho, gritando para o despertar.
Com os gritos, o rapazinho empregado acorreu da cozinha, onde ele se aprontava
para dormir no seu lugar habitual. Os pais tiveram muita dificuldade para
despertar Miguel, pois este tinha um sono extremamente profundo, como se
estivesse num coma ligeiro. Foi preciso para o despertar “mais tempo que a
duração de dois Credos”. Quando, depois de muito esforço, Miguel abriu os olhos
e tomou consciência, a primeira coisa que lhe disseram foi de “olhar, pois há
duas pernas de novo”. O rapaz ficou “maravilhado”, e sua reação imediata é a de
pedir a seu pai de “lhe dar a mão” em sinal de perdão pelas ofensas que tenha
feito contra ele. Quando lhe perguntaram, com emoção, se ele “tem alguma idéia
de como isto ocorreu”, o jovem respondeu que ele nada sabia. Mas declarou que,
quando estava para acordar “sonhava que ele se encontrava na santa capela de
Nossa Senhora do Pilar, e que ele ungia sua perna cortada com o óleo de uma
lâmpada, conforme tinha o costume de fazer quando estava no santuário”.
Acrescentou que, nessa mesma noite, antes de se deitar, recomendou-se a Nossa
Senhora do Pilar com muito fervor, como de costume. Tinha certeza de que “foi
Nossa Senhora do Pilar que lhe devolveu a perna cortada”.
Passada a primeira emoção, o jovem começou
a “mover e apalpar sua perna, pois lhe parece que isto não pode ser verdade”.
Mas ele mesmo e seus parentes, à luz da lâmpada, examinaram o membro e logo
descobriram as marcas que não deixam lugar a nenhuma confusão. Pois eram as
marcas que se encontravam outrora sobre a perna amputada... A mais importante,
a mais visível, é a cicatriz deixada pela roda da charrete que tinha fraturado
a tíbia no acidente de Castellón de la Plana. Também podia-se ver outra
cicatriz, menor, provocada pela extração, quando Miguel ainda era menino, de um
grande quisto ‘na parte inferior e interior da perna”. E depois, dois arranhões
profundos causados por uma planta espinhosa. Finalmente, os traços de uma
mordida de cachorro, na panturrilha. Além dos parentes e do miraculado, outras
testemunhas se lembrarão dos traços visíveis na perna direita do seu jovem
concidadão antes que ela fosse cortada, já que a roupa usada pelos camponeses
aragoneses deixava ver a panturrilha, a calça só descia um pouco abaixo do
joelho.
Miguel e seus parentes adquiriram logo a
certeza de que “a Virgem do Pilar obteve de Deus Nosso Senhor que a perna que
tinha sido enterrada há mais de dois anos lhe fôsse devolvida”. Efetivamente,
pesquisas foram efetuadas no cemitério do hospital de Saragoça. Mas não se
encontrou nenhum vestígio da perna enterrada na parte reservada aos membros
amputados. Só havia um buraco vazio na terra. Portanto, não houve criação, mas
antes uma espantosa restauração; não uma expulsão, mas uma união. Três dias
ainda foram necessários para que o calor natural penetrasse progressivamente na
perna e no pé direitos. Os dedos, antes “recurvados”, se endireitarão, a pele
retomará sua cor normal, e desaparecerão as estrias arroxeadas que a sulcavam.
Pouco a pouco, o pé reencontrará sua flexibilidade, e todo vestígio de
coloração anormal desaparecerá. O fato de que a cura total não tenha sido instantânea,
não diminui a grandeza do prodígio. Como observará o arcebispo de Saragoça, é
preciso distinguir entre o que a natureza é capaz e o que lhe é impossível.
Somente a restituição de uma perna a uma pessoa que foi dela privada durante
vários anos é que constitui propriamente o caráter prodigioso do acontecimento.
Primeiras testemunhas
Alertado pelos clamores dos esposos
Pellicer e prevenido pelo jovem empregado, acorreram o vizinho Miguel
Barrachina, companheiro da conversação, e que pouco antes tinha visto Miguel
com a sua única perna. Viu o que tinha acontecido e logo chamou da rua sua
esposa Úrsula, já deitada, para que ela também viesse. Os clamores de seu
marido eram de tal modo ininteligíveis, e as palavras deformadas pela emoção,
que ela se enganou sobre o que era dito. Perto da cama de Miguel, Úrsula
encontrou todas as pessoas como fora de si mesmas, cantando em altas voz hinos
de louvor e ação de graças à Virgem do Pilar e a Jesus Cristo. Logo chegam
outras pessoas, entre as quais a avó materna do miraculado.
Quando o sol nasce nesse dia 30 de março –
sexta-feira da Semana da Paixão - a incrível notícia se espalhou em todo o
vilarejo e D. Jusepe dirigiu-se à casa dos Pellicer “seguido de muita gente”.
Entre elas, os notáveis de Calanda, o prefeito, Miguel Escobedo, e seu adjunto,
Martín Galindo. E ainda o notário real, Lázaro Macário Gómez. O prefeito
declarou mais tarde que, não conseguindo compreender como uma coisa tão
extraordinária pudesse se produzir, ele tinha “apalpado a perna e feito cócegas
na planta do pé”. Também ali estava o juiz de paz, que deveria assegurar a
ordem pública, Martín Corellano. Este redigiu o primeiro relato dos
acontecimentos que deveria ser enviado às autoridades de Saragoça, no dia
seguinte aos fatos. Este documento foi entregue pela mesma família Pellicer
quando, algumas semanas depois, ela se dirigiu em peregrinação de ação de
graças ao santuário do Pilar. Na capital aragonesa, a coisa foi considerada tão
extraordinária, que se julgou necessário informar logo as autoridades supremas
do reino. Assim, este primeiro documento de um obscuro funcionário de Calanda
foi enviado a Madrid pelo correio e chegou às mãos do rei Filipe IV.
No meio da multidão, que se reuniu em
torno da casa dos Pellicer, se achavam também dois médicos de Calanda. Uma
espécie de procissão se formou para acompanhar o jovem até a igreja paroquial,
onde o resto dos habitantes o esperava. Todos, dizem os documentos, “ficaram
estupefatos vendo-o de novo com a sua perna direita, pois eles tinham-no visto
antes com uma só perna até o dia anterior de tarde”. Na igreja, o vigário,
depois de ter confessado o miraculado, celebrou uma missa de ação de graças,
durante a qual Miguel comungou.
Ata feita perante o notário a respeito do prodígio.
O dia 1º de abril, terceiro dia após o
milagre, foi, naquele ano de 1640, Domingo de Ramos. Aproveitando-se do
feriado, numerosas pessoas de toda a região foram a Calanda: espantados pela
notícia do prodígio, queriam se assegurar da veracidade dos fatos. Entre eles
chegam de Mozaléon, lugarejo situado a leste de Calanda, a 50 km, o pároco, pe.
Marco Seguer, doutor em teologia, e um dos seus vigários, pe. Pedro Vicente, e
o escrivão real do lugar, mestre Miguel Andreu.
Devemos a esta pequena expedição
inesperada esse documento extraordinário: um ato jurídico oficial certificando
a autenticidade dos fatos, de maneira que o milagre está garantido por um
documento estabelecido por um escrivão habilitado junto ao Estado segundo todas
as regras do direito e confirmado por dez testemunhas oculares, escolhidas
entre as mais dignas de fé e as melhores informadas entre as numerosas
disponíveis. Além disso, este ato de autentificação foi feito no lugar mesmo
onde tudo isto aconteceu. Apesar das vicissitudes da história aragonesa, o original
do documento existe até hoje. Desde 1972, encontra-se exposto numa vitrine no
escritório da prefeitura de Saragoça. O historiador Leandro Ama Naval observa
que “Com um tal documento, estamos próximos daquela garantia ideal reclamada
pelos racionalistas e pelos incrédulos de sempre como condição preliminar para
poder-se levar em consideração esses fenômenos que ultrapassam os limites das
leis científicas e que os crentes definem como milagres”. O mistério, em suma,
se vê confirmado pelo sêlo de mestre Andreu, que se apresenta neste ato como
ele se apresenta nos numerosos outros atos assinados por ele e que chegaram até
nós.
O processo canônico
Foi a municipalidade de Saragoça que pediu
a abertura do processo, a fim de que o acontecimento fosse completamente
esclarecido. O primeiro signatário desse pedido de investigação sobre o que
verdadeiramente tinha se passado no vilarejo do reino de Aragão foi o prefeito
de Saragoça, Lupercio Diaz de Contamina. Depois de ter recebido a autorização
do arcebispado, as autoridades civis nomearam três pessoas que serão incumbidas
de representá-los no júri. No dia 5 de junho, os três representantes de
Saragoça se apresentaram diante do vigário geral da diocese, D. Juan Perat, e o
processo canônico foi oficialmente aberto. Para que houvesse uma maior
transparência, ele seria público e não a portas fechadas. As minutas, com todos
os interrogatórios, as objeções, as deduções e as contra-deduções, seriam
integralmente e imediatamente publicadas e postas à disposição de todos aqueles
que quisessem as consultar, tanto mais que se quis deixá-las em castelhano, a
língua do povo. Somente a sentença solene do arcebispado será redigida em latim
– mas ela será também, logo traduzida. As regras estabelecidas na 25° sessão do
Concílio de Trento e claramente enunciadas no decreto sobre a veneração dos
santos e de suas relíquias e sobre o reconhecimento dos “novos milagres”, foram
rigorosamente seguidas.
A organização formal do processo foi
confiada ao vigário-geral. D. Perat. Mas foi o arcebispo de Saragoça em pessoa,
D. Pedro Apaolaza Ramírez, que se constituiu juiz e presidente do tribunal,
assistindo a todo o desfilar de testemunhas e ao seu minucioso interrogatório.
O arcebispo era um pastor de grande experiência (tinha 74 anos), sábio autor de
trabalhos de teologia apreciados. Cumpriu seu cargo episcopal com zêlo e
severidade na aplicação dos decretos conciliares, ao ponto de atrair para si
ressentimentos. Em conformidade às regras do Concílio de Trento, um colégio de
nove teólogos e canonistas (entre os quais um leigo, professor universitário),
se assentou ao lado do arcebispo. Todos assinaram com ele a sentença
definitiva.
Uma confirmação suplementar do rigor
jurídico e teológico deste processo veio de que ele se desenrolou sob o olhar
atento e desconfiado da Inquisição que, todavia, não interferiu diretamente. No
apogeu de sua organização e de seu poder em Aragão, a Inquisição velava com
autoridade pelo respeito estrito da ortodoxia católica, intervindo de maneira
inexorável em todos os casos onde ela acreditava detectar novidades perigosas
ou traços de superstição. Contrariamente ao que nos queria fazer crer a “Lenda
Negra” da Espanha, o tribunal da Inquisição gozava de um apoio total e
convencido da parte de todas as classes sociais, a começar pelo povo. O fato de
que o tribunal da Inquisição não tenha exigido de proceder por ela mesma à
investigação do impressionante prodígio é uma garantia da objetividade e da
regularidade do trabalho jurídico feito pelo tribunal constituído.
Este tribunal não se contentará em buscar
as provas a fim de estabelecer a verdade sobre o objeto do processo, pela
audição das vinte e quatro testemunhas oculares. Depois deles, durante cinco
audiências, serão outras nove testemunhas de “credibilidade” que compareceriam
diante dos juízes. Estes são chamados a ser avalistas dos testemunhos
precedentes, para confirmá-los sob juramento de credibilidade. No total, as
minutas do processo mencionam 102 nomes, ilustres ou obscuros: juízes,
escrivães, procuradores, meirinhos, testemunhas oculares ou “de credibilidade”,
médicos, enfermeiros, eclesiásticos, donos de albergue, camponeses,
carreteiros... Um jurista moderno e leigo, depois de uma análise dos
procedimentos e do desenrolar do processo, podia falar de um “excesso de
garantias” e de uma “prudência quase impertinente na verificação”.
Sentença
A decisão do arcebispado declarando o
acontecimento de Calanda autenticamente miraculoso foi pronunciada no dia 27 de
abril de 1641, ou seja, depois de onze meses de trabalho e catorze sessões
públicas e plenárias, menos de treze meses depois dos fatos. Num latim solene,
o arcebispo concluía nestes termos a sentença que selava o fim de um longo e
complexo processo:
“Por
isto, tendo considerado os argumentos ditos acima e muitos outros, com o
conselho dos ilustres doutores em Sagrada Teologia e em Direito Canônico
nomeados acima, nós afirmamos, pronunciamos e declaramos que a Miguel Juan
Pellicer, nascido em Calanda, que foi objeto deste processo, lhe foi devolvida
milagrosamente sua perna direita, que lhe tinha sido anteriormente amputada;
que não se tratou de um fato natural mas de uma obra admirável e miraculosa; e
que se deve julgar que se trata de um milagre, todas as condições requeridas
pelo Direito tendo sido reunidas para que, no caso aqui examinado, se possa
falar de um autêntico prodígio. E assim devemos inscrevê-lo no número dos
milagres, e nós o aprovamos, declaramos e autorizamos como tal.”
Extraído da revista Sel de la Terre (49240
– Avrillé) nº49.
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